Co-criador da personagem satírica Jovem Conservador de Direita, co-autor do livro A Era do Doutor (Saída de Emergência, 2016) e edita mensalmente a revista Le Docteur

Um dos criadores do Jovem Conservador de direita, co-autor do livro A Era do Doutor, da revista mensal Le Docteur e dos podcasts Alegria de Viver e Jovem Conservador de Direita.

Índice

A política ao serviço do humor

No nosso humor optamos sempre e de uma forma consciente por partir de um ponto de vista de empatia para com o oprimido. Dá-nos muito mais gozo bater em quem tem poder do que em quem não tem privilégio e já está em baixo. O alvo é o sistema racista, homofóbico e desigual em que ainda vivemos.

Ensaio
20 Agosto 2021

Em setembro de 2019, pouco antes das eleições legislativas, fomos convidados para apresentar o premonitório e excelente livro do Rui Zink, O manual do bom fascista, em Lisboa. Antes da apresentação, cruzámo-nos com André Ventura em campanha. Estava acompanhado por meia dúzia de apoiantes no Largo Camões. Ainda não era deputado nem o íman de multidões em que se viria a tornar.

Não íamos desperdiçar aquela oportunidade de o confrontar. Preparámos o telemóvel e fomos ao encontro da comitiva.

Entre várias coisas que foram ditas, perguntámos-lhe qual era a solução dele para o problema dos ciganos, ao que ele nos respondeu: “Vou pô-los a trabalhar.” A seguir, perguntámos-lhe como. A resposta: “Com as mãos.” E riu-se muito da sua própria piada. Os amigos dele também se riram muito.

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Tínhamo-lo apanhado. Carregámos o vídeo para as nossas plataformas, com a certeza de que aquela resposta ridícula que nos deu deixava evidente que a referência constante ao que faria a um dos grupos mais marginalizados na nossa sociedade era apenas um talking point vazio de substância. Não que não o soubéssemos, mas a resposta dele deixava-o demasiado claro. Era um vigarista que nem sequer levava a sério os seus apoiantes. Estava apenas a transportar para a política a estratégia que lhe deu sucesso como cabeça falante na CMTV: dizer coisas que dão nas vistas e esperar que a audiência goste. Este foi o nosso ponto de vista.

O ponto de vista dos apoiantes dele foi bastante diferente. E sabemos isso porque fizeram questão de o dizer em dezenas de comentários. Na perspetiva deles, o André tinha arrasado dois pseudo-humoristas que o tentaram encurralar com uma resposta irreverente. A nossa “piada” acabou por servir os interesses do Chega. André Ventura limitou-se a responder de uma forma brilhante a um ataque orquestrado da extrema-esquerda. Não foi orquestrado. A apresentação do livro do Rui Zink já estava marcada bem antes de ele ter decidido ir com os seus cinco apoiantes ao Largo Camões.

É óbvio que os apoiantes do Chega não estão muito interessados em que se faça alguma coisa em relação à exclusão social dos ciganos. Se estivessem, saberiam que o preconceito contribui ainda mais para a exclusão desta comunidade. O que eles querem de André Ventura não é que ele resolva o “problema dos ciganos.” O que eles querem é ouvir alguém que diga em público aquilo que eles dizem em privado e, sobretudo, que chateie a esquerda.

Criámos a personagem Jovem Conservador de Direita com o objectivo de satirizar a direita liberal na economia e conservadora nos costumes. É um fundamentalista do mercado livre que gosta de ir à Igreja.

Quando André Ventura manda uma deputada ou ativistas para a terra deles, ele não está a defender uma política. Está a chamar a atenção para ele próprio e a falar para a sua audiência. E está a chatear-nos, porque sabe que os seus apoiantes adoram ver-nos chateados. Vale tudo, desde difamar uma família de afrodescendentes até dizer que o espalhafato da comunidade LGBT pode levar a agressões. Claramente não se importa com as consequências que esse discurso tem nos grupos que são marginalizados. E ganha sempre: dá nas vistas quando diz barbaridades e dá nas vistas quando reagimos a essas barbaridades. A extrema-direita quer trollar-nos e alimenta-se da nossa indignação.

