Historiadora, professora universitária e investigadora do Instituto de História Contemporânea da FCSH-Universidade Nova de Lisboa. O seu trabalho tem-se debruçado sobre temas relacionados com a Primeira República e o Estado Novo.

Os poderosos nunca gostaram do 1º de Maio. Mas os trabalhadores fizeram-lhes frente

O Dia do Trabalhador nasceu da vontade de homens e mulheres pobres, dos subalternos, daqueles que lutaram para fazer ouvir a sua voz contra os interesses de grandes capitalistas e governantes. Simboliza as reivindicações do mundo do trabalho, mas é também um dia de festa e de memória a quem se bateu por direitos e liberdades fundamentais.

Ensaio
27 Abril 2023

Primeiro de Maio de 1974. O dia estava luminoso – recordemo-lo assim. Foi a maior manifestação em Portugal. A 27 de Abril de 1974, a Junta de Salvação Nacional tinha consagrado o dia como feriado nacional. Mas, de alguma forma, o 1º de Maio tinha e tem força e significado, além das consagrações oficiais. Sobreviveu mesmo às proibições e à repressão – que foram duras. O historiador Eric Hobsbawm diz-nos que, sendo celebrado em dezenas de países, “é uma ocasião estabelecida, não por governantes ou conquistadores, mas por um movimento inteiramente não oficial de homens e mulheres pobres”.

Apesar das diferentes jornadas e formas de que se reveste Maio, é importante, antes de mais, reconhecer a conquista, constatar que nasceu da vontade desses homens e dessas mulheres pobres, dos subalternos, daqueles que lutavam para fazer ouvir a sua voz. Mesmo que, depois, se tenha instituído um dia feriado. A data não é, assim, concedida. E que, ainda segundo Hobsbawm, o sucesso desta ideia inicial e de como foi levada a cabo permitiu a sua continuidade, regularidade e crescimento.

Uma última questão que não é de somenos importância, como relembrou este historiador: a extrema-direita tentou, mas não conseguiu, apropriar-se do Dia do Trabalhador. Um caso ilustrativo é o do regime nazi e do seu Dia do Trabalho. Mas também podemos surpreender a tentativa de neutralização ou de esvaziamento de sentido deste dia feita, sem sucesso, aliás, pelo Estado Novo.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

O Dia do Trabalhador tem, como dissemos, diferentes formas de ser pensado, vivido e celebrado. Dizer 1º de Maio implica articular a sua polissemia, a sua multiplicidade.

Pode ser o regresso à memória dos “mártires” – o luto, inicialmente associado aos mártires de Chicago. Se há quem critique estas formas vistas como mais “fúnebres”, também é certo que pode, pela sua evocação, permitir o reconhecimento partilhado da justiça da causa defendida e, concomitantemente, na maior parte dos casos, a injustiça da sua morte. Por outro lado, permite a construção de uma genealogia que rememora e articula o passado e o presente, estruturando ligações de sentido e de significado. Da comunidade fazem parte os vivos, os mortos, cujos nomes não são esquecidos, e todos, mesmo os que ainda não estão, caminham para o porvir. Desde que os mortos não possam cercear o que os vivos querem imaginar.

Mas Maio também pode significar a organização de uma jornada de luta. Pode constituir-se como mais combativo e aguerrido. E, talvez não seja despiciendo, equacionar tanto a continuidade das questões pelas quais se luta, porque continuam a ser importantes, como também a inclusão de outras que fazem sentido, num dado tempo, com as condições próprias. Novas situações podem implicar pensar-se novos repertórios de luta.

Mas Maio também é festa: o encontro entre trabalhadores e as suas famílias num dia sem trabalho. É a sociabilidade e a partilha, num dia, como já foi muitas vezes argumentado, que não é um feriado religioso, nem relativo à história de um país em particular. Os trabalhadores e as trabalhadoras até podem ter “heróis”, mas este dia é plural e coletivo. E não pode a festa ser também ela política?

O Diário de Lisboa, de 2 de maio de 1974, diz que só na capital estiveram presentes um milhão de pessoas. Muitas das memórias de quem o viveu acentuam, precisamente, a extraordinária dimensão desta manifestação popular. Mesmo que não seja, exatamente, um milhão. Há imagens em movimento e inúmeras fotografias que nos mostram o mar de gente nas ruas da cidade de Lisboa, nomeadamente, mas não só, num percurso da Alameda Afonso Henriques para o estádio da FNAT – renomeado 1º de Maio.

