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Rui Ferreira Nunes: “Não se pode deixar uma pessoa fazer uma denúncia de violência sexual e deixá-la entregue a si própria”

O reconhecimento por parte das vítimas é um processo doloroso. Envolve fenómenos de culpabilização, estigmatização social e até vergonha. Não deixando de reconhecer o acompanhamento terapêutico como essencial, o psicanalista critica o facto de as recomendações e as comissões que defendem a prevenção do abuso terem um papel muito pequeno,“pois as vítimas não estão verdadeiramente protegidas”.

Entrevista
20 Abril 2023

Entra-se no consultório e dá-se de caras com uma obra que remete a Medusa. Não há vista, mas aquele quadro que preenche o gabinete localizado nos arredores da Avenida de Roma, em Lisboa, transporta-nos para uma espécie de tempo mítico. É a partir do sentimento de solidão, de profundo silêncio e de uma trajetória de sofrimento e de isolamento que o psicoterapeuta e psicanalista Rui Ferreira Nunes explica um contexto que não estaria muito longe do contexto mitológico da deusa: a violência sexual.

Consciente de que o crime de violação é um “gravíssimo atentado à dignidade humana”, o psicólogo responde com precisão quando se fala sobre poder: a violência sexual é sobre poder. “O abusador está sempre numa posição de poder perante a pessoa abusada e é importante tê-lo em consideração enquanto peça fundamental”, afirma em entrevista ao Setenta e Quatro.

O reconhecimento por parte das vítimas é um processo doloroso. Envolve fenómenos de culpabilização, estigmatização social e até vergonha. As questões são constantes. O porquê de não terem evitado ou de não terem feito qualquer coisa para evitar o abuso torna-se um beco sem saída. Estes são argumentos frequentes que, segundo Rui Ferreira Nunes, fazem com o sentimento de vergonha se torne algo muito tóxico: “é mais danosa e, na maioria das vezes, é incutida pelos próprios agressores, fazendo com que as vítimas acreditem serem cúmplices do crime”.

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Rui Ferreira Nunes
Rui Ferreira Nunes, psicoterapeuta e psicanalista residente em Lisboa que tem trabalhado com vítimas de violência sexual. 

Sobre a reação, ela varia, mas é importante que seja reconhecida mesmo pelo universo jurídico, para que “as vítimas de crimes sexuais não continuem a ser alvos de desconfiança, remarcado historicamente”. Os ataques de pânico são o exemplo mais próximo a que o psicanalista recorre. “As situações de abuso são semelhantes às situações de pânico. A pessoa não sabe como reagir. É apanhada de surpresa e o cérebro deixa de pensar, deixa de usar as suas funções cognitivas no sentido da ação, porque emocionalmente fica bloqueada. Há aqui várias camadas destes fenómenos e é muito difícil generalizar as coisas”, continua.

Os números das 15 mil vítimas que a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) apoiou em 2022 mostram que, deste total, 94% correspondem a crimes de violência doméstica ou a crimes sexuais. Estes dados mostram o quão “necessário é romper com a tendência à banalização e à aceitação da violência contra as crianças e as mulheres”. Ainda assim, alerta que apesar de haverem mais denúncias, "isso não significa mais condenações”.  

Não deixando de reconhecer o acompanhamento terapêutico como essencial, critica o facto de as recomendações e as comissões que defendem a prevenção do abuso terem um papel muito pequeno, “pois as vítimas não estão verdadeiramente protegidas”. E denuncia os riscos que a maior parte das vítimas tem corrido por causa da revitimização criada pela exposição mediática ou jurídica. 

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI.

Antes desta entrevista, partilhou connosco algumas opiniões sobre um caso de violência sexual que acompanhou. A vítima desenvolveu uma consciencialização da sua realidade e dos atos de que foi alvo, mas levou pelo menos cinco anos para que isso acontecesse. Há vítimas que escondem o trauma de si mesmas?

A aceitação da violência, quer pela vítima quer pelo agressor ou por terceiros, é resultante de crenças infundadas e construídas com recurso à banalização da dita pequena violência.

