Doutoranda em Estudos Culturais e membro do grupo de Género e Performance do Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro.  

A Madrugada em Birkenau: o testemunho de Simone Veil

Em maio deste ano chegou-nos a tradução de A Madrugada em Birkenau. É o resultado de 15 anos de conversas entre Simone Veil e David Teboul: conta-nos a sua vida, de quando foi presa e deportada em França na II Guerra Mundial até ser presidente do Parlamento Europeu.

Recensão
6 Setembro 2021

Simone Jacob nasceu em Nice a 13 de julho de 1927. Em 1944, com 16 anos, foi presa e deportada com outros membros da sua família judia e laica. Passou pelos campos de concentração nazis de Auschwitz-Birkenau, Bobrek e Bergen-Belsen.

Simone e as suas duas irmãs sobreviveram à Shoah, mas a sua mãe morreu em Bergen-Belsen, no início de 1945 e nunca chegaram a saber o que aconteceu, de fato, ao pai e ao irmão, que nunca regressaram dos campos de concentração. Depois do seu regresso a Paris, em 1945, Simone dedicou-se aos estudos de direito e ciência política. Casou-se com Antoine Veil em 1946, adotando o seu apelido a partir dessa data.

Simone Veil segue a carreira de magistrada e é nessa qualidade que assume o papel de conselheira de alguns ministros da Justiça, inclusive François Miterrand. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo de secretária-geral do Conseil Supérieur de la Magistrature (Conselho Superior da Magistratura), a primeira a assumir as funções de Ministra de Estado em França e ainda a primeira a presidir ao Parlamento Europeu (de 1979 a 1982).

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A Madrugada em Birkenau
Capa d'A Madrugada em Birkenau, de Simone Veil, publicado em 2021 pela Quetzal Editores.

Em 1974, no governo de Giscard d’Estaing, assumiu o cargo de Ministra da Saúde e em 1975, depois de uma dura batalha, conseguiu que o aborto fosse despenalizado em França. Em 2008, foi eleita para a Académie Française e mandou gravar na espada que é forjada para cada um dos membros da academia três coisas: o número da sua tatuagem de Auschwitz que nunca retirou (78651), o lema da República Francesa (“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”) e o lema da União Europeia (“Unidos na Diversidade”). Faleceu a 30 de junho de 2017 e um ano depois, em julho de 2018, os seus restos mortais foram trasladados para o Panteão em Paris. 

A madrugada em Birkenau foi publicado em França em janeiro de 2019, e chegou a Portugal em maio de 2021, traduzido por Antonio Sabler e publicado pela Quetzal Editores. O livro tem este título porque, na cerimónia da entrada de Simone Veil no Panteão, em 2018, após o discurso presidencial, o realizador e escritor David Teboul apresentou durante o minuto de silêncio uma gravação que ele mesmo recolheu numa madrugada desse ano em Birkenau, com sons dos animais que hoje habitam os campos.

Esta obra é fruto de várias conversas que decorreram entre Simone Veil e o cineasta David Teboul ao longo de muitos anos. Os dois acabaram por se tornar grandes amigos e isso é visível em cada página da obra. Quem leu Uma vida (2008), a biografia de Simone Veil, sabe que nessa publicação a autora foi extremamente cautelosa e escolheu cuidadosamente cada palavra, como se se quisesse distanciar da sua vida, colocando-se como mera espetadora, talvez para conseguir relatar o que viveu com alguma tranquilidade, sem revelar grandes emoções.

Já em A madrugada em Birkenau sente-se que as palavras são completamente espontâneas, que são o resultado de conversas intimistas, das quais fazemos parte. Quando chegamos às páginas com fotografias, sentimo-nos a folhear o álbum de família, como se fossemos aqueles amigos recentes que estão a conhecer o mundo e o percurso da nova amizade que tanto prezam. Neste livro, Simone Veil fala da sua infância e adolescência antes da guerra, da prisão e deportação, da experiência nos campos de concentração, do regresso a França e de todas as lutas sociais e políticas que travou. 

A obra tem início com uma espécie de apresentação feita por David Teboul. Ele explica que viu Simone Veil pela primeira vez quanto tinha apenas 12 anos, num debate na televisão, após o último episódio da série americana Holocausto, e nunca mais deixou de pensar nela. A partir desta data, ele que tinha aprendido a esconder que era judeu “reivindicou as suas identidades plenamente francesa e judia sem as dissociar” (p.22), porque ela, com o seu discurso sem reservas tinha-o libertado da culpa e da vergonha que sentia do “Holocausto”. Escreve “Holocausto” entre aspas, ainda que com letras maiúsculas e afirma mais adiante “a Shoah, antes designada Holocausto” (p.22), como se Holocausto tivesse sido substituído por Shoah.

