Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Paris 2 (Panthéon-Assas), leciona Sociologia da Comunicação, Jornalismo de Investigação, Comunicação Política e Métodos de Investigação. O seu livro Les Portugais de France face à leur télévision. Médias, migrations et enjeux identitaires (2009) foi premiado com a menção honrosa do Prix national de la recherche de l’Inathèque de France.

Uma história dos portugueses em França: como uma emissão de rádio chegou a milhares de trabalhadores

Trabalhadores portugueses emigrantes produziram durante 26 anos uma emissão de rádio em língua portuguesa no serviço público francês de radiodifusão. As suas mais de sete mil edições entre 1966 e 1992 marcaram a vida de milhares de emigrantes ao dar-lhes um espaço de informação, de encontro e de expressão comunitária em França. Esta é sua história.

Ensaio
11 Maio 2023

A emigração é sempre uma história individual e uma aventura coletiva, fonte de reminiscências familiares e matriz de narrativas políticas. No seu rasto, assomam feridas abertas, trajetórias de superação e heranças intergeracionais. Não há português que não possua um familiar, amigo ou conhecido, mais próximo ou distante, que não tenha trilhado os caminhos da diáspora. A condição migratória não faz parte da nossa essência – como muitos se obstinam a martelar – mas foi amiúde a fórmula encontrada para ultrapassarmos as adversidades do momento. 

Se todos já ouvimos estórias de emigrantes, poucos conhecem realmente os meandros biográficos daqueles que um dia se puseram a caminho, tantas vezes clandestinamente. Durante décadas, umas vezes por pudor, outras por desinteresse dos interlocutores, muitos dos protagonistas desse êxodo massivo remeteram-se ou foram remetidos ao silêncio. Aqui e além, subsistem, porém, vestígios e testemunhos dessa história.

Como nos recorda a historiadora francesa Arlette Farge, “todas as sociedades funcionam sempre, em parte, ao lado daquilo que constitui a sua organização formal e, nesse hiato, emergem outras configurações do real”. Através das práticas quotidianas populares, apercebemo-nos que “o povo também produz um saber social. (…), dispõe de um modo prospetivo de compreensão do real”. 

Este ensaio – na encruzilhada entre os estudos sobre a produção discursiva e a receção dos media – percorre as diferentes fases da história de um programa radiofónico produzido durante um quarto de século (1966-1992) pelo serviço público francês para o público-alvo dos portugueses i(e)migrados naquele país.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Ser-se emigrante em França

Sob o impulso dum discurso político que quase sempre omite as causas do êxodo em favor duma representação romântica, a diáspora foi sendo entronizada embaixadora da nação, independentemente das histórias de vida e da diversidade dos laços que, de facto, unem os seus membros ao país de origem. Embora o êxodo de centenas de milhares de pessoas tenha, tantas vezes, sido um verdadeiro “voto pelos pés”, a figura do Português-emigrante é frequentemente associada – na senda dos Descobrimentos – as metáforas de navio-nação e de povo-peregrino ou, mais prosaicamente, à personagem de Oliveira da Figueira dos álbuns de Tintim. Todavia, o real tem bem mais matizes do que os quadros que dele pintamos.

Há mais de dois séculos que a representação social dos emigrantes tem oscilado entre o reconhecimento dos percursos de sucesso – concomitantemente vinculados à fidelidade à pátria e a uma integração exímia em todas as latitudes – e a estigmatização do estatuto e das práticas socioculturais. Até meados do século XX, é a figura do "Brasileiro" quem melhor encarna esse arquétipo do emigrante que fez fortuna, mas também concentra o escárnio dos compatriotas. Desde a década de 1960, é indubitavelmente a figura do "Francês" quem assume esse lugar no imaginário nacional, frequentemente vinculada a uma paleta de estereótipos (exibicionismo estival, culto do dinheiro, recurso obsessivo aos estrangeirismos e práticas culturais menos legítimas).

Ser migrante ou seu descendente é sentir-se amiúde empurrado para as margens da esfera pública, para um duplo estatuto de exterioridade, no país de acolhimento e no de origem. É ver-se atribuído um rótulo.

Esse olhar mais virulento visa essencialmente os “emigrantes”, isto é, os portugueses das classes média-baixa que partiram em busca de melhores condições de vida. Todos aqueles que se notabilizam no estrangeiro em termos económicos ou nas áreas da cultura, desporto ou política, são antes classificados como “portugueses de sucesso”. São os primeiros que procurámos sobretudo ouvir. Só mais recentemente se começou a dar importância aos registos (auto)biográficos desse pedaço de história, indo além das usuais sentenças paternalistas sobre os “nossos emigrantes”. Não são “nossos”, mas fazem parte da(s) nossa(s) história(s). 

A relação com “os nossos emigrantes” é deveras singular. O possessivo tanto pode ser marca de afeto como prenúncio de patrioteirismo. Antropologicamente, os símbolos simplificam os conceitos, dão-nos acesso a uma determinada dimensão do real, mas também nos incluem/excluem do espaço público. A representação do emigrante – termo que o uso tornou pejorativo – é inegavelmente um desses símbolos.

