Lisboeta periférico deslocado para Coimbra graças a uma licenciatura em Direito. Ativista interseccional, com foco especial em direitos humanos e desigualdades do sistema jurídico.

Problemas na Constituição? Privatize-se

Perante uma nova revisão constitucional, a esquerda tem a responsabilidade de se apresentar como uma frente unida. É necessário um projeto congruente e unânime de combate ao discurso reacionário e populista, protegendo os princípios que deram origem à Constituição de 1976.

Ensaio
23 Fevereiro 2023

Para o bem ou para o mal, fomos empurrados para um processo de revisão constitucional, quase duas décadas depois da última revisão ordinária de 2004 e da extraordinária de 2005. Primeiro, contava-se apenas com a iniciativa do partido Chega, depois surgiram contribuições de todos os outros partidos com assento parlamentar. Para o bem ou para o mal, temos agora um jogo de forças e de interesses. Resta saber que interesses são esses, qual a sua relevância prática, e quais as suas implicações nos planos sócio-político e jurídico.

Os contorcionismos mentais são vários e o grande plano neoliberal está bem presente. Agora, surge um ímpeto que talvez nunca antes tenha surgido à esquerda: a proteção da democracia que temos, e a responsabilidade de zelar pelo que foi considerado importante num país formado pela revolta popular e a sua representação na Assembleia Constituinte, em 1976. 

Em Portugal haverá então dois caminhos possíveis, querer desvirtuar o caminho socialista ou construir pelo que se lutou há quase 50 anos.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

O pequeno e triste contexto

Em novembro do ano passado, a extrema-direita ocupou o espaço mediático com um discurso bafiento de que seria necessário renovar o nosso texto constitucional, apressando-se a apresentar uma proposta de revisão. 

Essa discussão parlamentar foi tomada a sério pela comunicação social e rapidamente se tornou um tema incontornável da política nacional, levando a que, semanas depois, todos os outros partidos apresentassem a sua proposta. Quem não participasse nessa discussão estaria em falta com a democracia, diriam as más-línguas, e assim se levou no mediatismo a participação geral da casa da república.

É importante perceber, então, como reagiram e como deveriam ter reagido os partidos com representação parlamentar e, lá no fundo, o que propor quando as forças reacionárias pretendem, na sua maioria, destruir em vez de construir - e com provas muito visíveis desse desejo.

Desde a primeira revisão constitucional que as forças dominantes do centrão político pretendem desvirtuá-la do projeto pensado por Abril.

Encontra-se assustadoramente vincado em parlamento nacional, hoje, um discurso de desprezo e ofensa pela constituição. Não esqueçamos, todavia, que desde 1982 - data da primeira revisão ordinária - as forças dominantes do centrão político pretendem desvirtuar a constituição do seu conteúdo original e do projeto pensado por Abril. 

Primeiro, pondo em causa a “perigosa” carga ideológica presente na Constituição e denunciando os seus efeitos “completamente negativos” para o desenvolvimento do país. Desvirtuando, depois, o setor público pouco a pouco, abrindo espaço para o poder e controlo privados, porque isso, sim, traria o desenvolvimento esperado de um país do norte global. De seguida, abrindo aos privados a totalidade dos mercados, desregulados e já numa escala ultra-neoliberal. E, no fim disto tudo, para terminar em grande, fazendo pequenas cedências e adaptações europeias, fazendo as vontades aos interesses do bloco geo-estratégico.

Um dúbio jogo de interesses jurídicos

As sucessivas revisões constitucionais entre 1982 e 2005 tinham, de forma mais ou menos evidente, um claro vencedor político no que à maior aprovação de alterações dizia respeito. Em contrapartida, as propostas de revisão do texto constitucional, em 2023, são uma amálgama de projetos e ideias para o futuro que se antagonizam sem protagonista dentro do parlamento. Monta-se, assim, um conflito colossal entre aqueles que querem destruir o caminho socialista começado pela revolução e as suas garantias, e, por outro lado, os que pretendem reforçar esse mesmo caminho, defendendo o projeto de 1976.

