Licenciado em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação Social. Copywriter de profissão, assina a newsletter anti-Chega "12 Pessoas em Fúria" e escreve opinião em várias publicações.

Os homens têm de tratar melhor os homens

Não vemos assim tantos homens brancos, cis e heterossexuais em manifestações contra o machismo porque a sociedade patriarcal assenta-nos que nem uma luva. Diria que o primeiro passo para tratarmos melhor os outros será compreender que todos temos, de uma forma ou de outra, manifestações de masculinidade tóxica. 

Ensaio
16 Março 2023

Este texto é o início de uma vontade de diálogo sobre o que significa ser e sentir-se homem, e quais as consequências do nosso comportamento, tanto para nós como para as restantes pessoas. Procura, também, ser um ensaio aberto, consciente, responsável, sem pudor, sem constrangimentos ideológicos e sem posicionamento defensivo — apenas interessa construir. Dialogar a partir da realidade.

Não se trata de uma generalização ou acusação, mas sim de um convite à cooperação e partilha. Só colaborando com outros homens que reconhecem como problema a forma como somos educados, como educamos e como nos relacionamos é que podemos pensar em mudar — e mudar é tão difícil quanto urgente. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Antes de que o leitor pense num refúgio do género #NotAllMen ou “então e as mulheres?”, deixemos de parte o miserabilismo arrancado a ferros à raridade dos casos e foquemo-nos no todo. É ou não verdade que nós, homens, somos ensinados e incentivados a ser comedidos na demonstração de afetos, a não falar de sentimentos e a competir inapelavelmente uns com os outros, apontando para um triunfo do ego à custa de todos e sem a ajuda de ninguém? 

Da relação romântica e familiar à laboral, há uma miríade de atitudes nocivas cuja origem está num desentendimento total do que deve ser um comportamento saudável para todos.

É ou não verdade que podemos claramente identificar nos media — ficção e entretenimento, jornalismo e comentário político — um arquétipo masculino que constrói e confirma estas características enquanto seca outras? É ou não verdade que aqueles que divergem destes comportamentos são excluídos, marginalizados e parodiados? 

Estas perguntas fazem parte de uma conversa cujo passo primordial só pode ser dado pelos homens, sobretudo os brancos, cisgénero e heterossexuais. Homens como eu. Porquê? Trata-se do topo do privilégio identitário e social, e, simultaneamente, constitui um modelo de género e estatuto que forma e deforma a nossa sociedade. É fácil comprovar esta premissa: basta olhar para os lugares de poder (ou para as estátuas), ocupados precisamente por pessoas com estas particularidades — não, não é coincidência ou meritocracia.

Por outras palavras: não vemos assim tantos homens brancos, cis e heterossexuais em manifestações identitárias porque a sociedade patriarcal assenta-nos que nem uma luva. Enquanto algumas camadas, como beleza e riqueza (classe), acentuam o privilégio, outras podem ter o efeito contrário, como a cor da pele ou a nacionalidade. No meu caso, a sociedade parece feita para me servir. Por isso, até há algum tempo não identificava problemas: tratava as pessoas à luz do que tinha aprendido e assimilado — rejeitando alguns comportamentos, mas replicando e agudizando outros. Esta herança omnipresente verifica-se, como veremos, em função negativa e dupla, com o sujeito a atuar entre a proatividade e a passividade. 

A partir daqui, podemos ou não aprofundar as suspeitas sobre se este enquadramento configura, de facto, um problema para os próprios homens. Diria que o incentivo à timidez nos afetos (mas a total despenalização da irritação), a primazia da competição, do domínio e do controlo, desde muito cedo (consciente e inconscientemente), fazem parte de uma problemática que exige profunda reflexão da nossa parte — não só por nos condicionar a nós, homens, mas todas as pessoas com quem nos cruzamos. 

Eventualmente, o maior problema de todos será a corrosão das relações com as mulheres. Da relação romântica e familiar até à laboral, há uma miríade de atitudes nocivas cuja origem está num desentendimento total do que deve ser um comportamento saudável para todos. Por isso, são comuns os relatos, por parte de mulheres, de homens irresponsáveis, homens-criança, emocionalmente incapazes, dependentes, à procura da relação maternal; homens abusadores, violadores, agressivos e violentos; homens que matam.

