Livreiro e ex-operador de call-center, divide o seu tempo livre entra a leitura e o ativismo em terrenos como o sindicalismo ou o clima.

Somos precários, mas não temos de o ser para sempre

Precisamos de olhar para a luta contra a precariedade além da visão sindical e legalista. É urgente construir um campo social cruzando reivindicações e lutas que até aqui não se tocaram para ganharmos força nos embates dentro das empresas e contestar a ofensiva conservadora e ultraliberal

Ensaio
28 Julho 2022

Passei quase uma década dedicado à atividade sindical no mundo dos call-centers. Fui ativista clandestino numa multinacional e dirigente sindical; organizei greves e estive à mesa das negociações com as direções de empresas; dediquei-me a apresentar denúncias na Autoridade das Condições de Trabalho e à agitação laboral nas redes sociais e nos locais de trabalho. Aprendi muito sobre precariedade, uma expressão que, tendo ganho espaço no léxico político e até popular, poucas vezes vê o seu sentido aprofundado. Afinal, o que é a precariedade?

Nestes quase dez anos, quando alguma trabalhadora ou trabalhador nos pedia auxílio ou quando um coletivo de trabalhadores queria, em algum call-center, dar os primeiros passos na luta, havia uma pergunta que fazíamos sempre: "O teu contrato é efetivo?" O que procurávamos saber era qual o grau de segurança contratual de quem se dirigia ao sindicato. Assumíamos que com vínculos efetivos a luta é mais fácil. 

Eis a lógica do nosso raciocínio: quando um trabalhador tem um contrato a termo certo, o despedimento é simples: dá pelo nome de não renovação quando o contrato chega ao fim. Se o contrato for a termo incerto, a segurança é supostamente maior, dado que a lei obriga a entidade empregadora a justificar o seu fim ― ainda que raramente o faça e o expediente da caducidade seja usado abusivamente para terminar com contratos (o que pode ser contestado em tribunal, mas só depois do despedimento). Sendo o contrato sem termo (vulgo efetivo), a possibilidade legal de despedimento é muito menor, obrigando a despedimentos coletivos ou a outros trâmites complicados. Assim, em teoria, os trabalhadores efetivos têm muito mais segurança para enfrentar os patrões. Trata-se de uma lógica simples e, por isso mesmo, enganadora. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Quase sempre que dizia a um trabalhador que, estando efetivo, dificilmente poderia ser despedido e o incentivava a confrontar os patrões, a resposta revestia-se de lacónico ceticismo. “Isso não quer dizer nada, se a empresa quiser, despede-me na mesma”. 

Apesar de lutas, das cartas abertas, da greve e dos protestos, o despedimento de 80 trabalhadores do call-center da NOS/Randstad em Coimbra foi avante. A pressão e a ansiedade abateu-se sobre todos nós.

E um misto de irritação e surpresa percorria-me. Era fácil ver aqui um subterfúgio ou cobardia de quem se queixava ao sindicato, como que encontrando uma falsa justificativa para não lutar, assumindo que o sindicato deveria fazê-lo por si. Mas tecer este juízo é também um subterfúgio, o mais fácil para o sindicalista: como lutar se mesmo quem está efetivo não se presta ao combate? Acomodação gera acomodação. Esta conclusão desanimadora justifica muitas vezes a adaptação à rotina sindical.

Saber ouvir não é o mesmo que escutar e seguir adiante. Só voluntaristas ingénuos podem achar que os explorados e oprimidos têm sempre razão, o que não é o mesmo que dizer não possamos encontrar a chave para superar os limites e as contradições que bloqueiam o combate. Foi com estas conversas que percebi que muitos trabalhadores tinham um entendimento mais aprofundado que o meu sobre o que é a precariedade: independentemente do vínculo, as empresas têm a força de despedir como e quando querem.

