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Kuril Chto: “Em países totalitários, o 'poder da arte' não chega”

O artista russo acredita que, além da arte, o humor e a ironia são importantes armas para humanizar ditadores demasiado poderosos, para se “mitigar o medo” com que controlam as populações e para se dar alento a quem os quer combater.  

Entrevista
20 Abril 2023

Quando Kuril Chto cofundou o Museu de Arte Urbana de São Petersburgo, o primeiro museu no mundo dedicado inteiramente à street art, não via  esse ato como  inerentemente político, nem que se iria tornar num espaço onde se travariam “lutas políticas”. Para o artista russo de 33 anos, era uma maneira de “mostrar, explorar e explicar novos tipos de arte” no seio de uma cidade imperial, coração cultural da Rússia czarista, onde se pode visitar o Palácio de Inverno e o Hermitage.

Mas não demorou muito até que a sua tendência para a provocação, a ironia e o humor negro lhe trouxessem problemas bastante políticos. Quando promoveu uma exposição que juntava artistas russos e ucranianos, em manifesta oposição à invasão e anexação da Crimeia, em 2014, começou a ser acossado pelas autoridades. 

Em 2017, para comemorar os 100 anos da Revolução de Outubro, organizou uma outra exposição chamada “Melhores dias virão”. As paredes do complexo industrial onde se situa o museu foram pintadas de maneira a replicar as do Hermitage. Kuril Chto reapropriou-se de uma estátua de Vladimir Lenine, dos tempos soviéticos, que estava para ser destruída. Foi visitado pelos serviços secretos, que o “convidaram” a esconder algumas peças. “Não o fiz”, afirma o artista ao Setenta e Quatro. “Depois, saí do país.”

Depois de passar por Israel e Itália, instalou-se em Lisboa, e hoje pendula entre Nova Iorque e a capital portuguesa. “Antes da guerra passei anos a pintar coisas vulgares”, diz, referindo-se às suas ilustrações de tábuas de engomar a roupa, raladores, massajadores cranianos, cadeiras de plástico e caixotes do lixo. Queria “mostrar a alma” destes objetos produzidos em massa.

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Kuril Chto, artista russo, nasceu em São Petersburgo, Rússia. Vive em Lisboa desde 2017.

A convite da GAU - Galeria de Arte Urbana, Kurl Chto subiu à Graça, em Lisboa, e pintou um dos seus estendais numa parede branca da rua Damasceno Monteiro, entre o miradouro dos Barros e um mural de Mário Belém à saudade. Acrescentou-lhe um uniforme militar a secar, ao sol, para mostrar como “a guerra se tornou quotidiana”. Evitando “representações sombrias e assustadoras”, decidiu mostrar algo mais comum — “o que também pode ser assustador”, acrescenta — apelando a uma “pureza nos objetos que pode tornar pessoas em animais”.

O mural foi pintado na madrugada de 24 de fevereiro de 2023, exatamente um ano depois da invasão russa da Ucrânia. Chama-se “A guerra não acabou”. “Toda a gente se fartou da guerra rapidamente”, desabafa o artista. Para ele, todavia, é como “uma dor de dentes”. “Posso tentar fazer algo diferente, mas acabo sempre a pensar na guerra”, diz. Para aliviar essa dor, Kurtil Chto confia no processo artístico, mas também no humor e na ironia, que podem ser úteis para humanizar ditadores demasiado poderosos e “mitigar o medo” com que  controlam as populações. 

Cofundou o museu de street art de São Petersburgo, o primeiro na Rússia. A cidade é tida tanto como centro cultural como imperial do país. O objetivo era desafiar essas realidades?

Não o fizemos por razões políticas. A ideia não era criá-lo para travar lutas políticas. Isso veio depois. A intenção original era criar um espaço. Na Rússia não há espaços para mostrar, explorar e explicar novos tipos de arte. Quando abrimos o museu, São Petersburgo não tinha instalações culturais significativas fora do centro da cidade. Criámos o primeiro museu de arte urbana do mundo e, para manter a natureza efémera do género, novas obras são pintadas por cima das que lá estão todos os anos.