A experiência migratória é um lugar onde se entrecruzam jurisdições identitárias (origem étnica, género, formação académica, estatuto social, religião, etc.). Ser migrante ou seu descendente é sentir-se amiúde empurrado para as margens da esfera pública, para um duplo estatuto de exterioridade, no país de acolhimento e no de origem. É ver-se atribuído um rótulo, porque – por vivência ou herança – se partiu para/chegou de outro lugar. 

O olhar sobre o Outro é aqui tanto mais complexo que se trata do “estrangeiro”, daquele que, na aceção de Simmel, constitui uma figura social caracterizada por um misto de proximidade e distanciamento. O sociólogo alemão não define este conceito a partir da experiência do “viajante que chega hoje e parte amanhã, porém mais no sentido de uma pessoa que chega hoje e amanhã fica” . Não se trata do indivíduo de passagem ou que vive num país distante, mas daquele que partilha o “nosso” espaço físico, sem nele mergulhar as suas raízes.

Nas entrevistas efetuadas em trabalho de campo, quase sempre ouvimos a mesma observação: “Sou [fazem-me sentir] Francês em Portugal e Português em França”. Em função do locutor, interlocutor e contexto, os mais novos são designados ou autodefinem-se como “filhos de emigrantes” ou “descendentes de Portugueses”, membros da “segunda/terceira geração” ou da “comunidade portuguesa”, “luso-franceses” ou “luso-descendentes”, “portugueses” ou “franceses”. 

A esse propósito, abrimos um parêntesis. Não se deve esquecer que também elegemos os nossos temas de investigação por uma série de razões mais ou menos (im)precisas e (in)conscientes. Como lembra Schütz, “os objetos de pensamento construídos pelas ciências sociais, por forma a dominar esta realidade social, têm de ser fundados sobre objetos de pensamento construídos pelo senso comum dos homens que vivem a sua vida quotidiana no seu mundo social”. A objetividade não é incompatível com a experiência pessoal, nem a reflexão científica se circunscreve ao mundo etéreo dos conceitos ou ao universo das relações que regem a sociedade. Encarna na nossa experiência concreta.

Quando atravessou os Pirenéus, em finais de agosto de 1964, com uma dezena de companheiros, Armindo rematava uma extenuante viagem iniciada quinze dias antes nas encostas de Paredes de Coura. Saíra na madrugada do dia 6 – há datas que para sempre ficam gravadas na memória –, na véspera do seu 17º aniversário. Para livrar-se de uma guerra que não era a sua, almejando um futuro melhor. Meses a fio, labutou nas linhas dos caminhos de ferro dos arredores de Bordéus. Vivia numa barraca contígua onde até a cama era partilhada em turnos com colegas de fortuna. Foram cinco anos sem poder regressar à terra, exercendo os sete ofícios nos quatro cantos da França. 

No início de 1970, voltou para casar com a Narcisa. Instalaram-se em Clermont-Ferrand. Tiveram dois filhos. Regressaram ao Alto Minho, em julho de 1983. A história dos meus pais é igual a tantas outras. A história dos meus pais é diferente de todas as outras. O certo é que cada uma delas nos marca para sempre. Sendo investigador em Ciências Sociais, sou também filho da emigração. Mas voltemos aos anos 1960 e à primeira pessoa do plural.

Em contexto de ditadura, a confiscação do espaço público deixa aos indivíduos a escolha entre o apoio (in)condicional, o silêncio, a prisão, a clandestinidade e/ou exílio. O êxodo de centenas de milhares de pessoas, nas décadas de 1960/70, é uma das mais poderosas e coletivas manifestações da opinião pública portuguesa do século XX. Embora esta saída massiva se deva a uma diversidade de razões, encontramos aqui uma verdadeira tomada de posição por parte da população, até às aldeias mais recônditas. Aliás, nas dezenas de entrevistas efetuadas ao longo dos anos na região de Paris, apercebemo-nos que o silêncio e/ou o afastamento do espaço público nem sempre são sinónimos de desinteresse. 

Um operário fabril originário do concelho de Guimarães, hoje na reforma, relatava-nos, com profunda mágoa, essa manhã da segunda metade da década de 1970, quando um funcionário do centro de emprego lhe perguntava o que estava ali a fazer, numa altura em que toda gente emigrava. Dizia-nos, décadas depois: “Eu queria ficar na minha terra. Ainda hoje aquelas palavras me magoam. O meu país não queria mais de mim”. Partiu na semana seguinte. Nunca mais quis regressar a título definitivo, pelo menos até à data da nossa entrevista. Também ele foi um dos auditores do “programa para os trabalhadores portugueses” sobre o qual nos vamos agora debruçar.