Exemplos não faltam. O mais trágico dos que presenciei foi o da luta do call-center da NOS/Randstad em Coimbra entre 2019 e o ano passado. Este pequeno call-center, com cerca de 80 trabalhadores, coisa pouca no sector, foi ajudado pelo Sindicato dos Trabalhadores de Call-Center, onde eu era então dirigente, e viu a maioria dos seus operadores sindicalizarem-se. Um delegado sindical foi eleito, instituiu-se uma comissão de luta e foi votado um caderno reivindicativo. Em março de 2020, partiu-se para a luta com uma primeira greve de adesão quase total. 

Nos meses seguintes, apesar da pandemia, a luta prosseguiu. Embora a empresa quase não cedesse, a dada altura aceitou integrar uma parte importante dos trabalhadores como efetivos no seu quadro. Nós, do Sindicato, assinalamos esta como uma importante conquista, mas não entusiasmou os trabalhadores que, de uma forma ou de outra, repetiram a resposta já citada e costumeira. Mas isso não os impediu de lutar. A luta avançou com greves e plenários em plena pandemia e em contexto de teletrabalho. Em maio de 2021, fomos informados que o call-center seria encerrado e todos os trabalhadores despedidos, fossem ou não efetivos. Afinal, a empresa podia mesmo quase tudo, e sem consequências

A empresa sabia o que estava a fazer. Usou a justificação legal de “encerramento do local de trabalho”, como a lei permite, para avançar com o despedimento coletivo dos trabalhadores efetivos. Encerrou o local de trabalho quando este estava vazio há meses e com os trabalhadores em teletrabalho! Ou seja, a NOS e a Randstad, duas multinacionais multimilionárias, nem precisaram de alegar que o trabalho deles deixara de ser necessário para os despedir: o mesmo seria transferido para outros colegas, também em teletrabalho. 

Há mais de quatro milhões de trabalhadores por conta de outrem em Portugal, segundo dados da Pordata de 2021, mas apenas 640 mil estão abrangidos por algum tipo de contratação coletiva.

Bastou-lhes apelar à figura do encerramento de um local de trabalho onde, para todos os efeitos, estes trabalhadores não estavam há meses e transferir as funções para colegas que, como os primeiros, trabalhavam a partir de casa. A desfaçatez e a impunidade deram razão ao senso comum de tantos que nos iam dizendo que, efetivos ou não, o patronato poderia despedi-los se quisesse.

O desfecho foi trágico. Apesar de lutas, das cartas abertas, da greve e dos protestos, o despedimento foi avante. A pressão e a ansiedade abateu-se sobre todos nós. Poucos dias depois, a 27 de maio, o delegado sindical, o valente Nélson Cerqueira, faleceu com um enfarte fulminante. Tinha 34 anos. Ele fora o rosto, o ombro amigo, o organizador e dínamo desta luta. Também ele, poucos meses antes da primeira greve, entrou para os quadros da empresa com contrato efetivo e, falando comigo, relativizou essa conquista que eu insisti em celebrar. Este breve ensaio é escrito com ele em mente e em sua homenagem, pouco mais de um ano após a sua partida.

Trabalhos precários, vidas precárias

Foi desta forma trágica que aprendi que a precariedade não se mede por um vínculo mais ou menos estável. É um fenómeno mais complexo. A sua explicação não é meramente formal, baseada no tipo de vínculo contratual de cada trabalhador. E, como vimos, as suas duras consequências vão bem além disso. Como sublinhou há poucos anos um slogan que se tornou comum: "trabalhos precários, vidas precárias". Literalmente. Então, o que é a precariedade? Como podemos defini-la?

Diria que podemos definir a precariedade laboral como uma correlação de forças entre patrões e trabalhadores. Existe precariedade quando esta correlação está muito desequilibrada, altamente favorável aos primeiros, cristalizada na atomização dos segundos, manietando (ou mesmo anulando) a sua capacidade de ação coletiva. (O oposto de precariedade não é estabilidade, é poder dos trabalhadores: organização, luta, sindicatos.)

O tipo de contrato é uma expressão, ainda que não necessariamente linear, dessa relação. De forma geral, o tipo de contrato (quando o há!) que expressa este desequilíbrio favorável aos empregadores é o contrato individual de trabalho. Neste terreno, mais do que a oposição contrato a termo versus sem termo, interessa aquela que distingue os contratos coletivos dos individuais ― para não falar de outras formas de "vínculo", como os recibos verdes ou as plataformas digitais.