Para alguém que faz sátira não é fácil lidar com isto. Por um lado, é inevitável abordarmos do ponto de vista cómico uma situação que está a acontecer, que nos afeta e que nos indigna. Por outro lado, estamos a amplificar uma mensagem odiosa e a contribuir para a relevância de um partido de extrema-direita. Pior do que isso, com o nosso escárnio e desprezo podemos estar a contribuir para a coesão interna de um grupo que funciona como um culto e que frequentemente se justifica com o mantra: “se dizem mal de nós é porque estamos a fazer bem.” Se nós, “pseudo-humoristas de extrema-esquerda financiados pelo Soros” criticamos o André Ventura é porque ele nos incomoda. E se nos incomoda está a fazer bem. A nossa reação é um indicador do seu sucesso.

Qualquer piada que façamos com André Ventura é passível de ser enquadrada por ele na narrativa do homem providencial que vem salvar o país da corrupção. Nós somos apenas o sistema corrupto a reagir perante um homem que só quer proteger os portugueses de bem. É claro que, ao contrário do português de bem, nós nunca lavámos dinheiro nem somos financiados por empresários de reputação duvidosa. Mas, como o consideramos uma ameaça, tornamo-nos parte do sistema.

Os comediantes americanos viram-se perante o mesmo dilema quando Donald Trump se candidatou à presidência. Havia um milionário narcisista com um aspeto bizarro a aproveitar as eleições para promover a sua marca (sim, numa fase inicial, nem o próprio Trump achava que ia ganhar). O desprezo total e justificado dos comediantes perante aquele homem foi visto apenas como mais uma evidência do afastamento das elites do americano real. Americano real esse que, por algum motivo, se revia num multimilionário cuja imagem de marca era despedir pessoas num reality show.

Mas os comediantes não tinham outra hipótese que não gozar com Trump. Em primeiro lugar, ele existia, dizia coisas grotescas e tinha aquele cabelo. Era inevitável. Em segundo lugar, havia muita procura por humor sobre o homem cor-de-laranja mau com o esquilo morto na cabeça que ia destruir a democracia. As pessoas precisavam de lidar com o que estava a acontecer e muitas faziam-no através do consumo de comédia. Ironicamente, o sucesso de Trump acabou por contribuir para o sucesso de muitos humoristas.

E as piadas nem eram assim tão boas. Se calhar, numa fase inicial, sim. Ninguém achava que Trump pudesse ganhar e era divertido bater naquele bufão asqueroso. Mas passou rápido. A partir de certa altura passou a ser picar o ponto e as piadas eram apenas eco em piloto automático da barbaridade do dia, numa variante de “nem acredito que ele disse isto.” O comportamento era tão absurdo que as piadas se faziam sozinhas. E isso é mau para a comédia. Porque quando as piadas se fazem sozinhas, o humorista não está lá a fazer nada. Está simplesmente a apontar o dedo.

A partir do momento em que um Presidente dos EUA recomenda que se tome lixívia como tratamento para um vírus, o que é que um comediante pode fazer? Tudo o que ele possa dizer ou fazer não será mais que uma imitação má de um original. A comédia foi só uma das áreas em que Trump teve um impacto devastador.

Criámos a personagem Jovem Conservador de Direita com o objetivo de satirizar a direita liberal na economia e conservadora nos costumes. É um fundamentalista do mercado livre que gosta de ir à Igreja. Como a maior parte dos portugueses, passámos um mau bocado durante a troika e ridicularizar aqueles que nos acusavam de termos vivido acima das nossas possibilidades foi uma forma de catarse. Foi uma catarse para nós e, acreditamos, para as pessoas que, inesperadamente, começaram a achar piada ao que fazíamos.

Uma piada não é só uma piada dita num vácuo. Tem consequências e vai provocar reacções. Se alguém discriminado a vida toda vê que aquilo que os seus bullies lhe diziam continua a fazer rir uma sala inteira, é natural que continue a sentir-se a mais na sociedade.