De fato, já Primo Levi referia que não existem palavras para definir o que aconteceu nos campos de concentração, muito embora o filósofo italiano Giorgio Agamben, no livro Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I, tenha sido perentório ao afirmar que insistir em utilizar o termo “’holocausto’ é uma irresponsável cegueira historiográfica”, porque:

“O hebreu sob o nazismo é o referente negativo privilegiado da nova soberania biopolítica e, como tal, um caso flagrante de homo sacer, no sentido de vida matável e insacrificável. O seu assassinato não constitui, portanto, como veremos, nem uma execução capital, nem um sacrifício, mas apenas a realização de uma mera 'matabilidade' que é inerente à condição de hebreu como tal".

“Quando se foi tratada como carne, é muito difícil convencer-se de que se permaneceu um ser humano. Esse era o combate que travávamos", disse Simone Veil.

A verdade difícil de ser aceite pelas próprias vítimas, mas que mesmo assim devemos ter a coragem de não cobrir com véus sacrificiais, é que os hebreus não foram exterminados no curso de um louco e gigantesco holocausto, mas literalmente, como Hitler havia anunciado, "como piolhos", ou seja, como vida nua. A dimensão na qual o extermínio teve lugar não é nem a religião nem o direito, mas a biopolítica”.

Com 30 anos, David Teboul sente que necessita de encontrar Simone Veil e procura-a para realizar um filme sobre a sua vida. De início ela recusa, mas mais tarde acaba por concordar. Ainda bem que o fez, porque isso deu-nos a oportunidade de conhecer esta mulher que travou tão duras batalhas e que descobrimos como alguém divertido, tolerante e livre. Sobretudo livre.

No capítulo seguinte, a “voz” já é a de Simone Veil, que nos conta os principais acontecimentos da sua vida. E, num livro que não faz nenhuma revelação inédita sobre este período da história da Europa, o importante é mesmo isto, a “voz” de Simone Veil, que vai alterando o tom cada vez que ocupa cada uma das cadeiras do seu lugar de fala.  

Começamos por conhecer a sua família e inteiramo-nos da sua infância e do início da adolescência em Nice, interrompida abruptamente pela sua prisão em 29 de março de 1944, quando tinha apenas 16 anos. Já tinha sido excluída do colégio por ser judia e já existiam relatos de refugiados absolutamente aterradores sobre o que se estava a passar na Alemanha, mas ninguém acreditava que a França poderia estar sob ameaça.

Simone diz: “Hoje, o que ainda não deixa de me intrigar é que o testemunho desses refugiados não tenha sido melhor entendido e que o desejo de fugir, quando havia ainda tempo, não tenha sido mais premente” (p.56). É de fato intrigante, porque segundo as investigações efetuadas fica demonstrado que a perseguição ao povo judeu foi executada por etapas, num processo em crescente espiral de violência.

Entre 1933 e 1939, os judeus foram isolados e definidos racialmente, tendo-lhes sido retiradas as suas propriedades e proibidos de exercer as suas profissões. A partir do início da II Guerra Mundial foram expulsos, deportados, guetizados, colocados em trabalhos forçados e assassinados em massa. Em França, a 16 e 17 de julho de 1942, ocorreu a Rusga do Velódromo de Inverno de Paris, onde mais de 13 mil judeus franceses ou residentes foram presos e confinados no Velódromo de Paris até serem deportados para os campos de concentração, principalmente para Auschwitz.

Por isso, sim, parece estranho que as pessoas não fugissem. No entanto, o historiador francês Florent Brayard (2019) revela, no livro Auschwitz: investigación sobre un complot nazi (Auschwitz: investigação sobre um complô nazi) que o plano para matar os judeus europeus era um segredo absoluto de um grupo de líderes nacional-socialistas muito próximos de Hitler. Esses líderes conseguiram esconder dos alemães, incluindo dos elementos do regime, e do resto do mundo a execução em massa, em Auschwitz e em outros campos de extermínio, de centenas de milhares de judeus da Europa Ocidental, incluindo alemães, entre 1942 e 1943.

Por outro lado, tornava-se difícil acreditar que as notícias sobre os horrores que se cometiam nos campos fossem verdadeiras numa Europa “civilizada”.

No final da guerra, em França, Simone Veil sentiu uma enorme frustração por se aperceber que ela e os que estiveram nos campos de concentração eram tratados com indiferença total ou com compaixão.