Na luta de classes é a prática militante o mais definitivo teste para a realidade. O risco maior é o de confundir uma correlação de forças desfavorável com a consumação indefinida da mesma.

Dito de outra forma: temos mais de quatro milhões de trabalhadores por conta de outrem, segundo dados da Pordata de 2021, e apenas 640 mil estão abrangidos por algum tipo contratação coletiva. Resumindo, a precariedade é a norma quase absoluta das relações laborais no nosso país e vivemos, no mundo do trabalho, uma correlação social de forças esmagadoramente pró-patronal. É a distopia neoliberal quase consumada com o efeito perverso de colocar os da mó de cima a espumar por mais. 

Este é o resultado histórico de mais de trinta anos de derrotas no mundo do trabalho, consumadas por uma dupla ofensiva em que convergiram os ventos globais do neoliberalismo e a sanha do capital, feita de democratismo liberal e europeísmo financeiro, contra as conquistas de 1974-75. Privatizações, pacotes laborais, abertura desregrada do mercado global, esmagamento de greves (mas também lutas mal-conduzidas ou outras que ficaram por fazer), troikas e afins produziram esta correlação de forças a que chamamos precariedade.

Contudo, tal como a expressão precariedade, a ideia de correlação de forças pode tornar-se um chavão vazio, propenso a esconder mais do que a iluminar, homogeneizando de forma enganadora uma miríade de situações, graus e contextos. Esta ideia de desequilíbrio entre as classes arrisca-se a esconder uma situação dinâmica e mutável, passível de ser superada ― trata-se pois de um estágio, não de um desfecho. Aliás, não é raro o queixume sobre a correlação de forças desfavorável servir para justificar a apatia de sindicalistas que não pretendem lutar para a inverter.

A dita correlação concretiza-se de formas diversas em diversos sectores e momentos. Mesmo com contrato individual, é diferente a situação de quem trabalha num momento de grande desemprego (que reforça enormemente a força patronal) ou num de escassez de mão-de-obra (que pode fazer mais pela força do trabalho que mil vínculos efetivos). Outros fatores intervêm: a região do país, o nível de qualificações formais e informais, a pertença étnico-racial, género, orientação sexual, nacionalidade ou idade, rede familiar e situação habitacional, tudo conta. 

Trabalhadores contratados a prazo num sector em crescimento, com qualificações elevadas e escassas, num cenário de baixo desemprego, podem ter mais força que outros que sejam efetivos, porém facilmente substituíveis no mercado de trabalho. Ou que outros quantos que, por pertencerem a grupos oprimidos são mais facilmente chantageados: trabalhadores negros, mães de famílias monoparentais, pessoas trans ou outras que podem ter dificuldade em encontrar trabalho mesmo num mercado com ampla oferta dele.

Isto lembra-nos, entre outras coisas, que a luta nestas e noutras frentes afetam igualmente as relações de trabalho. Quem corre o risco de despejo evitará ao máximo lutas que ponham em risco o seu emprego. Daí que não possamos reduzir a luta de classes ao que acontece apenas nas empresas. Assim, a precariedade não é apenas uma questão meramente formal nem uma exclusivamente laboral (no sentido estrito, economicista do termo), devendo antes ser alvo de uma leitura interseccional.

Não obstante, o reverso é também verdade: entre quem é abrangido pela contratação coletiva há situações diversas. Dentro deste universo, casos há em que a situação real ― o desequilíbrio entre patrões que tudo podem e os trabalhadores que a tudo se adaptam ― está mais próxima do universo da contratação individual, apesar do vínculo coletivo. Não é difícil encontrar sectores profissionais inteiros em que, estando abrangidos pela contratação coletiva, os trabalhadores desconhecem o contrato coletivo. Desconhecem parte dos seus direitos e, na ausência de sindicato, os seus contratos nem sempre são cumpridos, ou sequer reivindicados. 