O contexto e as motivações associadas ao crime de violação variam de situação para situação, mas é importante perceber que há uma necessidade de se romper com a tendência de banalização e de aceitação da violência contra as crianças e as mulheres. É certo que há um maior número de denúncias, mas isso não significa maior número de condenações. 

A vítima sente que perde a sua identidade, apresentando quadros psicológicos associados à apatia, baixa autoestima, insegurança depressão, perturbação de stress pós-traumático, pensamentos recorrentes e intrusivos sobre o acontecimento. Há a chamada ativação física e emocional aumentada que abre espaços a abusos e excessos como o álcool e drogas. Mas estes são sintomas que vêm de um outro lugar. 

A consciencialização é sempre um processo complexo e muito demorado, diria até retardado por várias razões. Uma delas é a vergonha inerente à situação. A vítima sente-se muitas vezes culpada do que aconteceu ou que o poderia ter evitado, ter feito qualquer coisa para evitar o abuso, ter fugido, ter dito que não. São argumentos frequentes ao longo das últimas décadas, para não dizer século. Tudo isto leva a que a vítima se sinta culpada e envergonhada. A vergonha torna-se um sentimento muito tóxico. 

"Uma agressão sexual não é só física, também é psicológica. Intimidar uma pessoa, provocar, ameaçar, o tipo de toque, tudo isso é uma agressão sexual."

Há quem diga que acaba por ser um sentimento mais tóxico do que a própria culpa, porque a vergonha tem que ver com a estrutura [psicológica] do sujeito. Eu ter vergonha de mim próprio resulta da forma como me vejo e, por isso, a culpa tem que ver com o comportamento que tenho. É mais danosa e, na maioria das vezes, é incutida pelos próprios agressores, fazendo com que as vítimas acreditem serem cúmplices do crime. 

Isto pode acontecer também, obviamente, com os homens vítimas de violência sexual. Com as crianças é impressionante. Elas sentem-se culpadas por muitos motivos. É neste sentido que as pessoas não se apercebem que os abusos resultam de um desequilíbrio de poder.

A violência sexual é sobre poder?

Completamente. O abusador está sempre numa posição de poder perante a pessoa abusada e é importante tê-lo em consideração enquanto peça fundamental, mesmo no processo terapêutico. É urgente que seja posta em evidência, principalmente quando são pessoas mais jovens e se encontram numa relação em que estão fragilizadas e, no fundo, à mercê dos cuidados de alguém. 

Há também outros aspetos que se entrelaçam, como fazermos a pergunta base: o que é considerado uma agressão sexual? É uma discussão que se tem tido até a nível mediático e político. Uma agressão sexual não é só física, também é psicológica. Intimidar uma pessoa, provocar, ameaçar, o tipo de toque, tudo isso é uma agressão sexual. 

Não é por acaso que a Organização Mundial de Saúde (a OMS) diz que a violência começa numa “idade muito precoce”. Uma em quatro adolescentes entre os 15 e os 19 anos já tiveram uma relação em que foram sujeitas a violência física e sexual. Esta é uma altura da vida muito importante no crescimento. 

A própria questão do toque e a sua interpretação confunde as vítimas, porque pode dar azo a que também se questionem se o que lhes aconteceu foi mesmo um abuso ou se até insinuaram alguma coisa. Às vezes acontece que as pessoas até o possam fazer porque é tudo muito subjetivo e pode acontecer que haja, do ponto de vista erótico, algum comportamento lido de forma errada. Mas não deve ser um tema ou preocupação da vítima.

Mas isso acontece, porque há uma leitura contaminada por uma perspetiva misógina e patriarcal? 

Absolutamente. É importante relembrar que a violação é um crime associado à criminalidade violenta e grave. O homem está e tem estado sempre numa posição de dominância e, como tal, espera sempre ter determinado poder. É certo que houve uma enorme evolução e o #MeToo é também reflexo disso, assim como o papel constante e ativo de todos os movimentos feministas que têm colocado travão a estas situações. Quero acreditar que os homens têm noção disso - porque estamos a falar em contextos de violência, abuso ou assédio de homens para com mulheres -, mas a realidade é que continuam a haver abusos sexuais.