Também se saiu à rua no Porto – com a extraordinária imagem de milhares de pessoas na Praça dos Aliados, fotografada por Sérgio Valente, ou as imagens em movimento que podemos ver na reportagem da RTP –, em Coimbra e em muitas outras vilas e cidades de norte a sul do país. Se o pensarmos como a soma de todos estes locais, de todos estes corpos na rua, a sua dimensão e importância, maior que a simples adição das partes, estas manifestações são ainda mais significativas.

No mesmo dia 1º de Maio, a libertação dos presos políticos do Tarrafal (Campo de Trabalho de Chão Bom, instituído em junho de 1961) foi exigida pela população – num paralelismo que nos deve relembrar a importância das lutas de libertação em África para a própria Revolução de Abril.

Se o número de pessoas que saíram à rua se constitui como algo inédito e expressivo, este dia foi mais do que isso. Tantas vezes chamado “Primeiro 1º de Maio” – inaugural na sua celebração em liberdade, depois de 48 anos de ditadura – foi uma coisa nunca vista. João Abel Manta desenha este acontecimento para a primeira página do Diário de Lisboa: ao centro da imagem um casal jovem, com uma criança aos ombros, sorridentes, de punhos erguidos. Sem medo, felizes, vitoriosos. Festa e luta.

Maio também pode significar a organização de uma jornada de luta. Pode constituir-se como mais combativo e aguerrido e ser um momento para se pensar em novos repertórios de luta.

As ruas foram, assim, tomadas pelos corpos e pelas vozes, por todos aqueles que se constituíam, ou estavam em processo de se constituir, como sujeitos políticos. Como na canção de Zeca Afonso: O Povo é quem mais ordena. Ou ainda como titularam vários do jornais coevos que mostravam as manifestações desse Maio, remetendo para a palavra de ordem que se tornou tão central: O Povo Unido jamais será vencido. Palavra de ordem que se ouve, por exemplo, na reportagem da RTP sobre as manifestações em vários locais do país, com destaque para Lisboa.

A rua deixou de ser interdita – porque o era para os que não apoiavam ou eram arregimentados e enquadrados pela ditadura. Interdita, é certo, a rua nunca deixou de ser um território de confronto, no qual se materializava o combate desigual entre o aparato policial e repressivo do Estado e os corpos dos opositores. Mas depois da revolução de Abril, as manifestações já não podiam ser proibidas. O espaço foi reconquistado. É, assim, político e politizado.

As pessoas que saíram à rua nesse Maio trazem as suas reivindicações para o espaço público, tornam-se visíveis, audíveis e presentes. Flutuam bandeiras, os braços seguram faixas e cartazes. E há cravos. Há uma pluralidade de mensagens escritas nas faixas e cartazes, que se fazem ouvir nas entrevistas que foram feitas, que se recordam nas memórias de quem viveu o momento. Até mesmo, como se pode ver no filme As Armas e o Povo (1975), um cartaz no qual se lê: “A poesia está na rua”. São as reivindicações do mundo do trabalho, mas são muito mais do que isso. Deitam fora o velho, o bafiento, a ditadura e a guerra. Para dar lugar ao novo. Para dar lugar à construção do novo. A todas as possibilidades do que poderia ser esse novo. Este momento pode, assim, ser visto como uma irrupção popular que anuncia e materializa a nova dinâmica política. Nos meses seguintes, vivia-se em Portugal o PREC (Período Revolucionário em Curso).

E antes desse 1º de Maio?

De onde vinha a tradição do Maio, do Dia do Trabalhador, que se renovou depois da Revolução de Abril? O 1º de Maio em Portugal tem uma história, uma genealogia, iniciando-se em simultâneo com a dinâmica internacional, em 1890. 

A importância deste dia remonta em Portugal – em simultaneidade com um movimento internacional – ao final do século XIX, atravessando o final da Monarquia Constitucional, a República (1910-1926) e os longos e duros anos do Estado Novo. Atravessa todos estes regimes até ao extraordinário 1º de Maio de 1974, sobrevivendo a adversidades, dificuldades e à feroz repressão durante a ditadura. Até hoje, mais de um século passado. Não foi sempre unanimidade. Anos houve em que, com exceção de tipógrafos ou algumas bolsas regionais e de indústria, não era possível ter em pleno o Dia do Trabalhador. Mas, feito de pequenos gestos, de pequenos atos de resistência, sobrevivia.

Para a origem do que é hoje o 1º de Maio, temos de ir até ao final do século XIX, primeiro a Chicago e depois a Paris. O contexto mais lato tem como eixo a luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho nos tempos da segunda revolução industrial, por melhores condições de vida, pela criação de formas de organização próprias. De entre as principais reivindicações, a luta pela jornada de trabalho de oito horas. 