A verdade é que, nesta Europa civilizada, logo no comboio de Drancy para Auschwitz a adolescente de 16 anos observa os companheiros de vagão amontoados e reflete:

“O que eu já sabia foi confirmado: em tal situação, há os que têm os outros em conta, que procuram proteger os mais fracos, e há os que procuram sobreviver o melhor possível, mesmo que seja pisando os demais. Quando digo pisar, é de facto a palavra que convém. Quem quisesse mexer-se e pôr-se mais à vontade, só podia fazê-lo à custa dos outros” (p.67).

E, mais tarde, verbaliza, deste modo, a desumanização a que foram submetidos nos campos: “Quando se foi tratada como carne, é muito difícil convencer-se de que se permaneceu um ser humano. Esse era o combate que travávamos. O combate mais difícil” (p.85). Quando nos deparamos com testemunhos destes sentimo-nos completamente desconcertados, um misto de vergonha, medo e revolta toma conta de nós e lembramo-nos sempre da célebre frase do filósofo alemão Theodor Adorno (1969, p.26): “Escrever poesia depois de Auschwitz é um ato bárbaro”.

A vergonha de ser humano, como esclarece o filósofo francês Gilles Deleuze (1995), tem a ver com o fato de que outros humanos, que não eu, cometeram este genocídio e eu, de algum modo, compactuei com ele, porque sobrevivi e por isso, sinto vergonha e é essa vergonha de ser um humano “que faz com que a arte consista em liberar a vida que o homem aprisionou”. 

No final da guerra, no regresso a França, Simone Veil sente uma enorme frustração, porque se apercebe que ela e todos os que estiveram nos campos de concentração ou eram tratados com indiferença total ou com compaixão, por pessoas que ficavam completamente embaraçadas por serem obrigadas a dirigir-lhe a palavra: “Ouvíamos comentários descabidos ou até grosseiros. No fim do verão, quando a minha irmã e eu tínhamos os braços nus, com a tatuagem exposta, ouvimos: ‘Julgava que tinham morrido todos’, ou: ‘Olha, alguns sobreviveram’’” (p.99).

É um facto que só em 16 de julho de 1995, 50 anos após o fim da IIGuerra Mundial, é que Jacques Chirac reconheceu a responsabilidade da França pela deportação dos judeus. Foi o primeiro dirigente político a fazê-lo. Em  França foram presos e deportados 42 mil judeus e só sobreviveram e regressaram 811. Jacques Chirac, no discurso da mea culpa do país, salienta:

“Reconhecer as faltas do passado, não esconder nada das horas sombrias da nossa História, é defender uma ideia do Homem, da sua liberdade e da sua dignidade. Estas horas sombrias mancham a nossa história para sempre e são um insulto ao nosso passado e às nossas tradições. Sim, a loucura criminosa do ocupante foi, como todos sabem, secundada pelos franceses, secundada pelo Estado francês".

Não foi uma loucura. O Estado francês ao tomar a decisão de colaborar com o regime nazi, prendendo e deportando os judeus, transmitiu claramente a mensagem que as vidas dos judeus não tinham qualquer valor e eram consideradas dispensáveis. Eram corpos que não importavam, que possuíam vidas que não mereciam ser protegidas nem lamentadas, caso se perdessem (Butler, 2010). 

O relato de Simone continua e ela vai explicando como se reconstruiu, porque não tinha outra escolha. Afinal, “quando as coisas chegam a esse grau de tragédia só há duas possibilidades: desistir ou retomar o desejo de viver” (p.108). Ela escolheu desejar viver e construiu uma carreira política que teve várias frentes de batalha: despenalização do aborto, luta contra o negacionismo da Shoah, luta contra o antissemitismo e a defesa de uma Europa unida. Ao ler a forma como ela descreve as suas vitórias parece que todas foram muito fáceis de conseguir, mas, na verdade, teve dee lutar muito e foi atacada e ameaçada várias vezes com cartas que continham suásticas e insultos antissemitas.

O livro termina com conversas entre Simone e a sua irmã e dois amigos sobreviventes dos campos de concentração: Paul Schaffer e Marceline Loridan-Ivens, gravadas por David Teboul. Nestas conversas conseguimos invadir ainda mais o espaço e o pensamento de Simone Veil. Não porque o impomos, mas porque ela o deseja, como, aliás, o demonstra quando pede a David Teboul que faça alguma coisa com estas gravações, porque “ouve-se aqui e além que é preciso esquecer e também que é preciso perdoar. Não é a mesma coisa. Certo é ser preciso a todo o custo evitar o esquecimento” (p.104).

Este livro ajuda-nos a não esquecer, principalmente agora que a extrema-direita está a subir em toda a Europa. Por isso, devemos lê-lo. Devemos-lhe isso.