A lista de ações é grande e mediaticamente tende-se a olhar para os casos mais graves (e mesmo assim sem a responsabilidade adequada). Por isso, e ainda que seja normal a maioria reprovar taxativamente os comportamentos mais extremados, como o feminicídio, não deixa de ser menos importante abordar e modificar as  atitudes que nós, homens, tendemos a subvalorizar, mas que constituem agressões sobre as mulheres.

Compreendendo que o nosso comportamento começa em nós próprios, em contexto familiar, social e societal, importa, então, perguntar: como podemos ser melhores para nós próprios? Antes de tentar responder, parafraseio Judith Butler, sublinhando que o meu intuito não é tentar prescrever uma nova e rígida forma de masculinidade, mas antes abrir as possibilidades a outras masculinidades, independentemente dos moldes em que possam vir a concretizar-se. Uma vez mais, estamos aqui para começar um diálogo. 

Masculinidade tóxica

Diria que o primeiro passo (o passo zero é não achar ridícula a ideia de um homem tratar com cuidado, em contexto heteronormativo, outros homens) para tratarmos melhor os outros será compreender que todos temos, de uma forma ou outra, manifestações de masculinidade tóxica. A desintoxicação, como outras, é um processo complexo, que exige vontade e dedicação. 

Há vários pensamentos para a definição do conceito de masculinidade tóxica; para o caso, interessa mais aquilo que os une do que o que os separa. E mais do que teoria, importa identificar manifestações práticas da masculinidade tóxica. Antes de enumerar algumas, importa sublinhar que a masculinidade tóxica não afeta só os homens - ao estar entranhada na nossa sociedade patriarcal, não é fácil para as mulheres desembaraçarem-se das amarras machistas e misóginas que as condicionam, sendo que muitas acabam por interiorizar e replicar, inconscientemente e como meio de sobrevivência, esses mesmos comportamentos. 

São comuns os relatos de mulheres sobre homens irresponsáveis, homens-criança, emocionalmente incapazes, dependentes, à procura da relação maternal. Homens abusadores, violadores, agressivos e violentos. Homens que matam.

Mas recentremo-nos na criatura e no seu criador. Entre os homens, apontaria como manifestações charneira de masculinidade tóxica as ausências de cuidado generalizado e de conversas sobre temas que revelam fragilidade. Posso ser atípico, mas é raro eu coprotagonizar ou conhecer homens que, em registo heteronormativo, desabafam sem pudor. Desabafar é expor fragilidade, é perder virilidade — e a virilidade é a trave-mestra da nossa identidade. 

Curiosamente, só quando essa identidade é posta em causa por fatores externos visíveis (situações-limite como divórcio, luto, doença agravada ou problemas económicos) é que há espaço para a partilha, mas com um objectivo claro: sair da masculinidade em ruínas e reconstruir e recuperar a hegemonia identitária. 

A nossa identidade tem de ser mais robusta do que isto — a masculinidade tóxica e a frágil andam de mãos dadas. Paradoxalmente, essa robustez só se pode adquirir com vulnerabilidade. Faz parte da vida uma pessoa sentir-se triste, estar mal, precisar de ajuda. É normal querer mudar, melhorar, expor-se.  Também deveria fazer parte da vida fazer psicoterapia. Não apenas quando sentimos sofrimento, mas também para nos conhecermos melhor, para desconstruirmos visões e comportamentos. Os homens tratarem melhor os homens é, também, os homens simplesmente tratarem de si.

Outro traço clássico da masculinidade tóxica de homem para homem (mas não só) é a desvalorização do conhecimento e a primazia do empirismo. A troca irresponsável do lugar de fala pelo “achismo”: competir rumo à glória do “eu é que sei”, descartando todo o tipo de lógica e raciocínio. Para estes homens, parece que todas as opiniões valem o mesmo. Por cada pessoa que se dedique a estudar e investigar certo tema, haverá uns dez homens a dizer que eles é que sabem — e, se clamado em voz grossa e tom acintoso, mais razão lhes reconhecerão os amigos do grupo (ou a audiência do prime-time). 

Estes e outros traços de personalidade são muito comuns em políticos populistas aspirantes a ditador — há um registo autoritário (masculinidade hegemónica de Connell) na nossa masculinidade. Não será coincidência a quantidade de homens ditadores que o mundo conheceu — é claro que já se encontravam numa posição de poder, o que reforça a tese do privilégio do homem. 