A emissão em português que chegou a milhares de portugueses em França

Durante vinte e seis anos, essa emissão de rádio em língua portuguesa fez parte da programação do serviço público francês de radiodifusão. Entre setembro de 1966 e dezembro de 1992, mais de sete mil edições e dezenas – provavelmente centenas – de milhares de cartas participaram na história subterrânea dos portugueses em França. Tributário dos contextos sociopolíticas, este programa diário (de segunda à sexta) incentivou sucessivamente a informação administrativa, os incentivos ao regresso, a integração e a segunda geração. Além das intenções dos produtores, marcou a vida de milhares de pessoas, proporcionando-lhes um lugar de informação, de encontro e de expressão comunitária, na confluência dos espaços públicos dos dois países.

Durante um quarto de século, a “emissão para os trabalhadores portugueses” tornou-se um espaço mediático e comunitário fulcral na (re)configuração da dinâmica social desta diáspora, embora tenha sido remetido para um horário, um espaço e um estatuto suis generis. Apesar da sua longevidade, a inexistência de um arquivo público – escrito ou sonoro – testemunha da marginalidade à qual os seus auditores foram votados. 

Na tentativa de reencontrar fragmentos do fio de Ariana desta emissão, analisámos o conteúdo de vinte e cinco emissões e de 175 cartas de ouvintes, de modo a esboçar a evolução da política editorial, do papel dos jornalistas assim como das experiências dos auditores. Este trabalho assenta num percurso etnosociológico, procurando articular os constrangimentos institucionais, a vivência e o(s) discurso(s) dos atores sociais, a partir de uma arqueologia do(s) público(s) e da sedimentação das suas experiências.

Considerando a receção como um fenómeno temporal, social e prático, a nossa investigação procura ter em conta que a experiência dos ouvintes se inscreve nos meandros de uma hist6ria pessoal, mas também num percurso coletivo a base de mitos fundadores, de rituais de pertença, de representações, de experiências e de práticas culturais. Não se trata de postular a priori a existência de um ou de vário(s) público(s), mas de seguir o(s) seu(s) percurso(s). Não se trata sequer de falar em seu nome, mas de o(s) escutar, reservando-nos o direito de sondar as suas palavras e experiências.

Em França, a identidade da comunidade portuguesa mergulha as suas raízes antes da II Guerra Mundial, mas é sobretudo na senda do fluxo migratório dos anos 1960 que estrutura a sua história mais recente. Se em 1962 se contabilizavam cerca de 50 mil imigrantes, em 1975 são já mais de 750 mil os que se instalaram em território francês. Esta vaga migratória nasce nas regiões rurais do norte e centro, no sulco de uma profunda crise económica, carregando às costas um endémico atraso cultural de uma nação que apresenta uma taxa de analfabetismo na ordem dos 40% em 1960. 

No final dessa mesma década, a tiragem do conjunto dos jornais diários não ultrapassa meio milhão de exemplares para uma população de oito milhões e meio de habitantes e a televisão de serviço público (RTP), avaliava em cerca de 300 mil o número de televisores e a um milhão de telespectadores a audiência média diária. A rádio era, então, o único media verdadeiramente acessível ao conjunto dos portugueses.

É sobretudo, nos 1964-1968, que os media franceses descobrem esta migração que definem então como trabalhadora, mas também à margem da sociedade, denunciando ainda os tormentos do êxodo e da vida clandestina, assim como a precariedade dos bairros de lata. Escaldados por anos de censura, mas também algo reticentes face às autoridades francesas, os emigrantes portugueses têm tendência a isolar-se, a resolver os seus problemas entre si, limitando os contactos com as administrações dos dois países. Vivendo quase sempre em condições precárias, constituem então, quer no universo laboral, quer nos momentos de lazer, um verdadeiro subespaço público.

É neste contexto que o Ministério do Trabalho francês decide lançar a emissão portuguesa da ORTF. Ao longo de um quarto de século, começa por ter como alvo os “imigrantes” (1966-1975), para depois procurar cultivar os “nostálgicos” (1976-1982) e, por fim, os “cidadãos integrados” (1983-1992). 

Num breve parêntesis (1974-1975), durante a Revolução dos Cravos, os ouvintes procuram tomar conta deste espaço, deixando transparecer as diversas tonalidades de uma comunidade bem mais multifacetada do que muitos julgavam. No que se refere ao jornalista-animador, o seu papel concentra-se, de início, sobretudo, na função de especialista (1966-1973), passando depois mais a moderador engagé (1974-1975), pedagogo (1976-1982) e, por fim, informador (1983-1992), não sendo obviamente estas missões e funções totalmente estanques.

A delimitação de um território (1966-1973)

“A emissão dos trabalhadores portugueses”, confiada ao exilado Jorge Reis, inicia-se a 15 de setembro de 1966, sendo difundida a partir das 06h40 na rede B, pouco antes da abertura da programação diária da estação France-Culture. Estes dez minutos em língua portuguesa, maioritariamente dedicados a informação de cariz social visam, para as autoridades, uma melhor resolução dos problemas encontrados pelos imigrantes. O programa atinge uma tal notoriedade que se torna necessário instituir um sistema de fichas para obter junto das repartições competentes as informações pedidas pelos ouvintes, sendo as respostas individualmente comunicadas por via postal do correio ou coletivamente à antena.