Também queríamos democratizar e desmonopolizar a cultura. São Petersburgo é uma cidade muito conservadora e as pessoas não estão muito dispostas a sair do centro. Gastamos muito tempo e recursos a levar as pessoas à zona industrial da cidade para ver arte “ultracontemporânea”. 

A tentativa de institucionalizar a arte urbana, em que muitos artistas trabalham ilegalmente, foi o grande desafio. Tivemos  que resolver constantemente muitos problemas pouco convencionais para manter acesos o espírito e a liberdade da arte urbana dentro de uma instituição cultural.

Que papel tem hoje a street art - ou a arte contemporânea, no geral - no panorama cultural russo?

Nos últimos dez anos, o regime tem-se tornado cada vez mais ditatorial. Sinto-me pessimista. Podemos dizer que o governo ganhou. Hoje, na Rússia, uma pessoa pode ser presa por fazer uma publicação contra a guerra no Instagram. Ou pode ser despedida do trabalho se fizer  um “gosto” nessa publicação.

Em certas cidades russas, nas entradas do metro, a polícia faz revistas arbitrárias, chegando a exigir que lhes sejam mostradas fotografias e mensagens privadas. E se esses agentes encontrarem algo que não gostam, as pessoas podem ser presas. É difícil falar sobre arte nestas condições, porque o processo artístico precisa de liberdade de expressão e de pensamento.

Ainda assim, há algumas pessoas, principalmente street artists (como o coletivo Yav ou os artistas Misha Marker e Vano Bogomaz), que tentam fazer arte de protesto nas ruas de São Petersburgo. Os seus trabalhos são destruídos poucas horas depois e passam a existir só na Internet. Preocupo-me com eles, porque a qualquer momento podem ser apanhados e presos. Depois, há artistas que continuam a fazer obras sobre temas alheios à guerra e à política, mas não acredito que isso seja verdadeira arte contemporânea, até porque o governo está a tentar cooptar a arte contemporânea russa para desviar a atenção de todos os problemas graves no país.

Mantém contacto com colegas seus, artistas?

Sim. Alguns começaram a apoiar o governo, talvez por ser a única forma de conseguirem algum dinheiro, algum financiamento para os seus trabalhos. Outros tentam não reagir politicamente, para não terem problemas. Os restantes saíram da Rússia e criticam a situação política a partir do exílio. Todos os meus amigos artistas já saíram da Rússia. A maioria partiu antes da guerra, como eu.
 

"Se um déspota é demasiado forte e mete medo a toda a gente, fazer piadas sobre ele pode torná-lo numa figura menos respeitada. Pode humanizá-lo, mitigar o medo e dar algum alento a quem quer combatê-lo."
 

Em 2017, co-curou uma exposição inspirada pelos 100 anos da Revolução Bolchevique, chamada “Melhores dias virão”. Que pensa hoje deste nome?

O nome era irónico, claro. Um bocadinho de humor negro. Mas foi o nome certo. Vi que a situação estava a piorar cada vez mais e era importante falar sobre isso. Quando fizemos a exposição, alguns dos meus colegas disseram-me que estava a ser demasiado radical e pessimista. Hoje sei que estava certo e que o projeto tinha algo de profético. Para mim era claro que o país estava a caminhar em direção a um precipício, e eu queria acordar as pessoas. Gritava através da minha arte.

A ironia tornou-se mais profunda. A situação piorou muito.

Logo na abertura da exposição. Os serviços secretos apareceram e disseram-me para mudar umas peças e tirar outras. Não o fiz. Depois saí do país. Hoje é normal haver esse tipo de “controleiros” nos museus russos.

Mas os problemas já haviam começado antes, quando organizou uma exposição que juntou artistas russos e ucranianos para denunciar a invasão da Crimeia.