Se olharmos para a sociedade em geral, desde o abuso de menores até ao abuso em contextos mais lúdicos, os casos de jovens que abusam de pessoas em estados alterados do consciente estão sempre inseridos num contexto claro de poder. Neste caso, há um aproveitamento e as jovens sentem uma pressão dos rapazes que, em situações mais violentas, chegam até a usar da sua própria força.

Nestes panoramas, estas pessoas estão em desvantagem, estão numa posição de procura de ajuda e de vulnerabilidade e não estão capazes de todas as suas faculdades, mas se falarmos no abuso em geral, na sociedade, muitas vezes os homens aproveitam-se de uma certa posição de força, não só cultural mas também física. 

"O contexto e as motivações associadas ao crime de violação variam de situação para situação, mas é importante perceber que há uma necessidade de se romper com a tendência de banalização e de aceitação da violência contra as crianças e as mulheres."

A questão do poder em qualquer tipo de relação é uma questão fundamental. Mesmo na relação amorosa, quando há uma diferença de poder entre ambas as pessoas, isso tem uma consequência para a relação. Numa realidade em que se procura uma relação igualitária, as pessoas pensam que se trata de a mulher ter os mesmos direitos e, no fundo, poder estar em pé de igualdade com o homem, mas não é só isso. Numa relação em que há um desequilíbrio de poder psicológico vão resultar sempre consequências na dinâmica do próprio casal. 

Uma pessoa fica mais dependente e submete-se à outra mais facilmente, ou por não ter características de liderar ou por ser menos proativa, e isso leva a que fique mais reativa e vice-versa. Há um jogo na relação que não é saudável, e que permite muitas vezes levar a dinâmica a certas situações de abuso, porque, de facto, há um diferencial de poder logo à partida. Normalmente há sempre um diferencial de poder que leva a uma situação disfuncional ou abusiva. 

Esta questão cultural está muito intrínseca e isso é espantoso. As vítimas submetem-se muitas vezes aos abusos dos homens, ou seja, vêem-se forçadas a fazê-lo, porque acham que não têm alternativa. Acreditam que é apenas uma exaltação e, porventura, acreditam que é uma vez sem exemplo. Chegam até a desculpabilizar-se para si próprias para que não seja algo real. Estou sempre a recordar-me de casos que me passaram pelas mãos e é um referencial entre vários cenários e idades. Estas situações acontecem porque estas pessoas estão dependentes emocionalmente ou até mesmo financeiramente. 

Há estudos e investigações que sugerem que pode levar anos – às vezes décadas – para alguns sobreviventes perceberem ou aceitarem que a sua experiência equivale a agressão sexual ou violação.

Em termos clínicos, sabemos que existe compulsão à repetição. Uma pessoa vítima de abuso pode voltar a ser abusada num contexto que, de alguma maneira, replica a experiência do primeiro abuso. Numa situação em que haja um diferencial de poder, a pessoa fica um pouco à mercê da outra e, normalmente, está numa posição de vulnerabilidade. A vítima muitas vezes vai voltar a cair nesse lugar [lugar da vítima]. 

O tratamento de vítimas de abuso pode requerer muito tempo. Depende do abuso e do impacto do abuso. No caso sobre o  qual falámos foram precisos cinco anos para que a vítima conseguisse chegar a um estado diferente do que se encontrava. 

Nestas situações, qual é o objetivo da psicoterapia e da psicanálise? 

O abuso é sempre uma situação traumática, mesmo que a pessoa não o sinta como tal. Qualquer tipo de abuso é traumático, mas o abuso sexual é-o profundamente, porque vai interferir em aspetos fundamentais da estrutura psicológica da pessoa, que se liga à autoestima, à confiança e ao próprio funcionamento sexual. O chamado stress pós-traumático, categoria de diagnóstico associada às consequências de uma situação traumática, tem vários sintomas. Um deles são os flashbacks: a pessoa ficar por vezes a sentir-se quase bloqueada ou congelada quando está a ter sexo ou, na pior das situações, voltar a acontecer uma situação na qual acontece novamente um tipo de abuso. As pessoas constroem defesas para evitar sentir o trauma mais uma vez. 