Além dum primeiro contacto com os procedimentos e dispositivos duma sociedade cuja língua ainda não dominam, o programa propõe aos ouvintes notícias sobre a atualidade francesa e portuguesa, assim como música do país de origem, proporcionando-lhes um espaço mediático específico. Discos pedidos, mensagens ou esclarecimentos vários são pretexto para que dezenas de nomes sejam pronunciados em cada emissão. Um tal auditório, na sua maioria pouco escolarizado, encontra aqui condensados um serviço noticioso, indicações práticas e um vínculo social. 

O animador desempenha o papel de jornalista-especialista, de companheiro de migração/exílio e de confidente: um de especialista que sintetiza o essencial da atualidade; um companheiro pronto a empenhar-se pessoalmente pelos seus na resolução de problemas administrativos; um confidente que, na medida do possível, escuta e fala com cada um, dispensando conselhos, e a quem se contam as inquietações de todos os dias e, por vezes, as angústias mais profundas.

Concebido para eles e por um dos seus, este encontro quotidiano granjeia junto dos portugueses de França um estatuto particular que nenhum dos jornais de língua portuguesa tinha até então conseguido em terras de emigração. O animador passa a gozar do reconhecimento dos seus compatriotas: as cartas chegam às centenas todos os meses. Neste momento da história da emigração portuguesa em França, a “emissão de Jorge Reis” – nome que lhe é dado pelos seus ouvintes – participa inegavelmente na formação de um território específico onde se cruzam referências aos países de origem e de acolhimento e a uma comunidade em gestação.

 

Do país de origem...

 

“A catástrofe que se abateu sobre a região de Lisboa [inundações] poderia ser apenas mais uma parte (parte terrível) da atualidade. Mas não – é que este desastre toca-nos de perto e, sem exagero, fere-nos no mais íntimo... Quantas vidas brutalmente destruídas, quantas lágrimas, quanta dor...Desta vez, a catástrofe não teve lugar algures, em terra estranha. Passou-se na nossa própria pátria, no nosso próprio berço e as suas vítimas são carne da nossa carne... São parentes, amigos, camaradas de trabalho, conhecidos. São um pouco de nós." (emissão de 29/11/67).

 

...ao país de acolhimento...

 

«Prezado amigo, para ter direito ao seguro de maternidade, e preciso já estar inscrito na Caixa dez meses antes da data prevista para o parto e ter efetuado pelo menos 60 horas de trabalho assalariado, durante os três meses que precederam o início da gravidez da sua esposa. Aproveito a oportunidade para chamar a atenção, caros amigos, para a necessidade de conhecerem bem o funcionamento da Segurança Social, de modo a saberem quais são as vossas obrigações, mas também e sobretudo quais são os vossos direitos" (emissão de 12/01/68).

 

...uma comunidade em formação.

“Provam as milhares de cartas que há três meses nos vem chegando não só dos quatro cantos da França, mas também de Portugal, que esta emissão (esta pequena emissão deveria dizer) é realmente vossa. Desde o primeiro dia, tenho dito que ela será o que nós fizermos dela: vós que nos ouvis, nós que vos falamos. Entre nós, nao deve haver qualquer barreira, qualquer constrangimento. (...) Se diariamente pronuncio aqui esta palavra maravilhosa “amigo”, é porque realmente quero que me considerem como vosso amigo e me desvaneço em pensar que também vós sois meus amigos.” (emissão de 5/01/67).

No início dos anos 1970, uma parte deste público, já familiarizado com os mecanismos da administração francesa, vê surgir outras preocupações. Uma fração do correio passa a refletir a inquietação dos pais que veem os filhos crescerem sem acesso a aulas de língua portuguesa. A leitura destas missivas durante a emissão contribui para aumentar esta tomada de consciência. Por seu lado, Jorge Reis multiplica os contactos com o corpo docente e, apesar das clivagens políticas, ter-se-á encontrado oficiosamente em Paris com o então ministro da Educação Veiga Simão. 

Entretanto, são encetadas negociações entre dos dois países, resultando na criação de uma Inspeção geral para a língua portuguesa (junho de 1973). Ainda que não seja obviamente causa única, a introdução do português no sistema de ensino francês pré-universitário deve-se, em parte, à este mobilização coletiva que os criadores da emissão nao tinham certamente previsto. Mesmo antes de Abril, a comunidade portuguesa radicada em França descobre-se uma capacidade de ação.