E, curiosamente, o antagonismo é tão intenso que se torna quase palpável. Existe uma parte da bancada parlamentar a querer falar de castração química como redutor de líbido e plasmar esta ideia - que não configura direito nem dever - na constituição, desconsiderando a alteração dos dogmas punitivistas portugueses e a proibição de castigos físicos desde meados de século XIX. E outra parte, do lado oposto, que deixa subentendida a existência de um invisível mas presente sentimento de pé-atrás ao que a qualquer revisão diz respeito.

É quase como se voltar a falar em alterações constitucionais fosse o retirar de um legado histórico por eles conquistado, como se fosse uma casa cheia que aos poucos vai perdendo a sua mobília. A sua “rejeição de novas descaracterizações”, como explica o PCP na exposição de motivos da sua proposta de alteração constitucional, é alicerçada com sugestões de alteração que fortalecem artigos já existentes. Também aborda outros assuntos relevantes para as lutas sociais existentes nesta nossa época sócio-cultural, ainda que timidamente.

É completamente compreensível, no entanto, o seu sentimento de zelo pelo documento constitucional original; afinal, a história que fundou a nossa Constituição a muito se lhes deve. A manutenção e o respeito pelo documento como ele está é a homenagem que se espera da sua luta, da nossa luta enquanto povo democrático de esquerda. Podemos, no entanto, homenagear e proteger os seus desejos compondo alterações que tornam ainda mais possível o caminho socialista. Isso passa por aliar conjuntamente os interesses de uma classe que hoje é mais que uma classe operária e vive uma multiplicidade de opressões para além daquela que se origina das relações de trabalho.

O plano da direita é mais uma vez, e sem surpresas, o desmantelar do estado social, com apoio do seu novo velho marketing liberal sobre a preservação do “Estado de Direito que respeite a liberdade de escolha”. O combate e a “limpeza ideológica necessária”, citando a proposta de revisão do Chega, é a principal bandeira deste partido, sendo também a de outros, como o PSD e a IL.

O plano da direita é, mais uma vez, o desmantelar do estado social, com apoio do seu novo velho marketing liberal sobre a preservação do “Estado de Direito que respeite a liberdade de escolha”

A esquerda decidiu ver aqui, neste empurrar de processo de revisão, uma oportunidade de reafirmar os valores originais da democracia de Abril, acrescentando tantos outros que se adequam às exigências sociais e culturais deste século. Tomaram em atenção as carências e os anseios de um povo que sabe que mais é possível e melhor é desejável, bastando atentar às sucessivas greves de operários, professores e outros profissionais e às suas exigências.

E neste jogo aguerrido de interesses, onde cada um se lança no sentido que supõe ser o melhor para o país, é preciso ter em conta as diferenças do empenho de cada um. Não é como se existisse um interesse padrão, comum e certo, e tudo o resto não passasse de planos tresloucados, mundanos, deformados ou imorais. Ou seja, e fora de metáforas desajeitadas, não existem alterações neutras de ideologia.

O Chega pode até proclamar-se como o nomeado moral para salvador querendo, na sua proposta, abrir caminhos sem pôr em causa visões ideológicas, mas este “repositório de liberdade” do português de bem nada mais é que um sombrio plano ideológico em si próprio. A eliminação do preâmbulo, a restrição de matérias sujeitas a revisão constitucional, e a alteração de pequenas outras coisas como a introdução da prisão perpétua ou da eliminação de limite máximo de penas na sua generalidade, é o pior que o sistema pode e tem para oferecer. É o retroceder na visão que se tem do nosso sistema prisional e jurídico, é o retroceder na visão que se tem para o país.

Mesmo o PSD, que também se autodenomina como o heróico partido que zela pela neutralidade ideológica desde a primeira alteração constitucional, recorre a um projeto concreto neoliberal e populista, apenas mais subtil. Quer a bancada laranja no primeiro parágrafo da sua proposta  “desburocratizar Portugal”, mas logo a seguir defende a criação tempestiva e convulsionada de “entidades independentes”. A ideia seria criar estas entidades para fiscalizar e depois fiscalizar a fiscalização, mas incorre invariavelmente num total contrassenso. E isto a título de exemplo, porque na sua generalidade o documento de proposta constitucional deixa bem presente uma ideia de suma de ideologias e um vazio ideológico em simultâneo. 