Sim. Enfim, ninguém se pode sentir seguro na Rússia, de qualquer maneira. Um agente da polícia pode, simplesmente, plantar um saco de droga no teu bolso e levar-te preso. Obviamente que a situação ficou pior quando comecei a querer debater liberdades civis e problemas políticos. Ficou muito mais perigoso.

A arte contemporânea, seja street art ou música punk, tem algum poder para desafiar a ditadura russa?

A arte pode mudar coisas em países democráticos. As pessoas podem ir ver peças de arte, discuti-las, falar sobre elas e os seus significados. Em países totalitários, o “poder da arte” não chega. Ninguém quer ser associado a artistas politicamente incorretos quando se vive numa ditadura. Também foi por isso que saí da Rússia. Primeiro fui para Israel, depois para Itália e, finalmente, vim para Portugal. Primeiro, como já disse, não me sentia seguro. Ninguém se sente, creio. Depois, não tinha liberdade de expressão. Enquanto artista, preciso de liberdade de expressão para fazer o meu trabalho.

Os europeus e os norte-americanos parecem não entender o quão profundos são alguns dos problemas que existem na Rússia, como a pobreza extrema, a toxicodependência e o alcoolismo. A ditadura acentua tudo isso. E mesmo que estejam cientes que eles existam, não estão obrigados a fazer o que quer que seja sobre isso.

Ainda assim, a guerra pode ter oferecido ao mundo uma imagem mais fidedigna do que é a Rússia. A propaganda já não funciona. Já vimos soldados russos a tentar vender equipamento militar para terem algum dinheiro

É um tema que tem vindo a abordar no seu trabalho, especialmente no mural que pintou na Graça, em Lisboa. Por que razão decidiu pôr um uniforme militar numa das suas representações de estendais de roupa?

Antes da guerra, passei alguns anos a pintar coisas vulgares. Coisas que nos rodeiam todos os dias, como tábuas de engomar a roupa ou cadeiras de plástico. Ao contrário da pop art original, que repete as representações destes objetos produzidos industrialmente e em massa, quis mostrar a sua individualidade, a alma de cada um  deles. 

Em 2020, comecei a pintar estendais vazios. É um objeto muito português, de acordo com a minha experiência, tal como pendurar roupa a secar na rua ou à janela. Então, tendo encontrado o meu “herói”, continuei a explorar a sua essência ao colocá-lo noutros contextos.

Quando começou a guerra, decidi pendurar-lhe um uniforme militar. Queria mostrar que a guerra se tornou quotidiana, mesmo que se esteja longe da linha da frente. Vejo as notícias, tento ajudar amigos e refugiados ucranianos. Esta guerra é, provavelmente, a primeira que muitos de nós presenciamos de tão perto. A cobertura é extensa e exaustiva, principalmente online. Com tantos vídeos e tanta informação, a guerra torna-se muito pessoal. Queria mostrar isso.

Depois toda a gente se fartou da guerra, rapidamente. Quis relembrar que ela ainda não acabou. Eu entendo: é preciso muita energia para lutar. Para estar atento, todos os dias. Também não queria fazer algo deprimente. As pessoas tentam evitar representações sombrias ou assustadoras em tempos como estes. Então decidi fazer algo mais comum — o que também pode ser assustador.

E ainda há outro lado, o meu desejo que os soldados russos baixem as armas, o mais breve possível, dispam os uniformes e nunca mais voltem a vesti-los.

"A arte urbana é uma discussão com as pessoas à tua volta."

Acha possível um fenómeno alargado de deserção? Ou a radicalização sobrepõe-se?

O regime russo quer que a guerra continue, ainda que não esperasse uma resistência ucraniana tão forte. Não podem parar de lutar, pois admitir uma derrota seria um grande problema para o governo. Poderia espoletar todo o tipo de processos dentro do Kremlin e culminar na queda de [Vladimir] Putin.

