Doutorado em Sociologia pelo ISCTE–IUL, e investigador integrado no CIES, do ISCTE -IUL. Docente convidado de Teorias Sociológicas do Departamento de Sociologia e Políticas Públicas no ISCTE-IUL. Foi visiting fellow do Max Planck Institute for the Study of Religious and Ethnic Diversity, Gottingen. Foi coordenador do Observatório Nacional do Racismo e Xenofobia.

Temos de separar as águas entre o populismo de direita e o de esquerda

Devemos ter por horizonte uma divisão fundamental entre populismos para separarmos o de direita do de esquerda: a distinção entre tendências regressivas e progressivas. Se o populismo for uma estratégia de construção da fronteira do político, então o que fica de um lado ou do outro dessa fronteira não pode ser indiferente.

Recensão
1 Outubro 2021

Os acontecimentos no Capitólio norte-americano, as recorrentes tentativas de entorse da democracia por membros do Partido Republicano, em especial dos apaniguados do ex-presidente Donald Trump, e a entrada em cena da extrema-direita no parlamento português são acontecimentos que mostram que se tornou imprescindível perceber o que é o populismo e como funciona.

Cas Mudde dedicou a sua vida académica a aclarar o sentido do fenómeno populista, a investigá-lo nos seus traços históricos e conjunturais, e a concretizar as suas investigações através de um modelo conceptual que o explique. No livro Populismo: uma brevissíma introdução, de 2017, Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser oferecem as principais linhas de compreensão de um fenómeno que tem alargado o seu impacto aos mais diversos domínios políticos e regimes mundiais.

Trata-se de um livro de síntese, e não de uma obra de investigação original. Nesta condição, é simultaneamente abrangente e pouco aprofundado, procurando antes oferecer uma visão geral das várias entradas teóricas que abordam o populismo.

É nesse sentido que os capítulos do livro correspondem ao que, grosso modo, poderíamos designar de dimensões do populismo: as ações políticas populistas em vários contextos históricos e geográficos, as formas de mobilização associadas ao populismo, as características do líder populista e as relações ambíguas entre populismo e democracia. E o livro fornece abundantes ilustrações de momentos e ações históricos populistas.

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Capa Popopulismo: uma brevíssima introdução
Capa do livro Populismo - Uma Brevíssima Introdução, publicado pela Gradiva.

Antes de mais, importa balizar o que entendem os autores por populismo. Depois de recensearem um conjunto de abordagens às quais apontam deficiências analíticas diversas ou acusam de serem redutoras, Mudde e Kaltwasser propõem um modelo que cunharam de ideacional: analisar o populismo enquanto forma de discurso ou ideologia. Em paralelo, os autores salientam a existência de um aspeto que se tornou consensual mesmo em abordagens analiticamente opostas: todas as formas de populismo implicam uma convocação do povo e a denúncia da elite.

Juntando estes dois elementos – a dimensão ideológica e o conteúdo, de certa maneira, maniqueísta e dualista do populismo – podemos definir o fenómeno como uma ideologia que separa a sociedade em dois campos antagónicos: a pureza do povo contra a corrupção da elite. E que argumenta que a política deve ser a expressão da “vontade geral” do povo (p.18).

Note-se, no entanto, que é considerado uma ideologia baixa densidade por oposição a ideologias mais robustas e completas como o fascismo, o liberalismo ou o socialismo. Nesse sentido, ela é acoplável a estas outras ideologias; e em última análise funciona numa relação estratégica com elas, evidenciando maleabilidade suficiente para transitar entre extremos políticos.

Esta definição tem de ser testada pelo que não se enquadra no que os autores consideram ser o populismo: o elitismo, o pluralismo e o clientelismo. Para o primeiro, a relação é justamente a inversa da identificada. Embora sustentando uma visão dualista e maniqueísta, neste caso é o povo que é perigoso e como tal deve ser governado por uma elite superior. Integram-se nesta categoria atores políticos como Augusto Pinochet e Francisco Franco, ou teóricos como Joseph Schumpeter, e eu acrescentaria Friedrich Hayek .

O pluralismo está relacionado com a compreensão da sociedade enquanto arena com diversos centros de poder e grupos diferenciados em termos de ideias e interesses, e segundo este entendimento recairia numa condição oposta à do populismo. E finalmente o clientelismo, que os autores associam ao “caudillismo” latino-americano, distingue-se do populismo pela sua dimensão meramente estratégica e como tal não estruturada ideologicamente.

Daqui resultam um conjunto de vantagens da abordagem ideacional que os autores sublinham, como o salientar da maleabilidade do populismo, a diversidade de atores políticos e as suas formas de mobilização, as relações complexas entre populismo e democracia, e finalmente o colocar da tónica quer do lado da oferta quer do da procura políticas. Serão estes elementos que guiarão o leitor nos capítulos subsequentes.

