Redatora na revista britânica Tribune e autora de Stolen: How to save the world from Financialisation.

A subida das taxas de juro no Ocidente está a sufocar com dívida o Sul Global

Os decisores políticos do Norte Global responderam ao aumento da inflação aumentando as taxas de juros. Isso é mau para os seus próprios trabalhadores – e está a criar uma crise de dívida em muitos países do Sul Global.

Ensaio
11 Maio 2023

No final do ano passado, o Gana entrou em incumprimento de dívida quando o governo suspendeu o pagamento da maioria dos empréstimos devidos a credores estrangeiros. Em meados de 2022, o Sri Lanka também entrou em default quando a inflação fez o valor da sua moeda cair em derrocada, exacerbando a crise do custo de vida, com bens essenciais, como alimentos e medicamentos, a tornarem-se cada vez mais caros.

Este ano, o Paquistão viu-se à beira do incumprimento do pagamento da sua dívida quando uma combinação de inflação alta e desastres ambientais, fruto do colapso climático, devastaram a sua economia. A situação paquistanesa é particularmente preocupante, visto que a sua população nacional é a quinta maior do mundo. Outros países, como a Zâmbia e o Líbano, estão igualmente em incumprimento, mas há muito mais tempo.

Inflação alta e baixo crescimento global têm arruinado várias economias pobres, ao mesmo tempo que o aumento das taxas de juro têm tornado mais caros os encargos de dívida. Metade dos países mais pobres estão já em situação de sobreendividamento — quando um país não é capaz de cumprir as suas obrigações financeiras e lhe é exigido uma reestruturação de dívida. A outra metade está em risco de cair nessa situação.

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Resumidamente, a economia mundial já vive uma crise de dívida soberana. A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (CNUCD) já avisou que os países em desenvolvimento enfrentam uma “década perdida” como resultado da crise de dívida, estimando que os encargos de dívida custarão a estes estados pelo menos 800 mil milhões de dólares.

Há, claro, diferenças claras entre as situações económicas e políticas de cada país atualmente em — ou à beira do — incumprimento. No caso do Gana, grande parte da sua dívida foi contraída a credores domésticos, não estrangeiros. O seu incumprimento cria, portanto, o risco de um profundo abalo ao seu setor financeiro nacional, o que provavelmente ressoaria no resto da sua economia.

O Sri Lanka, antigamente um menino de ouro dos mercados financeiros internacionais pelo seu bom historial de pagamentos de dívida, geriu mal a negociação com os credores quando a crise económica se agudizou. E países como o Paquistão e o Líbano, à beira do incumprimento, sofrem de décadas de corrupção e má gestão política.

"Ao aumentar as taxas de juro, os 'banqueiros-centrais' esperam abrandar o crescimento e o desenvolvimento, aumentando o desemprego para disciplinar os trabalhadores, obrigando-os a aceitar salários menores. Ou seja, pôr os trabalhadores a pagar a crise uma crise que não foi criada por eles."

Mesmo que seja importante não escusar as elites domésticas das suas responsabilidades no exacerbar das crises de dívida dos seus respectivos países, é também essencial reconhecer os fatores globais que guiam o sobreendividamento pelos países em desenvolvimento — e um dos mais importantes é a maneira como os países ricos estão a lidar com as suas crises económicas.

A crise inflacionária que começou a lavrar pela economia mundial é alimentada por três fatores principais: a recuperação desigual da pandemia, a guerra na Ucrânia e o usualmente esquecido colapso climático. Não são problemas que se resolvam ao remexer no custo de se pedir dinheiro emprestado. E, mesmo assim, tem sido essa a principal resposta dos decisores políticos.

Ao aumentar as taxas de juro, os “banqueiros-centrais” esperam abrandar o crescimento e o desenvolvimento, aumentando o desemprego para tentar disciplinar os trabalhadores, obrigando-os a aceitar salários menores. Ou seja, pôr os trabalhadores a pagar a crise uma crise que não foi criada por eles.

Ainda assim, por todo o Norte Global, os salários reais não estão a acompanhar a inflação, o que significa que muitos trabalhadores estão, na verdade, a sofrer cortes salariais. Se os decisores políticos quisessem realmente parar a inflação, focar-se-iam nos lucros que em muitos setores têm aumentado vertiginosamente, mesmo quando os custos de produção também subiram. A economista política Isabella Weber argumentou veementemente que muitas das grandes empresas têm aproveitado a inflação para aumentar os seus preços muito para lá dos seus custos, embolsando a diferença.