A sua confusão é tanta que, depois de tantas propostas, se propõe um total de nada, indo contra e a favor da sua própria ideologia. Conseguem eles no seu documento propor, em simultâneo, a abertura e abalo da democracia com o alargar do voto a pessoas com 16 anos de idade juntamente com a redução de deputados e representação territorial. Defendem também a afirmação de igualdade de género e proteção geracional, ao mesmo tempo que pretendem a abertura selvagem do mercado com a inclusão da iniciativa privada como direito fundamental. São conceitos que de todo conseguem coexistir saudavelmente, mas de alguma sórdida forma se encontram juntos na mesma proposta de revisão.

Para não falar também da insistência do PSD e IL com a complementaridade do setor privado na saúde, seletivamente esquecendo o que aconteceu quando Portugal tentou contar com essa mesma complementaridade durante a pandemia para resolver a sobrecarga de doentes infetados com Covid-19 nos hospitais públicos.  Os privados decidiram fechar as portas, sendo para eles inconveniente e pouco lucrativo receber doentes de qualquer tipo, sem verificar as possibilidades financeiras e as seguradoras do paciente primeiro. Recusou agir como um verdadeiro hospital, algo que o SNS faz desde 1979, por via da concretização - em forma de lei - de um preceito constitucional original.

A esquerda, em contraponto e na sua generalidade, apresenta uma frente mais ao menos unida, no sentido em que pretende cimentar o universo constitucional que Portugal já tem e construir sobre ele, trazendo avanços no que toca ao reconhecimento jurídico do animal, pequenos reforços positivos dos serviços públicos que nos formam enquanto comunidade social, e o alargamento de proteções no tão importante artigo 13º.

A suposta neutralidade traduz-se sempre numa visão ideológica. Não existem alterações neutras, nem deveria ser esse o objetivo político de qualquer força social e partidária.

Este é talvez o artigo basilar na defesa da integridade moral do indivíduo e do coletivo, é um princípio constitucional que se nos opõe para a criação de uma sociedade progressista e democrática. Ganhou o título de “Princípio da Igualdade” e resume atualmente isso mesmo, protegendo todos e criando um reconhecimento de comunidades e características específicas perante a lei, que pela sua história de opressão necessitam disso mesmo, reconhecimento legal e constitucional. As propostas da esquerda nesta matéria visam acrescentar tantas outras características sociais, que hoje assumem relevância, como as pessoas portadoras de deficiência e a multiplicidade de géneros, como exemplo. 

Introduzem-se também matérias em outros artigos, com menção especial àquilo que tem potencial para ser um totalmente realizado e tão necessário Sistema Nacional de Cuidados. O PCP e o Bloco de Esquerda falam ainda sobre a possibilidade de eleição passiva e ativa de estrangeiros residentes, e uma maior proteção jurisdicional renegando os obstáculos económico-financeiros impostos pelo ordenamento jurídico atual. Também se aborda o recurso constitucional de amparo, que já existe no Estado Espanhol desde 1978, e até o reconhecimento do estatuto de refugiado ambiental — abordado em discussões da ONU desde 1985.

Atentamos nas exposições de motivos das propostas dos vários partidos que compõem a esquerda, mesmo a esquerda socialista cada vez mais difícil de apelidar de esquerda socialista, e todos estes fortalecem aquilo que entendem ser uma responsabilidade comum de proteção do texto constitucional e construção de futuro democrático. Alguns até reconhecem que o processo de revisão constitucional em mãos foi forçado, foi uma “insistência da direita", diria o órgão de comunicação do PS, mas de que nada vale não contribuir para a discussão.

Assim, a suposta neutralidade traduz-se sempre numa visão ideológica. Não existem alterações neutras, nem deveria ser esse o objetivo político de qualquer força social e partidária. A visão e projeto ideológico-constitucional exprimem somente um caminho comunitário e histórico que vai sempre antagonizar com qualquer outro percurso.