Temos estado, novamente, perante outra deriva autoritária na Europa. Enquanto é verdade que também há mulheres nesse papel, interessa a floresta e não a árvore: como lhe chama Gideon Rachman, vivemos na do ‘Era do Homem-Forte’. Mais do que a constatação da frequência dos casos, interessa a linguagem: homem forte. Até mesmo numa obra que denuncia os perigos que esta masculinidade representa para a democracia, o adjetivo é altamente lisonjeador. Permitam-me, então, a sugestão: estamos, há séculos, na era do homem-tóxico, e o perigo não é apenas para a democracia — é para todo o planeta. 

Outra instituição da masculinidade tóxica é, fora muito raras exceções, a despedida de solteiro (o masculino é propositado). Se, diariamente, o nosso comportamento é limitado por algum tipo de quadro ético (que pode até nem ser próprio), a coisa descontrola-se quando se entra no registo de “mais um soldado abatido”. O registo bélico não é inócuo — a linguagem importa sempre; mas há mais: porquê uma viagem ou festa pré-casamento que interdita mulheres? 

Passar-se-á algo nesse momento para que as mulheres não possam estar? Não possam ver? O quê? Ou é simplesmente mais fixe sem elas? Será que é mais fixe porque vamos adotar comportamentos que já sabemos serem altamente reprováveis? Se nenhuma das respostas for comprometedora, então por que não despedidas de solteiro em que as mulheres também estão presentes? Ou porque é que não há viagens entre amigos nos mesmos moldes, noutras ocasiões? Será que há comportamentos que, por acontecerem numa “despedida de solteiro”, perdem gravidade? Qual é a lógica por detrás deste free pass que certa ficção popularizou? 

Na forma como tratamos as mulheres (mas não só), dois exemplos comuns de masculinidade tóxica são a mentira e a omissão (mais equivalentes do que nos convém admitir), recursos estratégicos para evitar que a outra pessoa não aja de forma contrária ao que nos interessa, caso soubesse a verdade. É também clássica a exposição e comparação de mulheres como produto, numa competição de Casanovas, reduzindo-as à sua sexualidade; contudo, e curiosamente, é também comum o repúdio por mulheres que demonstrem apetite sexual maior que o dos próprios — terão um problema, serão ninfomaníacas (outro mito criado para proteger o homem frágil).

Num plano laboral, não é difícil encontrar homens que interpretem profissionalismo, competência e assertividade de mulheres como falta de sexo ou de vida social e familiar. Por outro lado (ou do mesmo), atribuem às mulheres um jeito “natural” para determinado tipo de atividades – normalmente envolve arrumar, arranjar ou decorar — e assumem como garantidas certas tarefas domésticas ou trabalho reprodutivo. Depois, há posturas e posturas: um homem barrigudo a falar alto de pernas abertas é tido como normal, mas estar perante uma mulher com as mesmas características e comportamento já é falta de decoro, classe ou simplesmente “não saber estar”. 

A masculinidade tóxica tem evoluído, naturalmente. Em alguns círculos metamorfoseia-se, mas a filigrana continua contaminada — e é de estirpe agravada. Meios mais intelectuais têm-se mostrado algo abertos ao diálogo, mas um problema prevalece: os interlocutores são sempre os mesmos (sim, os homens). Ouvir as mulheres falar sobre a masculinidade tóxica é a maneira mais rápida e eficaz para a compreendermos e, assim, conseguir alterar comportamentos; mas verdade seja dita: não recai sobre elas essa responsabilidade — nós, homens, temos de fazê-lo por nós e pelas restantes pessoas. Porém, dado o impasse monumental, não duvido da disponibilidade das mulheres para ajudar — o problema é que, invariavelmente, um homem nunca precisa de ajuda.

Aqui chegados, não será surpreendente concluir que o futebol é um meio de excelência para a propagação do vírus da masculinidade tóxica. Nunca fui grande jogador, mas convivi em muitos balneários, desde o da aula de Educação Física até ao da equipa na divisão distrital, passando pelo dos jogos da empresa. Quanto mais competitivo, mais ruidoso, mais violento, mais tóxico. O exemplo mais imediato é o bullying: em todas as equipas vi (participei, nem que por conivência, e sofri) abuso a algum elemento do plantel; normalmente, a partir de um elemento diferenciador — atributo físico, desempenho desportivo ou forma de ser dissonante da dinâmica de grupo.