Numa situação de perigo, presente em qualquer ato violento, o nosso cérebro reage automaticamente para nos proteger. Há três respostas possíveis e é necessário evidenciá-las para que estejamos conscientes destes comportamentos. Temos o fight, que é uma reação de luta para com o estímulo perigoso; temos o flight, quase como uma reação de fuga perante o perigo e o que muitas das vezes é questionável até no universo jurídico; e o freeze, encarado como reação de paralisação perante a situação perigosa. Estes são comportamentos que podem reproduzir-se não só durante como após o abuso. 

"A vítima sente-se muitas vezes culpada do que aconteceu ou que o poderia ter evitado, ter feito qualquer coisa para evitar o abuso, ter fugido, ter dito que não."

Ann Salter é uma das especialistas mais reputadas na área de abuso sexual e desde a década de 1990 que trabalha muito estas questões. A especialista destacava como os encontros sexuais são os factores que mais commumente espoletam flashbacks afectivos (affective flashbacks) nas vítimas de abuso sexual na infância. A isto chamamos reviver da experiência de abuso e, obviamente, estão incluídos nos critérios de diagnóstico para Perturbação pós-stress traumático, onde constituem um aspeto fulcral do quadro de ansiedade e depressão associado às vítimas de abuso sexual que pode continuar durante décadas após o abuso. Sei que parece muito claro e simples, mas é bem mais profundo do que podemos imaginar. 

Outras causas de problemas sexuais nos sobreviventes adultos estão relacionadas com a dissociação ocorrida durante o abuso sexual, defesa que surge como forma de prevenir a dor durante o acto sexual mas que acaba por prevenir também o prazer, o que leva as sobreviventes a evitar os encontros sexuais ou a terem o desejo diminuído. Há ainda outro mecanismo de defesa: o deixar de ter sensibilidade em diferentes partes do corpo, como se estivessem anestesiadas, nomeadamente em posições ou práticas sexuais associadas ao abuso. Podem até ter vaginismo, a dor na penetração, uma sintomatologia psicológica mas que é sentida como dor física, como impedimento. Portanto, pode haver vários tipos de sintomas que impedem a pessoa de ter um funcionamento normal, saudável e que se repercutem em várias dimensões da pessoa. A depressão é muito frequente, porque não se consegue esquecer.

Como o trauma tem um impacto tão grande, a pessoa evita e defende-se desse mesmo trauma inconscientemente. Claro que é sempre difícil, pois é um processo gradual. Podemos dizer que nunca fica completamente resolvido, mas pode aliviar bastante e permitir às pessoas terem um funcionamento saudável, que é o que se pretende. É importante sentir que a terapia pode ser reparadora da situação de abuso e permitir à pessoa avançar com a sua vida de uma forma menos condicionada pelas defesas e consequências do impacto do abuso. 

Nas narrativas de violência sexual também há lugar para o esquecimento, ou para a necessidade dele. 

Olhando para a abordagem psicanalítica, em função da particularidade atribuída às consequências das vivências traumáticas para cada indivíduo, é possível dizer que a psicanálise traz à tona elementos importantes para a compreensão do impacto do trauma na estruturação psíquica. Isso implica não só uma análise da vítima como da sua experiência. Aliás, nas situações em que as pessoas esquecem o abuso, o esquecimento é também uma defesa, são situações em que a memória desaparece do consciente. O [Sigmund] Freud já falava nisto: a foraclusão. 

A  memória desaparece, mas continuam os efeitos do que foi, do que desapareceu ou do que foi recalcado. Continuam a sentir-se na vida corrente. Portanto, a terapia, enquanto objetivo, é perceber. Começa por ser a compreensão do que ocorreu e como esta situação tem impacto na vida da pessoa. Depois, com uma preparação mais exímia, o trabalho passa por regressar um pouco ao cenário de abuso, alterar os próprios significados associados ao abuso, ou seja, fazer uma nova reinterpretação. Creio que é ajudar a pessoa a perceber que foi realmente uma vítima naquela situação, porque havia um diferencial de poder. É uma equação muito simples: alterar os dados do problema, lê-lo de uma forma diferente. Assim posso sentir-me, no caso de uma vítima mulher, mais empoderada para poder agir sobre o abuso, apresentar eventualmente uma queixa e sentir que não tem de ficar à mercê do seu próprio passado. Resumindo, a pessoa não tem de ficar retida num lugar do abuso e pode efetivamente transformar aspetos que a têm condicionado, libertar-se dessa carga. 