Alegações de ilegitimidade e a necessidade de conhecimento prévio

Há quem acuse também de falta de legitimidade o desejo súbito de mudança de paradigma constitucional em 2023, mas recordo que nem nas revisões de 2004 nem nos respectivos programas eleitorais que se lhes antecederam foi abordada essa questão. O que talvez leve a querer que entrar ou não no rol de propostas para revisão constitucional não tenha necessariamente que estar ligado a um conhecimento de antemão pela população. Não porque não seja de extrema relevância a vontade popular, pelo contrário, mas porque, lá no fundo, nunca antes esteve isso em causa, nem é esse conhecimento que torna mais legítima a aprovação de um bom texto constitucional.

A população expressa, a partir do seu voto, a confiança no projeto político de determinado partido, confiando também que, na eventualidade de uma situação semelhante a esta, o voto contribui para a introdução de pontos defendidos desde sempre pelo projeto partidário, transversalmente ao conteúdo constitucional. Cada partido propõe, assim, matérias que se enquadrem nesse mesmo projeto, fazendo jus ao prometido na época eleitoral e durante o seu trabalho parlamentar. É dessa forma que também não é questionada a legitimidade relativa a cada proposta de lei feita em parlamento, partindo do princípio que existe confiança no nosso sistema de democracia representativa.

Esta conceção de participação pública direta na discussão, ignorando o caráter representativo da Assembleia da República, é um conceito que tantas vezes apregoa a comunicação social que acaba por se solidificar como dogma no sentimento de confiança política. Normalmente, quando a narrativa que surge é a submissão a referendos para qualquer matéria, especialmente vindos do lado direito do parlamento, nada mais representa senão um reforço na descrença das instituições governamentais e administrativas. Culmina sempre numa tentativa de desvalorizar a competência que a casa da democracia representa e deve representar. 

Não é, assim, aleatória a presença de alterações constitucionais relacionadas com estas matérias oriundas do partido Chega. Essas que eliminam a necessidade de um mínimo de participação de 51% para validade do referendo, e apelam à realização mais frequente deste processo decisivo. 

A extrema-direita deixa à vista, apenas, o seu plano a longo prazo de tornar vinculativos referendos com baixa participação popular que derrogam matérias por nós já tomadas como garantidas, como a possibilidade do aborto ou casamento homosexual, e isto a título de exemplo. Trata-se assim de uma completa desvalorização das lutas populares que levaram anos a surtir efeitos, e de uma desconsideração dos lugares de fala agora conquistados para novamente atribuir a estes os lugares de subalternos e marginalizados.

A questão da revisão constitucional foi lançada com um pretexto populista e rapidamente ganhou força. Nada mais restou à esquerda do que perceber o que fazer de modo a não desvirtuar a democracia.

Para além disso, o problema nacional, não está, sequer, na constituição e nas suas matérias — com pequenas exceções — mas sim na maioria da legislação ordinária e na sua efetivação no mundo real. A questão constitucional foi apenas lançada como pretexto populista por um discurso político reacionário e mal amanhado que rapidamente ganhou força. E com ele, nada mais restou à esquerda do que perceber o que fazer de modo a não desvirtuar a democracia que quis Abril.

A institucionalização de problemas é importante, mas não nos esqueçamos jamais que a mudança começa no seio social e que, mais do que fazer leis que nos representam, é importante garantir que as já existentes têm reflexo nesta representação popular e democrática, de inclusão e respeito universais.

Ainda há dias podia ler-se sobre uma notícia que abordava a questão de uma alegada falta de um plano coerente sobre educação sexual nas escolas. Diga-se alegada, pois sobre isso a lei nada mais pode fazer, na lei está então tudo conforme e, portanto, para todos os efeitos é uma não-questão no universo jurídico. 

Mas no plano material e corpóreo, é muito mais que uma alegação, é uma realidade. É de conhecimento público a existência de carências de recursos humanos e financeiros, falta de estruturação, e falta porventura de interesse no seio escolar de formação sobre estas matérias. E torno relevante este assunto, apenas como uma ilustração de um problema muito maior de efetivação do ordenamento jurídico e das suas leis no mundo real, de pessoas que vivem e precisam de respostas que vão para além de um anúncio no portal do Diário da República. 

Aqui a esquerda, na sua generalidade, assume um papel crucial, propondo paulatinamente em parlamento o reforço de meios, a verificação do estado real de coisas e o reforço dos serviços públicos e atuação estatal em matérias legisladas. Pede claramente que o governo não caia em ilusões, e que tenha real conhecimento dos efeitos práticos que as suas medidas possam ou não ter tido.