Quando em 1972 a emissão portuguesa duplica o seu tempo de antena semanal, esta consciência coletiva em torno duma identidade é reforçada com a leitura de um correio testemunhal. As missivas, transbordando de recordações e confissões por vezes íntimas – até então apenas confiadas aos animadores como um segredo murmurado ao ouvido – sugerem a Jorge Reis a ideia de convidar os ouvintes a partilharem as suas histórias de vida para serem lidas à antena. Carregadas de saudade, centenas de cartas contam os usos e costumes das aldeias, as tradições de Natal das regiões de origem, mas também histórias pessoais, dramas e recordações de Portugal e da família, entre muitas outras temáticas:

“Gostei muito dos vários testemunhos sobre o Natal, porque não sabia como se festejava esta quadra nas outras regiões. (...) Conto-vos portanto como celebramos o Natal na minha pequena aldeia de M..., em Viana do Castelo. (...). Com o decorrer dos anos, tudo se vai esquecendo, sobretudo quando a vida esta cheia de espinhos, como a minha. (…) Esquecia-me de dizer que se em casa nao cheirar a pinhas assadas não é verdadeiramente Natal na noite de 24» (ouvinte de Seine-et-Marne, 10/01/74)

A comunidade dos ouvintes passa então de um estatuto de público-espetador, mais passivo e à procura de serviços, para o de público-ator que pega na caneta para partilhar uma experiência comum. Em poucos anos, a emissão transforma-se num espaço comunitário fundamental, inclusivamente cobiçado pelas várias sensibilidades políticas portuguesas. Apesar das convicções antifascistas do animador, as alusões à situação política em Portugal são, na maioria das vezes, prudentes, de modo a evitar tensões diplomáticas, postura que os acontecimentos dos meses seguintes não tardam a abalar.

Uma catarse coletiva (1974-1975)

Amordaçada por meio século de ditadura, a emigração portuguesa de cariz mais económico – não falamos aqui da franja mais formada e politizada dos exilados – assentava sobretudo num duplo projeto: o envio de divisas à família e a recusa da Guerra Colonial. Em ambos os casos, renunciar ao envolvimento político era, muitas vezes, considerada a atitude mais sensata. Excetuando os mais militantes, os emigrantes esquivam o debate ideológico, pelo menos nos espaços públicos, temendo inclusivamente a infiltração de agentes da PIDE.

Atentos à instabilidade no país, os ouvintes procuram, desde os primeiros meses de 1974, polarizar a emissão da ORTF em torno dum debate político que apenas a Revolução de Abril permitirá verdadeiramente estimular sem grandes receios de represálias. O tempo duma revolução, a emissão afasta-se quase por completo da sua missão inicial, metamorfoseando-se num espaço privilegiado de catarse coletiva para uma franja da população que os grandes media franceses continuam a descurar.

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Cartaz
Cartaz dirigido aos imigrantes no pós-25 de Abril de 1974 | DR

A correspondência dos meses que se seguem a Revolução traduz o estado de espírito de um auditório em plena ebulição. Jorge Reis passa a centrar o programa sobretudo em torno da atualidade portuguesa. A emissão alarga o seu raio de ação, permitindo exorcizar o passado e promover o debate político, as questões em torno da identidade e a mobilização coletiva. Torna-se, simultaneamente, um escape, uma ágora, uma fonte de introspeção e um estandarte.

Depois da queda do regime português, os emigrantes veem reforçado o sentimento de pertencer a uma geração que, à sua maneira, também combateu a ordem estabelecida. Inicia-se então um trabalho de reconfiguração da memória individual e coletiva. Não obstante dificuldades de expressão escrita bem tangíveis, uma necessidade irreprimível de exorcizar um passado doloroso leva centenas de ouvintes a colocar no papel recordações recalcadas por anos de mutismo: a saga do êxodo maciço e clandestino através dos Pireneus, as feridas das perseguições políticas e as penosas condições de vida em França. Memórias, mas também ajuste de contas constituem os principais eixos destas missivas catárticas, verdadeiras descargas emocionais.

Este movimento faz-se acompanhar pela aprendizagem da democracia, marcada por alguns excessos. A análise mais militante de Jorge Reis fere tanto os nostálgicos da ditadura como os socialistas ou os católicos. O combate político vivido no seio da esquerda portuguesa reproduz-se no corpus epistolar. Centro da discussão ideológica da diáspora lusitana, o programa torna-se uma ágora que, por vezes, se transforma em tribunal, colocando em causa o próprio animador. Lidas a antena, algumas cartas anónimas, de uma particular virulência, assim como os testemunhos de solidariedade, animam o debate.

Estas controvérsias levam incontestavelmente a uma introspeção individual e coletiva sobre a relação simbólica mantida com a nação portuguesa a partir do exterior. A questão do serviço militar e o estatuto de milhares de refratários e desertores é, disso, sintomática. Para milhares de jovens, tanto ou mais do que a questão da regularização administrativa, é a justificação de um ato que está em causa: a ausência de um patriota na altura da libertação do seu país. A comunidade emigrante legitima, então, a sua identidade patriota, valorizando o envio maciço de divisas, argumento aliás retomado pelos vários partidos doravante em luta pelo poder.