Há uma tendência no discurso da saúde de se equiparar responsabilidade jurídica e responsabilidade subjetiva. De que forma podemos ver o lugar atribuído à mulher no contexto de abuso pelo discurso da saúde, onde essa concepção orienta as abordagens clínicas da mulher nesses serviços e contextos?

A responsabilização ainda é a exceção, não a regra. Tem havido alguns sucessos em tribunais nacionais onde as mulheres arriscaram às vezes a vida, de modo muito corajoso e determinado. E não devia ser assim. Claro que a violação é um crime que chega muito menos aos tribunais do que outros crimes. No Reino Unido, menos de 2% dos casos de 2022 resultaram em acusações e se é assim no Reino Unido, como será num país em conflito, onde as mulheres têm dificuldade em aceder a apoio legal? Como diz a socióloga Isabel Ventura, ainda nos deparamos com "ideias flutuantes". Tratam-se de ideias que atravessam muito tempo e, por isso, é importante situarmo-nos historicamente. Lembro-me dela referir em entrevista ao Público que, juridicamente, 'há quem considere que crime de coito oral é menos grave que a penetração peniana vaginal'. Isto não está na lei. Numa análise psicanalítica não faz sentido algum. Mesmo com intervenção médica, com relatórios pedidos ou material de recolha de prova nos processos jurídicos, estas vítimas não deixam de estar expostas e o seu discurso a ser posto em causa.

Só em 2019 é que houve uma alteração na lei, mas este crime teve durante muitos anos um modelo de homem que penetra vaginalmente uma mulher contra a sua vontade ou mediante violência ou ameaça grave. E como dizia a agressão sexual, o abuso, a violação são também reproduzíveis de outras formas. Ainda permanece esta 'ideia flutuante' sobre a virgindade, como se a experiência sexual de alguma forma tornasse as mulheres imperfeitas.

"Tem havido alguns sucessos em tribunais nacionais onde as mulheres arriscaram às vezes a vida, de modo muito corajoso e determinado. E não devia ser assim."

Os mecanismos de proteção das vítimas têm de ser ajustados, ou criados e implementados. Ter um crime como o de violação como semipúblico significa que é preciso que seja a vítima a apresentar queixa. Isto tem impacto. As vítimas têm medo de várias coisas: do sistema judicial, de não serem acreditadas e há ainda um medo muito real de sofrerem uma nova vitimização, porque em diversos casos se vê uma ameaça contínua depois da apresentação da queixa.

Uma mulher a depor sozinha numa sala pode ser uma característica reativadora de trauma?

Isso carrega um estigma. Quando passamos do privado para o público, a mulher fica muito mais exposta. Muitas vezes, a mulher é vista como alguém de quem se deve duvidar. Questões como "Que tipo de pessoa é esta que se deixa abusar?" ou "Que tipo de pessoa é esta que não é capaz de pôr um limite?". Existem diferentes tipos de abuso, mas muitas vezes as pessoas não sabem. Claro que, no caso de um abuso repetido, entram numa dinâmica masoquista ou não têm noção que estão numa dinâmica masoquista. Pensam que aquela situação pode ser até um valor positivo para si. Isto é polémico e debatível, porque depende da interação que estamos a falar. 

Geoffroy de Lagasnerie [filósofo e sociólogo] fala-nos muito nestas questões: não podemos pôr um rótulo que no fundo seja indiferenciado relativamente às situações em particular. Por vezes, há situações muito ambíguas entre vítimas e abusadores em lugares de poder que manipulam ou criam um espectro e um conjunto de características que levam as vítimas a acreditar, a deixar-se seduzir e talvez a desvalorizar a questão sexual. Não se fala muito sobre a questão da erotização de parte a parte, mas isso não significa que haja consentimento.