O famigerado preâmbulo

O preâmbulo da Constituição da República Portuguesa nasce do legado histórico que é a reconquista da democracia e merece manter-se a qualquer custo. A “hiper-rigidez constitucional do preâmbulo”, que referiu Bacelar Gouveia uma vez em um dos seus manuais de direito constitucional, existe e justifica-se até que o paradigma sócio-político se altere, o que espero não ser o caso em qualquer tempo. A resistência que se sente da direita neste quesito mostra fraqueza de espírito e desprezo pelo movimento que tanto nos deu e que ainda tanto nos tem para dar - basta haver vontade política e social para tal.

O combate ideológico às 172 palavras que compõem esta introdução são o resultado de um incentivo ao desmantelamento do projeto revolucionário, que tanto fez surgir e tantas oportunidades deu a Portugal, soubessem os governos e legisladores do centrão político ter isso em conta. Mesmo assim, ainda devemos à esquerda e a políticas semelhantes progressistas transversais à inclinação política os tantos avanços que podemos hoje tomar como garantidos.

Quem não deve, de qualquer das formas, não teme, e manter vivo o preâmbulo é manter a memória dos desejos de Abril e do poder que a revolta social tem na conquista sobre o país que queremos. 

De certeza que não é somente com a história internacional que se aprende e que se forma a consciência de erro e fracasso. Também a própria história nacional procede a extrair ilações sobre um paradigma histórico-comunitário a que não se pretende regressar. Reconhece-se igualmente nessa história que é nossa, a desprezível mas ainda enraizada relação com o fascismo e colonialismo, com a opressão de minorias e classes, com as condições precárias de vida, com a romantização da pobreza e fraqueza cultural.

E é com essa consciência que se exige e deve exigir da esquerda uma responsabilidade de manutenção de percepção negativa dessa história e dessas raízes. Diga-se esquerda porque a direita nunca se interessou em assumir as consequências negativas oriundas do Estado Novo e ambiente opressor que lhe serviu de suporte, aliás, sempre se mostrou disponível para defender esses mesmos interesses. Para ilustrar estas acusações, basta falar na sua defesa aguerrida do 25 de Novembro como real fenómeno reivindicativo, ao invés do 25 de Abril.

Impulso internacionalista de união

Nunca houve em Portugal uma frente comum de esquerda que zelasse por essa manutenção de discurso de defesa da democracia, se calhar nem nunca tinha havido essa necessidade até ao momento em que André Ventura assumiu o cargo de deputado único de um partido da extrema-direita em 2019, o Chega. Em 2022, passou de um mero deputado, para doze que agora compõem a bancada saudosista do antigo regime, solidificando pouco a pouco a sua posição como terceira força política nacional.

Agora mais que nunca existe um ímpeto de combate, e se a mobilização individual não é solução por não ocupar tanta força atualmente, é expectável que se opte pela via da mobilização coletiva, de movimentos sociais, associações e partidos políticos. Que seja agora o momento para apresentar uma frente comum de combate a um projeto que para além de populista, é o real demolidor do estado de direito que temos atualmente e que a constituição nos permite ter. Mas como apresentar essa frente sem quaisquer referências nacionais nesse sentido? Observe-se agora sim o exterior, o cenário internacional.

Temos como exemplos de união de esquerda, em termos eleitorais, cenários de conjuntura política dentro do Estado Espanhol, ou até na França. Houve um reconhecimento nesses países de que continuar a individualizar certas lutas da esquerda não faria sentido, especialmente com um discurso populista e reacionário a ocupar cada vez mais espaço mediático. Deram-se assim sucessivos apoios político-partidários para solidificar um candidato de esquerda, consensual, em detrimento de candidatos da extrema-direita como Jean-Marie Le Pen ou a sua filha, ou ainda em detrimento de projetos políticos danosos como aquele que estava a ser levado pelo Partido Popular Espanhol.

As pontes e a fusão de projetos políticos não pode ser apenas um penso rápido, mas sim a solução para cooperar politicamente na construção de um país melhor com maior movimento social.