Não obstante os capítulos mais substantivos do livro oferecerem informação rica e contextualmente abrangente, existem questões que se afiguram dignas de crítica e perplexidade. Desde logo uma estranha displicência no que toca ao separar analiticamente níveis de veracidade histórica, porventura bem representada na insistência da expressão “eles acreditam”.

Por exemplo, dizer que o norte-americano Tea Party defende os pequenos comerciantes contra as grandes corporações, porque “acredita” que é aí que se encontra a virtude do capitalismo, não é dizer muito, sobretudo quando as evidências empíricas mostram que o Tea Party tem no seu interior representantes das grandes corporações – do petróleo, do metal, das grandes cadeias de distribuição de alimentos, dos bancos e da indústria de armamento. Dizer que eles “acreditam” na defesa do pequeno comerciante é simplesmente negligenciar que há um puro elemento de falsidade e de manipulação na sua retórica. Talvez devamos começar por aí: qual o estatuto epistemológico de uma tal expressão?

Esta confusão dos níveis de análise prende-se estreitamente à indistinção dos programas e opções políticas, como se estes fossem epifenómenos na grande dualidade caraterizadora do populismo: do povo contra as elites. Assim se assimila a retórica dos perigos da imigração dos movimentos e partidos de extrema-direita europeus à crítica dos impactos do “consenso de Washington” nas economias da América Latina.

Devemos ter por horizonte uma divisão fundamental mais operativa que nunca, justamente para separarmos o populismo de direita do de esquerda. A concessão deve ser mínima, mesmo que o discurso da abstração democrata insista na não existência de diferenças. 

Esta comparação pode ser formalmente correta, mas não o é substantivamente: a primeira, a que utiliza a imigração para reforçar o identitarismo nacionalista baseia-se numa falácia; a segunda, que crítica as políticas da Escola de Chicago na destruição das economias latino-americanas é real. O estatuto epistemológico da construção narrativa da retórica populista não pode ser entendido como residual.

Da mesma forma, ao explicitar os tipos de líderes carismáticos, é-nos dito que devemos diferenciar entre o líder que estabelece um elo direto com o povo e aquele que é apoiado por uma máquina partidária. Exemplos da primeira categoria são Collor de Mello, no Brasil, e Pim Fortuyn, na Holanda.

O que esta análise simplista negligencia é que mesmo sem serem apoiados por máquinas partidárias, foram-no por sectores muito específicos (e poderosos) quer da economia quer da comunicação – tanto um como o outro encontraram o favorecimento dos media que os projetou como paladinos da moral pública. Sem os media, nenhum se tornaria nos fenómenos de popularidade que foram, antes da queda no opróbrio para Collor e da morte no caso de Fortuyn, em 2002.

O mesmo com Jörg Haider, o líder de extrema-direita austríaca sistematicamente favorecido, assim como o seu sucessor Heinz-Christian Strache, pelo jornal de maior circulação na Áustria, o Kronen Zeitung. É certo que os autores fazem alusão ao papel dos tablóides na construção do populismo, e no caso concreto de Haider. Todavia, não retiram as consequências teóricas dessa associação: a de que as elites não têm que ser necessariamente políticas no sentido estrito do termo, ou seja, partidárias.

Com todos os méritos que o seu esquema analítico possa traduzir, a confusão gerada com uma pretensa objetividade científica não é totalmente compreensível. Dificilmente se entende as sistemáticas comparações entre partidos como o Podemos espanhol e a Forza Itália de Silvio Berlusconi. Ou de associações conceptuais entre regimes como o de Carlos Menem, na Argentina, e o de Collor de Mello, no Brasil, com os de Evo Morales na Bolívia ou de Rafael Correa do Equador do século XXI. Muito embora apresentadas como “vagas” diferenciáveis de populismo, estas mesmas “vagas” não podem ser abstraídas nem dos seus momentos políticos nem dos seus sujeitos e movimentos.

Um tal tratamento não ajuda de facto a uma clarificação, não apenas conceptual, mas sobretudo ética e política. Talvez esta última seja a mais importante para que se evitem as batalhas retóricas fundadas na demagogia esquemática dos bons e dos maus. A armadilha de um certo processualismo é fazer-nos crer que o maniqueísmo dos “bons” e dos “maus” é a única fórmula rebatível de política que não acolhe os preceitos democráticos.

Contudo, e mantendo a aproximação ética ao fenómeno político, creio que devemos ter por horizonte uma divisão fundamental mais operativa do que nunca, justamente para separarmos o populismo de direita do de esquerda: a distinção entre tendências progressivas e regressivas. Aqui a concessão deve ser mínima, mesmo que o discurso da abstração democrata insista que a diferença se encontre num certo perspetivismo.

Se, como há muito defende Ernesto Laclau, o populismo for uma estratégia de construção da fronteira do político, o que fica de um lado ou do outro dessa mesma fronteira não nos pode ser indiferente.