Não éramos, ficou claro, os únicos revoltados com o que se passou nesta altura, em que, para além de estarmos a sofrer na pele as consequências de uma crise sob a forma de precariedade e incerteza em relação ao futuro, ainda éramos responsabilizados moralmente pelo falhanço do sistema financeiro e das instituições europeias. Analisando em retrospectiva, a criação do Doutor foi a nossa pequena vingança dos políticos que nos colocaram nesta situação (como se eles quisessem saber...). Ou melhor, o hobby de escrever coisas com graça tornou-se um hobby que nos ocupou mais tempo, tempo que tínhamos na altura, com a ajuda da precariedade provocada pelo contexto. Portanto, tanto pode ser uma vingança como uma homenagem sarcástica aos tempos da austeridade.

Com o tempo, a personagem evoluiu e foi ganhando alguma tridimensionalidade para além da austeridade e, apesar de se manter fiel aos seus princípios, tornou-se um pouco mais do que isso. Caso contrário, não teríamos material para a nossa revista mensal (Le Docteur), podcast, crónicas nas redes sociais e espetáculos ao vivo.

Quando aparecemos, chegámos a ouvir críticas de comentadores de direita que acusavam a nossa caricatura de ser injusta e redutora. Mas, em muito pouco tempo, a realidade ultrapassou a personagem pela direita. Hoje em dia, essas mesmas pessoas defendem coligações com o Chega e temos a personagem satírica, que, apesar de ser um idiota, é a favor da democracia, com uma posição cautelosa e crítica da extrema-direita. Durante estes anos, ganhámos algum apreço pelo Doutor e jamais permitiríamos que ele se tornasse um fascista desavergonhado. No máximo, poderá ter de se tornar um fascista relutante e pragmático. Mas esperemos não ter de chegar a esse ponto.

No início, o nosso objectivo, como qualquer satirista, era olhar para a realidade e sublinhar o bizarro e o ridículo dentro do normal. Os nossos alvos eram pessoas que se levavam muito a sério e nós estávamos lá para os empurrar do pedestal e pintar-lhes a cara. A piada estava no contraste entre a seriedade encenada dos políticos e o ridículo da nossa análise. Por exemplo, quando fomos ao congresso do PSD em Espinho e o Doutor apareceu nas notícias ao lado de Pedro Passos Coelho, a piada era ter uma personagem de ficção a fazer-se passar por assessor do antigo primeiro-ministro. Naquele momento, incorporámos o absurdo na realidade.

O problema é quando o absurdo toma conta da realidade. Quando, em plena pandemia, existem grupos de pessoas que se juntam em função de um traço identitário que é ser contra usar máscaras e quando temos líderes mundiais a validarem essas posições, sobra muito pouco para o comediante para além de dizer: “isso é estúpido.” E é cansativo e pouco original ter de estar sempre a dizer a mesma coisa de formas diferentes. É muito mais desafiante identificar a estupidez onde ela é menos óbvia, como no conselho de administração de uma empresa petrolífera que tenta ocultar a sua responsabilidade na emergência climática ou numa reunião do Eurogrupo onde se discute o futuro de milhões de pessoas sem o devido mandato.

É nesses sítios, onde estão pessoas brilhantes que passaram pelos processos de recrutamento mais exigentes do mundo a tomarem decisões estúpidas e, muitas vezes, criminosas, que prejudicam a sociedade, que nós gostamos de encontrar o cómico. Uma manifestação de negacionistas da pandemia é apenas um sketch por editar. A piada já está feita, mesmo antes de aparecer o humorista a chamar-lhes estúpidos.

De vez em quando, há pessoas que, com simpatia, nos agradecem aquilo que estamos a fazer no combate contra a extrema-direita. Mas estamos a fazer o quê? Como é que um post vai derrotar a extrema-direita? Não temos conhecimento de uma única pessoa que tenha mudado de ideias por nossa causa. Na maior parte das vezes, estamos a pregar para convertidos: pessoas que já concordam connosco e se sentem entretidas com algo que escrevemos. E isso não é pouco e ficamos muito satisfeitos por fazer rir em momentos difíceis. Mas não estamos propriamente a transformar a sociedade, nem tão-pouco temos essa pretensão.

O humor evolui depois da sociedade, é mais reactivo do que proactivo. E isso pode levar à perpetuação de preconceitos, através de generalizações ou de olhar o mundo em redor como se fosse ridículo porque no seu tempo é que era.