Desta tomada de consciência, associada a um certo sentimento de culpa pelo afastamento, brota o desejo de participar, de diversas formas, na construção de um novo Portugal. A emissão torna-se, também, um dos estandartes em torno dos quais estes portugueses debatem a democracia. Animados pela leitura das cartas, participam em campanhas como a de "um dia de salário pela Nação" e preparam um grande encontro em Lisboa em agosto de 1974, onde podem finalmente celebrar a Revolução dos Cravos com os compatriotas no próprio espaço público nacional. Este é um dos momentos-chave na construção do público emigrante português. 

Como muito bem sublinha o cientista social Daniel Dayan, “a noção de Público consiste não somente em ver, mas também em ser visto. Qualquer público remete para outro público que o está a ver (...) Por outras palavras, fazer parte de um público é entregar-se a uma performance. Esta performance pode ser consensual ou polémica, mas não invisível”.

Em setembro de 1975, a diplomacia portuguesa ter-se-á queixado da orientação política da emissão junto do Quai d'Orsay. O seu conteúdo passa então, em termos noticiosos, a cingir-se à atualidade francesa.

 

O 25 de Abril da emigracão

 

Exorcizar o passado...

 

“Desde o dia 25 de Abril, dia lembrado por todos os portugueses que querem o novo regime, porque fartos do pesadelo, oiço-vos todos os dias. Também eu sou uma dessas vítimas, uma entre as milhares do Antigo Regime. (...) Quantos, como eu, fugiram ao seu jugo, as constantes ameaças e a prisão por tudo e por nada. (...) Lembro-me de um capitão. (...) E um dos maiores traidores! Expulsou muitos homens.

Recordo-me de um tal F..., de Paredes de Coura, que tinha oito filhos. Hoje deve estar morto... Um dia encontrei-o. O homem chorava. Queria dar pão aos filhos e nao tinha dinheiro para o comprar.” (ouvinte do Val-de Marne, 20/05/74).

 

Debater a democracia...

 

“Antes tinha toda a confiança em si [jornalista], mas hoje já nao. Vejo que não tem caráter nem patriotismo. Não quero ofender ninguém, mas as verdades têm de ser ditas. Além disso, agora já podemos falar (...). Antes Portugal era um jardim, hoje falam do passado como se em Portugal apenas existissem urtigas (...) Não sou contra os comunistas, mas contra os erros que espalham pelo mundo inteiro. E o mundo deixa-se levar pela ilusão. (...) Porque é que falam assim? Para enganar o povo? (...) Portugal já não é o que era, corre em direção ao ateísmo na atmosfera dos erros comunistas” (ouvinte do Val d'Oise, 21/05/74)

 

Servir a Pátria...

 

“Soou a hora da liberdade. É tempo de servir o Estado português com honra e prazer, como deve ser. Meus queridos amigos portugueses, façamos uma surpresa ao nosso General, no mês de Agosto, demonstrando-lhe que estamos prontos para defender o nosso pais (...). Vamos mostrar que nao abandonamos Portugal por ter medo do uniforme, mas pelo terror que sofriam os nossos irmãos além-mar. Estamos prontos a cumprir o nosso servi90 militar, creio que seis meses ou um ano. Os jovens portugueses que se encontram todos os domingos na feira de Villiers-sur-Marne, a feira dos portugueses, apenas dizem uma coisa: queremos poder regressar tranquilamente as nossas casas e acabar com o exilio” (ouvinte do Val-de-Marne, 03/05/74).

 

Enviar divisas...

 

“A vossa missão é de trabalhar para nos dar as melhores informações, sobre o que se passa em Portugal, sobre os nossos direitos enquanto trabalhadores em França e tranquilizar os nossos corações em constante sobressalto por causa dos rumores. E são estes rumores que me levam a escrever-lhe, para que possa desmentir uma mentira que se ouve em Estrasburgo, Na passada semana, uma mulher contou à minha mulher e aos outros na fábrica que os bancos portugueses estavam a beira da falência. Um banco já tinha ido à falência e as pessoas tinham perdido o seu dinheiro. A minha mulher respondeu-lhes: «Então. nao vou enviar mais dinheiro para Portugal." Veja bem sr. Jorge Reis! Como é que isto é possível?! Ficaria agradecido se um dia destes pusesse fim a este rumor.” (ouvinte do Bas-Rhin, 18/02/75)

 

Fazer parte do coletivo na libertação..

 

“Eu então tive uma ideia, para que os nossos heroicos soldados fiquem a saber que nós, os emigrantes, estamos afastados do nosso querido Portugal, mas temo-lo sempre próximo do coração. Tive a ideia de contactar as nossas fronteiras portuguesas, com a ajuda do nosso amigo Jorge Reis para ai encontrar um local (tanto para os que vão de carro como de comboio), de modo a que ai possamos deixar uma lembrança para os nossos her6icos soldados. Essa lembrança, depositada a entrada da fronteira a partir do dia 1 de Julho, deveria ser, caso todos os emigrantes estejam de acordo, cinco maços de tabaco de qualquer marca, tendo em cada um dos pacotes o nome da pessoa que o oferece e a sua morada em França. Que esta seja uma pequena recordação do 25 de Abril! Gostaria que outros emigrantes escrevessem a vossa e a nossa emissão para que dessem a sua opinião” (ouvinte de Seine-et-Marne, 14/05/74).