Em abusos com adolescentes pode haver uma erotização do próprio agressor, como, por exemplo, o facto de serem homens mais velhos, que têm um lado mais masculino, mais forte, e que uma rapariga mais nova pode ver nessa figura uma forte componente erótica. Com isto não estou a incriminar a vítima, mas há diferentes tipos de cenários que podem acontecer. A pessoa mais jovem, menos experiente, fica à mercê de quem, no fundo, tem uma responsabilidade muito maior sobre ela. Mas às vezes essas coisas não são totalmente claras e levantam dúvidas, o que é uma questão completamente distinta e que tem de ser separada da questão da mulher. Uma mulher, por força da cultura dominante, sente-se logo à partida Inferiorizada ou desfavorecida pelas consequências de estar exposta numa situação dessas publicamente. Isto tem muito peso. 

Não nos esqueçamos do caso de [Harvey] Weinstein. Ele tem um perfil de agressor cada vez mais exposto nos últimos anos. Ele criava um esquema que levaria, propositadamente, as vítimas a deslocarem-se a um local em que estariam de forma deliberada e, depois, ameaçava-as criando a probabilidade de acontecer algo persecutório, cercando-as. Ouvimos relatos de mulheres que testemunharam ter um bloqueio, o tal freeze, e que faziam algo só para que aquilo acabasse. As situações de abuso são semelhantes às situações de pânico. A pessoa não sabe como reagir. É apanhada de surpresa e o cérebro deixa de pensar, deixa de usar as suas funções cognitivas no sentido da ação, porque emocionalmente fica bloqueada. Há aqui várias camadas destes fenómenos e é muito difícil generalizar as coisas.

"As situações de abuso são semelhantes às situações de pânico. A pessoa não sabe como reagir. É apanhada de surpresa e o cérebro deixa de pensar, deixa de usar as suas funções cognitivas no sentido da ação, porque emocionalmente fica bloqueada."

É também importante ver se a história da pessoa a deixa mais predisposta a ser vítima de abusos, porque pode ter dificuldades em dizer ‘não’ e, assim, ficar mais vulnerável. A estrutura psicológica, ou seja, o desenvolvimento psicológico da pessoa, tem também um papel importante. Não é totalmente decisivo, porque as pessoas são por vezes apanhadas de surpresa, mas também tem um papel preponderante quando a pessoa sente força.

É cada vez mais comum psicólogas e técnicas de apoio à vítima acompanharem as vítimas na sua preparação para audiências judiciais ou depoimentos para memórias futuras, de forma a “minorar” ao máximo os efeitos de um processo que tem de ser feito. 

Nas crianças que sofreram abusos, sim. As crianças neste momento estão extremamente protegidas à exposição num tribunal, porque isso seria absolutamente devastador. Poderia ser uma coisa muito violenta para uma criança, muito complicada de gerir do ponto de vista emocional.

Nas situações em que há uma preparação, permitimos que não se exponha uma criança a um cenário que pode ser muito violento ou traumatizante. Procura-se realmente respeitar o mundo mental da criança e agir de acordo com o seu funcionamento, protegendo-a, porque fica e está sempre numa posição de vulnerabilidade.

Nos adultos é uma questão mais complexa. Nos Estados Unidos, onde estudei, havia preparação das vítimas, mas recordo-me ainda que havia imensas pessoas, enquanto agressores, mandadas pelos tribunais para fazer terapia. Em Portugal só tive conhecimento de um caso desses, com uma outra colega. Não é comum comparativamente com o contexto norte-americano.

É importante ressalvar que em casos específicos, como a pedofilia, há um erro comum: a confusão da patologia com uma agressão sexual. A pedofilia é uma doença que pode ser tratada, mas cujo tratamento é muito difícil. Tem que ver com formas de abuso sobre o outro que acontecem nos mais variados cenários, nas mais variadas dimensões, entre as quais a sexual, e muitas vezes relaciona-se com o que temos estado a falar: o facto do homem estar numa posição de dominância na sociedade. 