As redes sociais deram-nos uma ilusão de controlo. Cada pessoa pode passar a sua mensagem a um grande número de seguidores sem grande esforço. Perante uma situação injusta, escrevem um post, partilham o post e saem com a sensação de que fizeram alguma coisa para combater essa injustiça. A injustiça continuará a existir, mas o post está feito.

O humor político, incluindo o nosso, tem sido um pouco isto. É uma reação a algo que aconteceu, que dificilmente terá impacto na realidade para além do de fazer rir. Não substitui ativismo, nem jornalismo, nem participação cívica, nem tão-pouco vai ajudar a eliminar qualquer tipo de opressão.

É claro que não queremos desvalorizar o papel importante que a sátira tem em regimes opressivos. Há locais em que fazer rir é um ato heróico de pessoas que arriscam a vida pela liberdade de fazer um cartoon. Não é o nosso caso, e ainda bem. O pior que pode acontecer a um humorista em Portugal por fazer uma piada é chatear a pessoa errada e não ser contratado para um evento ou para ser a imagem de uma marca. Felizmente, também não é o nosso problema, porque não vivemos disto nem temos dimensão suficiente para isso ser uma preocupação.

A comédia pode ser, de facto, um rastilho para a mudança social. Mas as coisas estão diferentes. Noutros tempos, os líderes autocráticos gostavam de projectar força e o maior medo deles é que apareça um humorista que os faça parecer humanos. Esses ainda existem, como o presidente do Turquemenistão, Gurbanguly Berdimuhammedow, que recorre ao Photoshop para que o seu pescoço apareça todo lisinho nas fotografias. Na cabeça dele, se os seus concidadãos perceberem que ele tem uma papada, há um risco real de que acabem por mussolinizá-lo. Também o extremo a que os monarcas da Coreia do Norte chegam para criar uma mitologia que os transforme em deuses na Terra atinge níveis absurdos. Por exemplo, o nascimento de Kim Jong Il, que foi anunciado por uma andorinha, causou um fenómeno meteorológico, o Inverno tornou-se logo primavera, apareceu um duplo arco-íris e antes que lhe mudassem a primeira fralda já tinha fumado cinco maços de SG Ventil. Esta última não aconteceu, as outras dizem que sim.

Mas se olharmos para Jair Bolsonaro, que passou uma grande parte do seu mandato a ser fotografado em camas de hospitais, o que é que um humorista pode dizer para fazê-lo parecer ainda mais fraco e patético? O humorista que o conseguisse fazer parecer humano estaria a fazer um favor àquele monstro grotesco. Se calhar é por isso que ele está sempre em hospitais. Aquele aspecto estranho e desajeitado é o oposto da imagem de macho alfa durão e militarista que ele pretende projectar. Mais uma vez, a piada faz-se sozinha. Não estamos aqui a fazer nada.

Bolsonaro é explicitamente orgulhoso da sua estupidez e ignorância. Não precisa que os humoristas a sublinhem, ele faz o trabalho deles. Se ele fosse uma personagem de ficção, pecava por ser demasiado bidimensional. Trump fazia o mesmo e André Ventura, que não é estúpido, vê-se forçado a fazer-se passar por estúpido e a contradizer o que afirmou como académico na sua tese de doutoramento para poder seguir o exemplo dos modelos que imita. Trump e Bolsonaro têm, pelo menos, a qualidade de serem estúpidos de uma forma genuína. André Ventura está a montar a sua estupidez como se fosse uma estante do IKEA seguindo as instruções das caixas de comentários.

Trump e Bolsonaro têm, pelo menos, a qualidade de serem estúpidos de uma forma genuína. André Ventura está a montar a sua estupidez como se fosse uma estante do IKEA seguindo as instruções das caixas de comentários.

Em Portugal, fazer comédia ainda não é um acto de resistência. No nosso caso, vamos recebendo ameaças e já tivemos pessoas do Chega a visitar-nos pessoalmente em espetáculos. Não nos sentimos intimidados, mas é uma amostra daquilo que pode vir a acontecer se não estivermos vigilantes. Não há uma PIDE no Chega, há apenas militantes e dirigentes zelosos a assumir esse papel e a perder duas horas da sua vida para mostrarem ao chefe que estão lá para o defender onde quer que possam vir a dizer mal dele.