Isto não significou a cedência completa de partidos e conteúdos programáticos para apelar a um voto único irracional, mas sim a união de ideias e projetos. Conjugou-se assim, nestes dois exemplos e em tantos outros que se verificaram neste último século, objetivos comuns e pontos de convergência, procurando dar resposta a problemas estruturais da sociedade que façam parte da transversalidade dos conteúdos da esquerda.

Não é um trabalho fácil, e não é propriamente elementar criar uma frente ampla especialmente com partidos que fazem parte do centrão político, que o diga o PSOE e as suas reservas em fazer acordos com os partidos de esquerda, já em 2019. Este trabalho colaborativo é muitas vezes causado por cenários políticos caóticos ou ruturas de paradigma, e portanto surge de uma necessidade maior que o ego partidário, mas ainda assim é das maiores alavancas de progresso social que podemos assistir no norte global. É a resistência a um projeto neoliberal europeu que rapidamente começa a ganhar contornos populistas.

Pegando novamente e pela última vez no caso espanhol, a união entre PSOE e Unidas Podemos conseguiu garantir um governo estável e aprovação de uma agenda progressista de coletivo partidário e social. É talvez esse o objetivo a longo prazo nestes anos vindouros de polarização política.

Certo é que em Portugal já se deu a conhecer uma frente unida à ligeira semelhança do que aqui falo, até antes da existência do Chega. Um projeto apelidado pouco carinhosamente de "Geringonça" surgiu em 2015, depois de umas eleições que não deram uma maioria governativa ao PS. Esse acordo parlamentar que juntou Bloco de Esquerda, PCP e PS, foi uma frente unida que permitiu apresentar uma agenda comum progressista de desbloqueio pós-austeridade e governo da direita ultraliberal. Falhou, no entanto, ao nunca tentar ser mais que uma solução temporária para um problema de legitimidade governativa do PS naquelas legislativas em concreto, ao invés de se tornar uma frente ampla de avanços sociais, culturais e políticos.

As pontes e a fusão de projetos políticos não pode ser apenas um penso rápido, mas sim a solução para cooperar politicamente na construção de um país melhor com maior movimento social.

A tão esperada conclusão

Pode ser retirado da leitura deste ensaio, um sentimento de entorpecimento e/ou de entusiasmo. Entorpecimento com a disseminação e aceitação geral do discurso populista, e com a aparente facilidade que foi introduzir no mediatismo social e político a ideia de que alterar a constituição é a única via para a resolução de todos os problemas nacionais, mesmo que isso inclua também o “dever de trabalhar”, e demais assuntos obscenos, como propostas para alteração constitucional. Entusiasmado, por outro lado, com este novo sentimento que parece verificar-se na esquerda, mesmo que inconscientemente, de união de combate.

Não pretendo afirmar que tenhamos, entre as várias facções de esquerda, de ter os mesmos projetos, pois ao contrário do individualismo neoliberal, este individualismo de propostas é democrático e é mais construtivo que destrutivo. A esquerda tem, porém, e na sua generalidade, a responsabilidade de se apresentar como uma frente unida com um projeto congruente e unânime de combate contra o discurso reacionário e populista, protegendo o paradigma que visionou Abril em 1976.

Que a necessidade de combate a este discurso fascista, patriarcal, xenófobo, populista e absolutamente repugnante seja o motor que mostre à esquerda a necessidade de lutar em conjunto. A ideia seria mover uma massa social comum que veja na bancada direita não a solução para todos os problemas nacionais, mas sim aquilo que nunca mais se quer em Portugal. 

Que possa esta ser a pequena semente que germine, quem sabe, numa frente comum - ou pelo menos alargada - nas próximas eleições legislativas, à semelhança da Geringonça, apenas mais ambiciosa . Ou quem sabe, pelo menos na cooperação no que à aprovação de propostas de lei diga respeito.

Existe esse potencial para construção de pontes, e existe essa necessidade verificando-se um venenoso crescimento da extrema-direita também em Portugal. Resta apenas perceber como alicerçar um centrão “socialista” que mais se alia à direita, a partidos que sucessivamente realçaram o seu desacordo com o rumo das políticas tomadas atualmente e sedimentam a sua participação política como oposição.