Nunca fez terapia com um agressor? 

Normalmente, os agressores não recorrem à terapia. E não, nunca o fiz, mas tenho conhecimento de que nos Estados Unidos, pelo menos os estudos indicam-no, há terapias para o que consideram ser o "anger management": é o manejo da sua própria agressividade e da sua própria dificuldade em gerir os impulsos. Há um trabalho terapêutico que se pode fazer e que é muito mais eficaz em grupo, porque eles vêem no outro as suas próprias características e consegue-se trabalhar melhor algum tipo de controlo sobre esse impulso. Se o levarmos a determinadas situações e pensarmos num grau mais severo de controlo da impulsividade, pode ser muito destrutivo e, por vezes, o próprio agressor pode ganhar noção, o que também acontece nas relações conjugais, e partem para comportamentos abusivos ou reações físicas.

Vários especialistas dizem ser muito difícil definir um perfil de abusador e/ou agressor. Acredita que, atualmente, é cada vez menos alcançável?

Há vários perfis de agressores. Se estivermos a falar de um agressor com um perfil mais próximo da psicopatia, ele é capaz de antecipar o comportamento da pessoa e detetar as suas vulnerabilidades. Para as pessoas perceberem a mente de um psicopata, dou sempre como exemplo o filme "Silêncio dos Inocentes". Os psicopatas têm capacidades que uma pessoa normal, digamos, não tem. Uma das capacidades é detetar as vulnerabilidades e antecipar o comportamento da pessoa e, com isso, poder manipulá-la para os seus fins. Não têm sentimento de remorso nem de culpa e isso facilita o abuso. 

Em contexto de violência doméstica, é muito comum o agressor ter um comportamento completamente diferente para o exterior. O ser uma pessoa vista pelos vizinhos ou pelos amigos como uma pessoa impecável, uma pessoa simpática e muitas vezes carismática. Depois, dentro de casa, é o agressor.

Numa abordagem psicanalista, a intimidade traz à superfície questões que não foram bem resolvidas, até da própria infância ou do desenvolvimento, e que muitas vezes são projetadas na relação com o outro. Mas, na realidade, é muito difícil desenhar um perfil do agressor, porque há vários tipos de perfis. 

Há diferenças em termos de género entre agressores e vítimas?

Nas situações dos homens vítimas de violência sexual, o que posso perceber é que a maioria são vítimas de outros homens. E quando esses homens são vítimas de outros homens, há muitos factores que vão fazer com que se tornem resistentes a apresentar queixa. Porquê? Na maioria, pelos mesmos motivos que as vítimas mulheres apresentam e, por outro lado, porque há uma vergonha acentuada, porque deles não se espera que sejam fracos, vulneráveis. Há uma grande descrença sobre as vítimas.

Numa perspetiva clínica, o período legal para apresentar uma denúncia ou queixa de violação ou violência sexual não lhe parece curto? 

Sem dúvida. As pessoas não têm muitas vezes a consciência de que uma determinada prática foi abusiva. Depois de tomarem essa mesma consciência também precisam de algum tempo para pensarem o que querem fazer com a informação. E esse tempo tem de ser dado à pessoa, porque perceber o seu significado e o peso que tem em avançar com um processo contra um abusador é algo duro. Isto pode ser reparador para a própria vítima, mas pode também não o ser, traumatizando-a - todo o processo no tribunal, os inquéritos, a pessoa ter que voltar a viver o abuso naquele contexto. 

Uma coisa é a pessoa regressar ao abuso no contexto terapêutico. O contexto terapêutico é o contexto adequado para poder explorar esses detalhes, porque há segurança, há uma pessoa tecnicamente preparada para a ajudar e para conter, até do ponto de vista emocional, o que aquela pessoa está a sentir. Ela poderá em determinado momento interromper e deixar isso para a sessão seguinte ou para um outro momento. Todo o trabalho pode ser feito com um cuidado e com uma progressividade que num processo jurídico não acontece. Muitas vezes há até o confronto com a própria pessoa abusadora e isso pode ser traumatizante. 