O líder do Chega das Caldas da Rainha assistiu ao nosso espetáculo “Supremacista Cultural” e, passados 20 minutos de termos acabado, já tinha um post no Facebook a pedir a demissão dos responsáveis da sala de espectáculos que permitiram que aquela vergonha tivesse acontecido na terra dele. Nos comentários à sua publicação já tinha seguidores a garantir que, apesar de não terem estado no espetáculo, já tinham mandado e-mails a exigir que aquilo não se repetisse. Houve um que se deu ao trabalho de fazer uma montagem que insinuava que nós éramos homossexuais, como se isso fosse um insulto.

Enquanto aprende a ser estúpido, André Ventura, como os seus ídolos Matteo Salvini, Bolsonaro e Trump, está a normalizar e a tornar aceitável socialmente um certo discurso de ódio. O ódio sempre existiu, mas, antes de aparecerem pessoas com poder na televisão a torná-lo aceitável, os racistas e os homofóbicos sentiam-se um pouco mais envergonhados. Havia censura social contra quem fosse racista. Agora, pelo contrário, um racista é visto como alguém que “diz verdades”.

Nós optamos sempre e de uma forma consciente por partir de um ponto de vista de empatia para com o oprimido. Dá-nos muito mais gozo bater em quem tem poder do que em quem não tem privilégio e já está em baixo. Com o tipo de humor que fazemos nem sempre essa fronteira é clara. Se for lido de um ponto de vista literal o Jovem Conservador de Direita está, de facto, a bater em quem está em baixo. Mas o alvo é o próprio Doutor e o sistema racista, homofóbico e desigual em que ainda vivemos.

Muitas vezes a comédia também serve para validar este sistema. O humor tem muito mais de reacionário do que de revolucionário. Se o humor for visto como um retrato do presente, serve para alguém dizer (ou escrever) de forma clara algo com o qual o coletivo se identifica. É por isso que evolui depois da sociedade, é mais reativo do que proativo. E isso pode levar à perpetuação de preconceitos, através de generalizações ou de olhar o mundo em redor como se fosse ridículo porque no seu tempo é que era.

Vemos, por exemplo, humoristas que admiramos a fazerem a mesma piada vezes sem conta sobre as pessoas transgénero e que pode ser resumida com “se um homem se pode identificar como uma mulher, então eu posso identificar-me como outra coisa qualquer.” Por mais gargalhadas que isto provoque, não deixa de ser uma piada que parte de um ponto de vista transfóbico, que ajuda a perpetuar preconceitos que contribuem para o sofrimento de milhões de pessoas.

Uma piada não é só uma piada que é dita num vácuo. Ela tem consequências e vai provocar reações. Se alguém que foi discriminado a vida toda vê que aquilo que os seus bullies lhe diziam na escola continua a fazer rir uma sala inteira é natural que continue a sentir-se a mais na sociedade.

Embora respeitemos e defendamos a liberdade de expressão de toda a gente, preferimos ficar do lado de quem está em baixo. Mesmo tendo a consciência de que não vamos mudar a sociedade ou acabar com sistemas de opressão, é reconfortante saber que somos acompanhados por pessoas que se sentem um pouco menos abandonadas ao ler os nossos textos ou a ouvir o nosso podcast. Já escrevemos muitas asneiras; não estamos imunes a isso. Mas tentamos melhorar e refletir para ir evoluindo. E a crítica ajuda.

Não nos sentimos cancelados ou oprimidos quando nos criticam. Aquilo que muitos apelidam de politicamente correto torna-nos melhores, porque obriga-nos a evoluir e a fazer piadas diferentes daquelas que se faziam há 50 anos. Quando um humorista grita cancelamento, muitas vezes isso é apenas o reflexo da sua angústia perante o seu envelhecimento. Há coisas que apreciamos que envelhecem mal e não é por isso que deixam de ser boas. Temos de saber lidar com essa realidade. A sociedade vai progredindo e a comédia segue-lhe os passos. Estamos sempre num processo de evolução e aprendizagem.