 

Incitação ao regresso versus afirmação da identidade (1976-1982)

Fustigada pela subida do preço do petróleo e do desemprego, a França encerra oficialmente as suas fronteiras a imigração a 5 de julho de 1974. Os reagrupamentos familiares confirmam o caráter duradouro de uma migração que muitos teimavam ainda em considerar temporária. Neste contexto, a promoção da “cultura imigrante” inscreve-se numa política de incentivo ao regresso, da qual o “milhão Stoléru” é a manifestação mais evidente. 

O conjunto das emissões passa por um ajustamento editorial que se traduz nas primeiras grelhas semanais constituídas por flashes informativos sobre a atualidade francesa, internacional e do país de origem, crónicas sociais sobre a legislação, anúncios de emprego, reportagens e resultados desportivos, rubricas dedicadas às crianças, crónicas culturais e, por vezes, folhetins. A Secretaria de Estado francesa incitava fortemente a redação a multiplicar as reportagens sobre o apoio ao regresso a Portugal. Do seu lado, Jorge Reis aproveita também um tal reajustamento para se investir no papel de pedagogo, explorando temas de caráter histórico, literário e cultural:

“Mas para já vamos ler um trecho de Aquilino Ribeiro, com os votos que os nossos amigos desejem conhecê-lo melhor e comprar os seus livros quando forem de férias a Portugal” (emissão de 02/05/81).

Compulsando momentos-chave da história de Portugal e trechos de romances, o animador continua, todavia, a solicitar a participação dos ouvintes, através de testemunhos acerca do investimento das suas poupanças, por exemplo, ou – num registo completamente diferente – sobre as preces e superstições transmitidas de geração em geração. Este público, doravante consciente da sua singularidade, investe coletivamente este espaço, reorganizado pelas instituições francesas e remodelado pelo animador, enquanto lugar de reconfiguração da memória e do sentido, de debate, por vezes consensual, por vezes polémico.

“Além disso – e digo isto porque estamos entre nós, portugueses e que ninguém nos ouve –, há cartas com perguntas que eu como trabalhador e como português, nunca faria a um Ministro francês. Por uma questão de pudor e de brio. (...) A estes compatriotas dizemos: caros amigos, não e não. Estas cartas ficam entre nós, ficam em família. Desta forma, nenhum estrangeiro será obrigado a ver-me corar de vergonha” (emissão de 29/09/80).

A chegada de François Mitterrand ao poder em 1981 marca uma viragem na política de imigração com a liberalização total do direito ao associativismo para os estrangeiros, a campanha de regularização dos clandestinos e a legalização das rádios locais. Neste contexto de mudança, o relatório Gaspard preconiza a supressão das emissões para os imigrantes e a transição dos seus objetivos sociopolíticos no âmbito do conjunto de programas de caráter geral do serviço público. Muito contestado, este projeto culmina, todavia, numa reorganização das emissões da RFI. É então que Jorge Reis decide pôr um termo à sua carreira, facilitando a implementação de uma nova política noticiosa.

A inserção à prova da receção (1983-1992)

A nova redação portuguesa empenha-se em renovar a programação: ligações telefónicas quase diárias com Portugal, novas rubricas, entrevistas e um maior número de reportagens. A informação sobrepõe-se definitivamente ao animador engagé no centro deste sistema mediático que os relatórios de atividade da RFI definem doravante em torno de quatro eixos essenciais: informação; inserção dos imigrantes na sociedade francesa; ligação cultural com o país de origem e apoio à vida associativa.

O conceito de comunidade portuguesa, enquanto referente simbólico original, começa a diluir-se em detrimento de uma representação na qual o espaço público francês é designado como esfera de pertença privilegiada. Tal mudança radical pretende guiar o público imigrante na senda da integração, procurando ainda seduzir a segunda geração. Se atentarmos às estatísticas do fluxo da correspondência, os ouvintes parecem aderir à nova formula, mas os números são muitas vezes dopados com alguns passatempos.

A experiência das diásporas, noção intermediária entre o local e o global, é estrutural nas sociedades contemporâneas, diariamente confrontadas aos discursos sobre a mundialização, a proliferação das redes sociais digitais, a dissolução dos laços sociais e o regresso dos nacionalismos.

Contudo, revela-se utópico atrair os mais jovens com uma “emissão para os trabalhadores portugueses”, difundida entre as 05h35 e as 06h00. É, por isso, que se opera uma nova reestruturação, a 1 de janeiro de 1986, aquando da entrada de Portugal na CEE. Depois de 20 anos de encontro matinal, a seção portuguesa consegue meia hora em horário noturno, entre as 22h00 e as 22h30, rebatizada “Descoberta”. O programa quer abrir definitivamente as portas aos filhos e netos do seu auditório histórico, graças a um estilo mais ritmado e musical. O abandono da antiga denominação assinala uma viragem editorial. Quando algumas vozes se levantam contra a própria existência da emissão, é a última tentativa para a manter em vida.