Portanto, aumentos nas taxas de juro não resolverão a crise inflacionária no Norte Global. Irão, todavia, tornar o financiamento das dívidas dos países pobres muito mais difícil. A política monetária atualmente seguida pelos países mais ricos foi desenhada para empobrecer o proletariado doméstico, com o bónus de empobrecer globalmente os países mais pobres.

Já estivemos nesta situação antes. Nos anos 1980, quando o presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, Paul Volcker, aumentou as taxas de juro de forma colossal para disciplinar os trabalhadores norte-americanos, isso levou a dezenas de incumprimentos no Sul Global. O então chamado “choque Volcker” construiu os pilares do neoliberalismo nos Estados Unidos e providenciou convenientemente um pretexto para impor políticas neoliberais no Sul Global.

Quando os países pobres foram forçados a apelar por empréstimos de emergência às instituições financeiras internacionais, receberam essa ajuda em troca da aplicação de políticas como privatização de setores públicos da economia, desregulação e cortes de impostos. Os termos destes empréstimos — chamados programas de ajuste estrutural — dizimaram várias economias, enquanto noutras aumentaram permanentemente a desigualdade.

Ainda assim, parece que ninguém aprendeu a lição dessa crise da dívida da década de 1980. Enquanto países como o Gana e o Sri Lanka pediram ajuda a instituições financeiras internacionais, foram também obrigados a introduzir políticas de austeridade que vão constranger o seu crescimento económico durante anos.

A política monetária atualmente seguida pelos países mais ricos foi desenhada para empobrecer o proletariado doméstico, com o bónus de empobrecer globalmente os países mais pobres.

Se a austeridade não funcionou nos países ricos, não irá certamente funcionar nos países pobres, onde um investimento significativo em infraestruturas e serviços públicos é necessário para garantir o desenvolvimento sustentável da economia. Forçar os países pobres a cortar nos seus gastos - numa altura em que são precisas grandes somas de dinheiro para investir em descarbonização e mitigação dos efeitos do colapso climático - vai exacerbar tanto a crise climática como as desigualdades globais.

É urgente o cancelamento de dívida para lidar com a crise global de dívida e com a crise climática. Mais do que forçar países a implementar medidas regressivas e de austeridade que se anulam a si próprias, em troca de empréstimos urgentes, novas linhas de crédito podem ser direcionadas para investimentos em infraestruturas verdes e mitigação climática — e para a proteção de importantes "captadores" de carbono, como as florestas tropicais e as tundras.

Mas, a longo prazo, mesmo o cancelamento de dívida não bastará para fechar o fosso de desigualdade entre o Norte e o Sul globais. Os países pobres foram forçados a contrair tanta dívida porque foram postos numa posição de dependência dentro da economia global, estruturada para enriquecer os ricos e empobrecer os pobres.

Um sistema financeiro internacional extrativista, normas regressivas sobre a propriedade intelectual e políticas neoliberais aplicadas à força fizeram com que a maioria dos países pobres não tenham os recursos necessários para um desenvolvimento sustentável.

A China é, claro, a maior exceção a esta regra. Conseguiu o seu desenvolvimento ao ignorar as regras ditadas pelo Norte Global, ao proteger a sua indústria e priorizar o investimento. Aliás, a China é hoje o maior credor de muitos dos países mais pobres, e a sua atitude perante a reestruturação de dívidas — influenciada mais por razões geopolíticas que por considerações económicas — terá um enorme impacto na resolução desta crise.

Num cenário otimista, os países pobres poderão tirar partido do melhoramento das relações entre a China e o Ocidente para garantir acesso a empréstimos com termos mais favoráveis. Como já o fizeram, através do movimento dos países não-alinhados, Estados pobres podem trabalhar em conjunto para resistir ao imperialismo e garantir cancelamentos de dívida reais.

Num cenário pessimista, estes países serão apanhados no meio de uma nova Guerra Fria. Credores ocidentais recusar-se-ão a negociar com credores chineses sobre como aceitar as reestruturações de dívidas dos países mais pobres, deixando-os presos num limbo. Essa é a exata situação de países como a Zâmbia, cujos credores estão há vários anos para chegar a qualquer acordo sobre a sua dívida.

Uma coisa é certa: a economia mundial não vai recuperar desta crise enquanto a crise de dívida do Sul Global não for resolvida. Mas, no que diz respeito à dívida, a política sempre triunfa sobre a economia. O que se segue será determinado pelo que políticos e decisores na China e no Ocidente considerarem ser do seu maior interesse, e não por aquilo que poderia promover um desenvolvimento sustentável.

Artigo originalmente publicado na Jacobin Magazine.