Também não estou certo que a maioria dos russos queira o fim da guerra. Estou certo é que não sabem porquê. Foram empurrados. Passam muito tempo em frente à televisão e começam a acreditar no que veem e ouvem, especialmente os russos mais pobres. Acreditam que fazem bem em enviar os seus filhos para a guerra. Também há casos, amplamente discutidos pela comunicação social, de pais que mandam os filhos para a guerra para receberem subsídios do governo e pagarem dívidas. Há uma certa continuidade, um certo legado dos tempos da União Soviética. Os russos não souberam viver com a liberdade que veio depois do seu colapso e deixaram-se regressar a uma ditadura.

É fácil manipular o medo em que a maioria dos russos vive. Os europeus ocidentais cresceram em liberdade e considero que não seja fácil transformar um país da Europa Ocidental numa ditadura. Pelo menos não vejo as pessoas a viver com medo. Na Rússia, por outro lado, as pessoas tiveram de se adaptar a um regime que pode mentir, roubar e matar. Também há um grande problema de identidade nacional. A Rússia é uma mistura de coisas, construída sobre as ruínas da União Soviética e que ainda está à procura do seu lugar no mundo.

Disse que nunca quis ser um ativista político e que estes projetos sobre a guerra são muito dolorosos para si. Como lida com isso?

É como uma dor de dentes. Tentas fazer algo, mas ela está lá sempre a relembrar-te que há algo de errado com o teu dente. Posso tentar fazer algo diferente, sobre a beleza, por exemplo, mas acabo sempre a pensar na guerra.

Disse há pouco que o comum também pode ser assustador. Preocupa-o a facilidade com que os seres humanos podem cometer atrocidades?

Sim. Há uma pureza nos objetos que pode tornar pessoas em animais. A humanidade é mais frágil do que gostaríamos de acreditar. Penso recorrentemente em toda a tecnologia que se perdeu, durante séculos, depois da queda do Império Romano. As nossas sociedades são vulneráveis e não admitimos isso o suficiente.

O seu trabalho navega entre a ironia, a pós-ironia e a sinceridade, quase sempre com um lado humorístico, para explorar temas como a fragilidade e a hipocrisia. Porquê esta abordagem?

Desde criança que gosto de piadas e memes. Hoje faz parte da maneira como comunico. O humor pode ajudar. Pelo menos ajuda-me a mim. Quando tenho um problema sério - com o qual não consigo lidar - brincar com isso ajuda-me a torná-lo menos mau, não tão sério. Ajuda-me a encontrar soluções.

Também acho que pode funcionar contra ditadores. Se um déspota é demasiado forte e mete medo a toda a gente, fazer piadas sobre ele pode torná-lo numa figura menos respeitada. Pode humanizá-lo, mitigar o medo e dar algum alento a quem quer combatê-lo. O humor não é só piadas pouco sérias. Tem muito poder.

Em poucos dias, o seu mural foi rodeado de outros grafitti, especialmente frases contestatórias sobre a crise habitacional e o custo de vida. Que pensa disso?

É por isso que gosto de arte urbana: torna a expressão artística numa coisa viva. A guerra é um problema, mas está longe. Ter de pagar a renda é um problema que está bem perto, que sentimos na pele. É interessante ver tudo isso misturado. A arte urbana é uma discussão com as pessoas à tua volta.

Ainda assim, essas frases foram prontamente apagadas e a parede repintada de branco. Nesse processo, a sua assinatura também foi apagada, tornando o seu mural numa pintura anónima. Muda alguma coisa?

Nada. Faz parte do processo. Gosto de ver como a arte urbana vive e morre. Uma pessoa escreve algo e depois vem outra e responde-lhe. Sem a assinatura talvez outras pessoas fiquem mais confortáveis em pintar à volta - ou mesmo por cima. É interessante que ainda ninguém o tenha feito, mas se isso acontecer é perfeitamente normal.