As autoridades francesas começam por impor a utilização exclusiva da língua francesa, mas a experiência revela-se um fracasso, passando-se rapidamente para o compromisso de uma fórmula bilingue. Em termos de conteúdo, a informação social passa a limitar fortemente a análise política e o correio dos ouvintes. As rubricas tradicionais mantêm-se, privilegiando, todavia, a integração, a juventude e a cultura. Tais mudanças traduzem-se então numa diminuição da audiência: a correspondência cai para metade, entre 1986 e 1987, passando de 9 483 para 4 688 cartas anuais.

Habituada a uma emissão matinal em língua portuguesa e a temas mais tradicionais, a primeira geração perde as suas referências, enquanto a segunda não adere à nova fórmula. Será necessário esperar por 1990 para que as estatísticas retomem os valores anteriores. Contudo, uma análise mais fina revela que doravante cerca de 40% da correspondência chega de Portugal. A comparação entre três anos com taxas de correspondência semelhantes (1982, 1985 e 1991) ilustra uma tal mudança na composição do público. 

Enquanto, nos dois primeiros anos, perto de 96% das cartas são oriundas de França, no início da década seguinte são apenas 56,8%. Tais auditores são, na sua maioria, ex-emigrantes regressados ao país de origem, que doravante sentem a necessidade de manter uma ligação com a comunidade da qual fizeram parte durante largos anos. A emissão funciona mais como um media para a lusofonia, do que propriamente um vetor de integração e de mobilização da juventude de origem portuguesa, o que constituía o objetivo inicialmente traçado. Esta quebra é igualmente percetível no conteúdo das missivas dos ouvintes residentes em França que continuam a solicitar esclarecimentos de índole administrativa.

Em junho de 1989, as autoridades francesas deixam de financiar o programa, com o pretexto de que os portugueses estavam suficientemente bem integrados. A RFI assegura a sua continuidade apenas até 31 de dezembro de 1992, data em que a Descoberta desaparece por falta de financiamento. O fim da emissão corresponde ao fim de um período específico da história dos portugueses em França, mas também culminar de um processo de confrontação entre diferentes conceções do fenómeno migratório, do papel dos media e do serviço público. Um quarto de século depois da sua criação, precisamente no ano da criação do canal RTP Internacional, este espaço comunitário é suprimido.

O quadro que acabamos de esboçar é inevitavelmente redutor. Ao longo destes anos, o público aprendeu a lidar com diversas produções e experiências mediáticas. Noutras publicações mais centradas sobre a experiências dos auditores e na análise das suas cartas, vimos como esta emissão foi sobretudo vivida como um refúgio por aqueles que apelidámos de “solitários”, de “nostálgicos” e de “imigrantes”, respetivamente por razões, pessoais, históricas e sociais. Em compensação, junto dos auditores que apelidámos de “autodidatas”, “cidadãos” e “mediadores” suscitou sobretudo uma passagem a um certo cosmopolitismo, respetivamente, por motivos de índole intelectual, de participação cívica e de mediação associativa. 

Durante duas décadas e meia, foi-se desenvolvendo uma microesfera pública, um território de comunicação, mas a emissão só por si não constituiu nem um fator de isolamento, nem um vetor de integração na sociedade de acolhimento. A carta das significações e das experiências (co)construídas pelos ouvintes, assim como a consciência de pertencer a um determinado público, articulam uma serie de variáveis que não dependem apenas do texto mediático, nem de critérios meramente comunitários.

A receção desta emissão foi um lugar de produção de sentido onde se entrecruzaram as estruturas interpretativas das instituições e dos animadores com as dos ouvintes. Estes endossaram identidades e solicitaram quadros de leituras diversificados, cujas gramáticas remetem para experiências pessoais e territórios sociais particulares. Destinos individuais e pertenças coletivas, lógicas cognitivas e emotivas modelaram as práticas propostas pelos produtores. A receção e a (co)construção do(s) sentido(s) joga-se sempre na interação entre quadros de interação distintos. Trata-se de uma questão de identidade. É sempre a imagem do outro e de nós mesmos que está em jogo, o modo como o percebemos e nos percebemos na complexidade de um real em marcha.

A experiência das diásporas, noção intermediária entre o local e o global, é estrutural nas sociedades contemporâneas, diariamente confrontadas aos discursos sobre a mundialização, a proliferação das redes sociais digitais, a dissolução dos laços sociais e o regresso dos nacionalismos. Apresentada ora como símbolo de abertura, ora como arquétipo de isolamento, condensa as vicissitudes de todo o processo de construção da identidade. Se a sociologia das migrações não pode mais ignorar a investigação sobre os media e os seus públicos, a sociologia dos media também não pode escapar a uma maior inflexão antropológica.

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Cartaz