Nestes casos, a situação real é próxima da das áreas em que predominam os contratos individuais. Porém, havendo algum tipo de contrato coletivo, existe, pelo menos, um maior potencial reivindicativo. É mais fácil exigir a aplicação de um contrato que existe do que a instauração de um que não exista. Assim, havendo sindicalização e ativismo, a contratação coletiva pode ser uma ferramenta para reequilibrar as forças. Isto aponta-nos, por sua vez, algumas pistas importantes.

A primeira é que a relativização do aspeto formal do problema não significa desprezá-lo. Se distinguir contratos a termo dos sem termo não resolve a definição de precariedade, isso não significa que seja indiferente ser efetivo ou contratado a termo, mesmo no que diz respeito à força para lutar. Se é verdade que a contratação coletiva não garante per si uma posição de maior força a quem trabalha, ela permite esse potencial: além de ser uma garantia de direitos, é uma eventual ferramenta de luta, assim seja aproveitada.

O braço-de-ferro entre classes define-se por fatores ideológicos, históricos e outros cujo palco é global e não nacional.

A segunda é que os elementos objetivos (tipo de contrato, condições de vida, nível de desemprego no país) são determinantes para a condição de precariedade, ou seja, para a definição da correlação de forças entre patronato e assalariados. Mas o nó da questão está no terreno subjetivo, da capacidade de ação consciente e organizada de quem trabalha: contratação coletiva sem organização sindical arrisca-se a esvaziar-se; já trabalhadores organizados, por mais precários que sejam, podem conquistar uma correlação de forças favorável. 

No primeiro caso, os contratos coletivos tenderão a dar lugar aos individuais, no segundo caso acontecerá o inverso. As relações contratuais expressam as sociais, e estas, por sua vez, não são fixas nem definitivas, podem ser mudadas pela ação coletiva consciente. A questão é como.

Convém ainda assinalar que a definição que aqui proponho para precariedade, assente na ideia de correlação de forças, é superficial e incompleta. Além dos elementos que citei, o braço-de-ferro entre classes define-se também por fatores ideológicos (o que pensam trabalhadores e patrões sobre a sua situação?), históricos e outros cujo palco é global e não nacional (em cada empresa o choque entre patrões e trabalhadores é influenciado pela disputa entre estas partes à escala nacional, e esta é muito determinada pela que se dá a nível mundial). Cada situação, em cada empresa e sector, é única a cada momento e não pode ser entendida como transposição de critérios gerais como os que cabem num ensaio deste género.

Estudos dão-nos pistas, mas na luta de classes é a prática militante o mais definitivo teste para a realidade. O risco maior é o de confundir a constatação de uma correlação de forças desfavorável com a consumação indefinida da mesma, o de se abordar o problema como uma pescadinha-de-rabo-na-boca: os trabalhadores são precários porque têm pouca força, como têm pouca força não podem lutar e por isso são precários. Nada mais errado! 

É aqui que entra a ação subjetiva: a luta, sindical ou outra, que, aproveitando momentos favoráveis, exemplos de sectores mais avançados, ou contradições no lado do patronato (quem também as há!), põe um pauzinho na engrenagem. Ou seja: conquista vitórias sabendo que o mais importante em cada vitória são não tanto os ganhos materiais (salários, estabilidade, etc.), mas a posição de força, a organização e autoconfiança dos debaixo, pois só ela permite manter os ganhos e almejar mais.

Esta reflexão é, assim, uma proposta de luta contra a precariedade: uma luta para reequilibrar (primeiro) e inverter (depois, mas, quem sabe, logo de seguida) a relação entre trabalho e patronato. Em jeito de conclusão, deixo de seguida três tópicos para pensar e agir.

A relação entre o plano legal e o da luta social

Em nada do que disse até aqui se deve ler um desprezo pelo terreno da legalidade e eventuais conquistas nele feitas. Conhecer a lei, a jurisprudência, intervir sobre elas e dá-las a conhecer aos trabalhadores é primordial. Trata-se apenas de não confundir a febre com a doença, tomando o efeito pela causa. Aliás, a relativa discrepância entre lei e a sua aplicação nas empresas, pode levar à paralisia, mas também pode ser alavanca de lutas. 