O momento que serve de catalisador é a forma injusta como os trabalhadores (com uma base anarquista bastante forte) de Chicago, nos Estados Unidos, num momento de duras lutas sociais, foram condenados por um atentado que, tudo indica, não perpetraram. Já com a dinâmica de protesto norte-americano em curso, um dos congressos socialistas (onde estiveram presentes representantes portugueses) que se reuniram em Paris em 1889 decidiu propor que se fizesse no ano seguinte um dia de luta, pelas oito  horas, com a paragem de trabalho.

Da longa história do 1º de Maio em Portugal, propomos olhar brevemente para outros dois momentos: o ano de 1919, durante a I República, e o de 1962, já durante o Estado Novo.

A resistência e o dissenso, durante o Estado Novo, apesar do aparelho repressivo, nunca deixaram de procurar subverter o espaço que se queria território ordeiro. A rua foi também um local de afirmação dos combates políticos.

Em 1919, era já longa a luta pelas oito horas. Esse primeiro de Maio de 1919 foi, assim, uma jornada de luta na qual se pode destacar a realização de um comício em Lisboa com milhares de pessoas. Deve ser pensado no contexto das dificuldades económicas e sociais decorrentes da I Guerra Mundial, mas, também, levando em linha de conta o trabalho de organização, de reivindicação e de lutas do movimento operário organizado. 

Neste primeiro pós-guerra, viviam-se dias de esperança, depois da revolução russa de outubro de 1917. Nesse ano de 1919 foi criada da Confederação Geral do Trabalho e iniciou-se a publicação do jornal A Batalha.  Pouco tempo antes, estivera no poder o primeiro ministro socialista num governo republicano. Foi também o ano da promulgação das oito horas de trabalho. O decreto n.º 5516 de 7 de Maio de 1919 estabelecia dia de trabalho de oito horas e a semana de 48. Este período máximo de trabalho era estabelecido para os trabalhadores e empregados do Estado, das corporações administrativas, do comércio e indústria. Mas, desde logo com a oposição dos patrões, não eram contemplados os trabalhadores rurais – cuja luta continuou pelo século XX, até 1962. 

Aliás, há um importante pacote legislativo de maio de 1919:seguros sociais obrigatórios na doença, nos desastres de trabalho, da invalidez, velhice e sobrevivência, o decreto que organiza as Bolsas Sociais de Trabalho e, por fim, o que organiza o Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Geral. No entanto, com a República ficou muito por resolver do que era entendido como a questão social.

A resistência e o dissenso, durante o Estado Novo, apesar do aparelho repressivo, nunca deixaram de procurar subverter o espaço que se queria território ordeiro. A rua foi também um local de afirmação dos combates políticos. Depois do annus horribilis de Salazar e do regime em 1961, o 1º de Maio de 1962 fez-se rua com várias manifestações pelo país. No Porto, seriam cerca de vinte mil pessoas. Em Lisboa, de forma muito expressiva e significativa, mulheres e homens ocuparam a Baixa, território central da geografia reivindicativa. Esta jornada de luta foi severa e duramente reprimida, destacando-se a brutal atuação da polícia de choque. Contam-se vários feridos e um morto – Estevão Giro, militante comunista. 

Também a partir deste ano de 1962 se pode falar da confluência dos estudantes, engrossando este caudal de oposição e resistência. Esse 1º de Maio de 1962 também se fez do movimento que o antecedeu, levado a cabo pelos assalariados e trabalhadores agrícolas, dos campos do sul, nomeadamente do Ribatejo e do Alentejo, que finalmente conquistaram as oito horas de trabalho. O ano de 1962 abriu um novo ciclo de dinamismo nas jornadas de luta do 1º de Maio em Portugal, ao longo dos anos 1960 e 1970. Por exemplo, em 1971, a manifestação do 1º de Maio no Porto contou com milhares de pessoas. Se a luta contra o regime não deixava de estar presente, também a questão do fim da guerra colonial se assumia central.

O 25 de Abril e a democracia permitiram a conquista das liberdades e de direitos fundamentais – direitos civis, políticos e sociais –  e uma nova era para o mundo do trabalho organizado e para os trabalhadores: direito à greve e sindicatos livres, para referir apenas dois exemplos. Mas, ainda que num regime democrático, é preciso deixar uma palavra para os acontecimentos sangrentos de Maio de 1982, na madrugada de 30 de abril para o primeiro dia de Maio: a polícia carregou contra quem preparava as celebrações, espancou e dois homens foram mortos a tiro. 

Os tempos de confinamento e de pandemia de covid-19 obrigaram a alterações na forma como se comemorava o dia. Nestes dias, retoma-se o figurino tradicional. Resta saber, claro, o que será o futuro do Dia do Trabalhador, que mais virá?