"As recomendações, as comissões que defendem a prevenção do abuso, acabam por ter um papel muito pequeno porque as vítimas não estão verdadeiramente protegidas."

Já para outras pessoas é absolutamente necessário para se sentirem reparadas. É uma coisa de se fazer justiça. Assume-se que aquela pessoa tem de ser castigada e que não há outra maneira de castigá-la senão denunciá-la e processá-la, então “vou fazer isso porque sinto que, desta forma, fica reparada alguma coisa dentro de mim”. Isso é perfeitamente legítimo.

 Ainda assim, é preciso ter cuidado e não meter tudo no mesmo saco. Cada caso é um caso e o trabalho interno é o mais importante: como se vai gerir internamente as várias demandas da pessoa, como a procura de ajuda ou da terapia? Daqui vai depender muito que tipo de ação se pode fazer e até onde se pode ir. Isto está condicionado também por vários aspetos. 

Recordo-me que a advogada Rita Garcia Pereira disse uma coisa muito importante: as recomendações, as comissões que defendem a prevenção do abuso, acabam por ter um papel muito pequeno porque as vítimas não estão verdadeiramente protegidas. Os casos mediáticos são exemplo disso. Olhemos para a Faculdade de Direito de Lisboa em que se falou dos casos de assédio sexual. Tentou-se fazer algo de reação imediata, criou-se um gabinete de apoio, mas o certo é que depois do aval mediático as vítimas ficaram mais ou menos abandonadas, ficaram à sua mercê. Muitas vezes, as instituições não têm estrutura suficiente para fazer o acompanhamento e os processos disciplinares ficam muito aquém, porque as pessoas conhecem-se dentro das organizações. Acaba por não haver consequências suficientes de forma a proteger a vítima. 

No caso dos abusos das igrejas já se falou nisso. As pessoas fizeram as denúncias, o que foi bom, mas depois não há seguimento. Vão ficar entregues a si próprias? Tem de haver seguimento. Não se pode deixar uma pessoa fazer uma denúncia de violência sexual, abrir uma parte da sua vida extremamente traumática e deixá-la entregue a si própria. 

A morosidade da justiça também não ajuda. Isto tudo requer anos. Por exemplo, uma pessoa que entra para um processo terapêutico pode demorar décadas só para trabalhar as questões relacionadas com o primeiro abuso, muitas vezes prolongado no tempo. Um abuso gravíssimo leva bastante tempo para se conseguir trabalhar os vários aspetos, as consequências, recuperar a sua vida e a sua funcionalidade. No meio disto tudo, e após a decisão de fazer a denúncia propriamente dita, o crime já prescreveu. São questões realmente complexas e difíceis que a própria sociedade não tem sido capaz de responder. 

Novamente com uma lente psicanalítica, falamos de uma mudança para quantos anos?

No caso de menores, os abusos da igreja só poderiam ir até aos 23 anos e agora estendeu-se para os 30. Pensando nesse prazo e nestas situações, faz imenso sentido. Uma pessoa menor abusada vai demorar bastante até ter consciência do que aconteceu, do que se pode fazer, dos danos que resultaram desse abuso. Demora bastante tempo até  se sentir capaz de o expor e exteriorizar. Muitas vezes é necessário fazer terapia para poder de alguma forma lidar com o assunto e poder torná-lo público. A pessoa tem de estar psicologicamente preparada para fazer esta transição. 

Nesta questão dos abusos sexuais da Igreja, mas que é aplicável a todos os cenários, a comissão recomendou e todos os grupos parlamentares estiveram completamente de acordo: o ter até aos 30 anos para poder fazer uma denúncia, caso queira. Aqui, num contexto de abuso sexual de menores, já é um prazo aceitável.

Mas noutros contextos, como o da violência doméstica, do assédio ou da agressão, seis meses não é nada. A menos que haja prova material, em que a vítima vai a um hospital ou tem fotografias, ou tem provas materiais do abuso que possam de alguma forma comprovar que houve um abuso. Se assim não for torna-se tudo muito difícil de provar e, por isso, há quase um arrastar do processo ou um arquivamento imediato. Isto para dizer que deveria ser, no mínimo, um ano.