É o caso de leis como a da recente regulamentação do teletrabalho em que os avanços legais não são aplicados na prática, porque as empresas não o querem fazer e os trabalhadores não o conseguem impor. Mas a equação pode ser invertida e a lei pode tornar-se, na luta pela sua aplicação, instrumento de organização, sindicalização e mobilização. 

Algo de semelhante aconteceu com o PREVPAP: foi quase inócuo em determinados sectores, mas noutros tornou-se ferramenta de luta e de conquistas. Se posições de força de quem trabalha podem reverter-se em conquistas legais, então legislação mais avançada pode ser usada para ganhar força. É uma questão de perspetiva, de ver a disputa legal como meio e não como fim. Isto é importante no atual momento, pois das anteriores legislaturas resultaram alguns avanços (poucos!) legais que podem, na luta pela sua aplicação, reforçar os direitos dos trabalhadores e sindicatos nos locais de trabalho. Mas, sem essa luta, podem ter o efeito contrário: serem celebrados em vão, sem que se transformem em direitos reais, tendo até efeito apaziguador no combate à precariedade.

O exemplo dos EUA

A noção de correlação de forças na luta social já foi muito usada como justificação para a paralisia. É a pescadinha-de-rabo-na-boca já aludida: quem não quer lutar (frequentemente dirigentes sindicais adaptados ao status quo) alega que não é possível, dada a correlação desfavorável de forças. É evidente que nem sempre é possível lutar, porém sempre podemos preparar a luta com base na situação concreta: se não há força para uma greve, então avance-se com abaixo-assinado, uma campanha de sindicalização ou de consciencialização sobre direitos. Para trepar um plano inclinado são precisos pontos de apoio. Encontrá-los é essencial. 

E, para tal, convém entender que a correlação de forças não é homogénea: em cada país há sectores mais preparados para lutar que outros, tal como acontece em cada empresa ou até local de trabalhar. Conseguir que os mais conscientes mobilizem os mais conformistas, em vez de serem estes a pesar-lhes, é essencial. 

Há um conhecimento profundo sobre a precariedade do trabalho e das vidas que não chega aos círculos académicos que têm dominado este debate. Podemos e devemos pensar em conjunto, para podermos lutar melhor. 

Esta dinâmica existe de modo transversal à luta social: em países como Portugal, o ponto mais frágil da luta dos explorados e oprimidos é a luta nos locais de trabalho (que não deixa, por isso, de ser estratégica). Globalmente, desde a crise de 2008, mobilizações de massas, e até revoltas e revoluções, tiveram lugar. Novos movimentos surgiram. As greves e a sindicalização acompanharam estas lutas, mas fizeram-no, na maioria dos casos, na cauda do movimento. Mas vale a pena olhar para a situação nos EUA. 

Neste país, pela primeira vez em quase meio século, o nível de sindicalizados está a crescer. As greves dispararam nos últimos anos. É mundialmente famoso o exemplo da Amazon, onde foi formado um sindicato numa heróica luta. Mas não é caso único: há um crescendo de organização de base e sindicalização em cadeias como a Starbucks e em sectores como a indústria dos videojogos ou em Hollywood. Um dos motivos desta onda foi o choque ideológico causado pela covid-19: milhões de trabalhadoras/es, antes invisibilizados, revelaram-se essenciais. Uma outra causa foi a crescente onda de novos movimentos, culminantes da grande revolta do Black Lives Matter, que mudaram a relação de forças nas ruas, nas escolas, nos bairros e na política partidária (impulsionando até uma nova esquerda). Esse processo vem, pelo menos, desde o Occupy Wall Street e foi particularmente influenciado pelas lutas feministas e antirracistas. 

