Aqui "não há anjos negros", mas produzimos racismo estrutural
É importante perceber-se que não se trata de ter a desfaçatez de exibir racismo a cada gesto e comentário, mas de, mesmo rodeados das melhores pessoas do mundo, não conseguirmos escapar às violências que o racismo produz.
A pergunta costuma surgir num tom de genuíno interesse, entre conversas, sessões de formação, painéis e conferências, ou apresentações em escolas: "O que é isso do racismo estrutural?".
Esta semana foi diferente. Com a questão, colocada num encontro entre representantes políticos e pessoas da sociedade civil, vieram picos de tensão e confrontação, como se a terminologia contivesse um plano subversivo de ocupação negra. Ou como se o termo fosse tão absurdo que poderia bem resultar de uma qualquer brincadeira infantil de inventar palavras.
"O que é isso de racismo estrutural?". Assim, de chofre, enquanto sentia que me estava a defender de um crime de lesa-pátria, ocorreu-me partilhar um exemplo clássico no acesso ao emprego: a exclusão de candidaturas pela morada (quando corresponde a bairros reconhecidamente de maioria negra ou com grande prevalência de populações racializadas); pelo nome (quando é percepcionado como estrangeiro); e pela fotografia (quando confirma quantidades de melanina indesejáveis).
Confirmando o tom de desconfiança com que disparou a pergunta, a pessoa duvidou. Ficou evidente para mim que, aos seus ouvidos, tudo isto soa a exagero anti-racista, produzido num contexto dado a polarizações.
Nas suas palavras, afirmações dessas devem ser sustentadas por estudos, porque, deduzo eu, o testemunho de quem sofre na pele essas violências, e os relatos das organizações que há décadas as denunciam não basta. Há sempre um “mas” quando falamos de racismo, e uma concertação de resistências para o reduzir a achismos.
A estrutura racista na prática
Também por isso me parece preferível contrapor com exemplos concretos, na esperança de que se perceba que não se trata de a pessoa A ou B ter a desfaçatez de exibir racismo a cada gesto e comentário, mas sim de, mesmo rodeados das melhores pessoas do mundo, não conseguirmos escapar às violências que o racismo produz.
Pode vir na forma de um processo de recrutamento que mesmo sem nos conhecer nos exclui – leia-se ou releia-se esta reportagem da Joana Gorjão Henriques. Também pode surgir em formato de manual escolar – em 2023 continuamos a ter livros que ensinam que "Na África Negra e no Brasil viviam povos muito atrasados".
Pode assumir igualmente contornos de violência obstetrícia, fenómeno para o qual a associação SaMaNe - Saúde das Mães Negras e Racializadas em Portugal vem alertando. Pode ainda se expressar através da Lei, que "pinta o suspeito de negro", conforme o advogado José Semedo Fernandes vem assinalando.
Para cada uma das situações apresentadas, entre tantas outras que é possível enumerar, contam-se mais vidas negras violentadas do que aquelas que conseguimos contabilizar.
Nos últimos dias fiquei a matutar em mais duas histórias. Guardo a primeira, que soma já cerca de 30 anos, para outro momento – porque exige uma profunda digestão – e deixo-vos com a outra.
Tropecei nela entre partilhas, num evento de networking. A fazer lembrar a discussão insana sobre o monopólio das sereias, uma actriz negra contou-me o desfecho racista de um casting a que se submeteu. Tati, chamemos-lhe assim, até poderia ter tido uma actuação digna de um Óscar, que, no final, continuaria aquém da norma. Mais palavra, menos palavra, o motivo foi verbalizado sem sombra de embaraço: "Não te podemos escolher, porque não há anjos negros".
E assim, claro como o racismo, a estrutura se conserva. Branca.
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.