Por esta via, as forças populares e proletárias do centro do império, adquiriram horizontes de luta como não tinham há décadas. A força adquirida nas ruas penetrou nas empresas: uma nova geração, com experiência de luta, politicamente radicalizada, mais feminina, racializada e LGBTIA+ empoderou-se. As camadas ativistas existentes reforçaram-se e estabeleceram vínculos com o mundo do trabalho que não aconteceriam necessariamente por si só. 

Esta experiência pode servir-nos em Portugal: também cá, desde o advento da Geração à Rasca e do Que se Lixe a Troika até às recentes lutas feministas e antirracistas, há uma nova força a tomar as ruas. Ela tem altos e baixos, pontos fortes e fracos, mas é uma realidade: desde 2011 surgiram novos movimentos sociais com uma capacidade de confronto e mobilização que não existia antes, e com eles, novas camadas ativistas se estão a formar. Esta realidade pode servir de ponto de apoio para a luta laboral. 

Para tal, os vínculos têm de ser conscientemente estabelecidos. A contaminação não se dará de forma automática: há que renovar alianças, protagonistas, formas de comunicação e cruzar reivindicações. O desafio pode passar por encarar a luta contra a precariedade e a exploração de forma mais ampla que a mera visão sindical (que não deve ser esquecida, antes pelo contrário). Construir um campo social contra as várias formas de opressão e exploração, cruzando reivindicações e lutas que até aqui não se tocam servirá tanto para ganhar terreno na luta dentro das empresas como para contestar de forma geral a ofensiva conservadora e ultraliberal. 

A contratação coletiva como disputa estratégica

Assente nos dois tópicos anteriores, proponho um terceiro, quiçá ousado. A hipótese que lanço é: no momento de maior recuo da contratação coletiva, podemos e devemos fazer desta uma bandeira transversal para passar à ofensiva. 

Nos últimos anos houve um compreensível enfoque defensivo nesta reivindicação: os sindicatos dedicaram-se a defender a contratação coletiva nos sectores onde ela vigora e onde se viu ameaçada, primeira pela caducidade imposta pela Troika e pelo governo PSD-CDS de Pedro Passos Coelho, depois pela seu arrastar garantido dos governos do PS. Porém, a contratação coletiva recua nesses sectores, tradicionalmente por ela abrangidos, sobretudo, por eles serem uma ilha ínfima num oceano de trabalho precário. 

A luta pela contratação coletiva deve ser levada aos sectores que nunca a tiveram: aos call-centers, aos estafetas, aos centros comerciais, aos IT´s, ao fast-food, etc. Onde nunca houve, deve-se lutar para que haja, onde há, para que se aplique, onde se aplica, para que não recue. Mas, sobretudo, não deve ser encarada como uma soma de diversas lutas, empresa a empresa e sector a sector, mas antes como uma luta transversal, social e política, ainda antes de ser sindical. Como o é a defesa do SNS, por exemplo. 

E, assim, pode e deve apoiar-se onde o movimento social é mais forte: nas novas lutas crescentes nos últimos anos, inclusive incorporando nas suas propostas elementos das novas lutas, antirracistas, ambientais, feministas, LGBTIA+ e outras, além de novas realidades como o teletrabalho e o combate à uberização. Pode não resultar em mobilizações imediatas, mas esse combate pode constituir-se numa alavanca para uma nova consciência de classe, unificadora e radicalizada. Pode daqui surgir as faíscas que incendeiam lutas diretamente sindicais. Mais importante:, podem-se ganhar forças para um amplo combate social em que o fator trabalho é de novo colocado no centro, de forma ampliada, radical e interseccional.

Esta reflexão poderá ser mais ou menos útil à luta, mas é ao seu serviço que se coloca. Há um conhecimento profundo sobre a precariedade do trabalho e das vidas, e sobre a luta que lhe opõem, que não chega aos círculos académicos que têm dominado este debate. Podemos e devemos pensar em conjunto, para podermos lutar melhor. E vencer. Da minha parte, devo isso a mim e aos meus, entre os quais ao nosso Nélson Cerqueira, delegado sindical, operador de call-center, filho de um pescador também ele sindicalista, falecido cedo demais, impedido de participar nesta luta que era a dele.