É clássica a exposição e comparação de mulheres como produto, numa competição de Casanovas, reduzindo-as à sua sexualidade. Também é comum o repúdio por mulheres que demonstrem um apetite sexual maior que o dos homens— terão um problema, serão ninfomaníacas (outro mito criado para proteger o homem frágil).

Infelizmente, o futebol assume uma proporção muito superior ao número de participantes e contagia através da visualização, que leva à assimilação e reprodução de comportamentos. Se um miúdo de dez anos vê o ídolo a gritar com o árbitro, vai achar que esse é um comportamento normal. Se um miúdo de dez anos vê o pai a gritar com o árbitro ou a insultar o adversário, vai achar que esse é um comportamento normal. De resto, os pais presentes na assistência de jogos de futebol das camadas jovens constituem, talvez, a nata da nata da masculinidade tóxica: agressividade e frustração despejadas para cima de crianças.

Depois, há o álcool: catalisador de comportamentos agressivos (e desculpa-maior para a desresponsabilização).  Desde todas as formas de assédio até à violência e violação, discotecas e bares são palco de tudo o que possa ser comportamento tóxico, acabando muitas vezes por ser criminoso. É, por isso, difícil que mulheres e pessoas queer saiam à noite e se sintam seguras — tanto nos próprios espaços como nas deslocações a pé de e para esses sítios. Os relatos são assustadores e frequentes – basta perguntar. 

Certos comportamentos masculinos são tão complexos que a sua definição teve de surgir por metáfora e os mais comuns (ainda) não têm tradução exata em português. Gaslighting, ghosting, catch & release e breadcrumbing têm tido tendência crescente nas redes sociais e nos media, mas o campo fértil são as aplicações de dating — novas fronteiras para a opacidade de intenções. 

Tratarmos melhor outros homens significa ser intolerante com a masculinidade tóxica. Da mesma maneira que cuidar de uma criança é impor-lhe limites, também nós temos de rejeitar estes comportamentos. Isto é difícil, pois significa alterar um quadro de valores e atitudes com o qual fomos crescendo e cuja abdicação leva à marginalização. 

Como referi, trata-se de um caminho. De tudo o que descrevi e denunciei faço parte. As engrenagens que nos impedem a progressão e convidam à inércia são muitas; e, roubando o anglicismo, estão frequentemente escondidas à vista desarmada.

“A ficção não é um momento à parte”

James Bond, Barney Stinson, Hank Moody, Christian Troy. Umas personagens são mais conhecidas que outras, mas todas moldaram a minha forma de encarar e estabelecer relações com os outros, sobretudo com as mulheres. Novamente, pode ter acontecido só a mim, mas creio ser ingénuo achar que a ficção não molda comportamentos, não cria expectativas, não constrói realidade. E se estas são as minhas personagens, outros homens terão as suas, pois há sempre ficção, independentemente da realidade.  

Sobre isso escreve Ana Cristina Cachola, que, de resto, é inspiração transversal a este texto, dada as numerosas conversas que tivemos: “os imaginários comuns, os sonhos, as crenças, as formas de participação […] são precisamente o resultado da fixação de narrativas e imagens nas consciências colectivas mesmo depois da sua exibição ou aparição num determinado espaço-tempo. Mais do que imagens ou narrativas que se recordam, são principalmente imagens e narrativas que consciente ou inconscientemente não se esquecem, que constituem o modo de ver e ouvir, que são também o modo de viver (em) comum. O trabalho da ficção não é ficcional, sendo aliás uma das formas mais prolíficas da produção de realidade.”

Quanto às personagens supramencionadas, não há quem se/os salve, além de brancas, cis, heterossexuais, são todas tóxicas, até demasiado tóxicas. Não tenho dúvidas de que hoje não seria aprovada uma figura como a de Barney Stinson, cujo propósito de vida, além do uso e abuso da mentira para conseguir sexo, era dormir com 100 mulheres; o próprio ator já referiu que um eventual regresso implicaria alterar a personagem. Não é cancelamento — é consciência; é querer acordar (sim, de woke) de um muito real pesadelo machista e misógino para construir outra realidade, em que perpetuações de estereótipos vão (lentamente) deixando de ter lugar. 

Os exemplos de Hank Moody, protagonista de Californication, e James Bond parecem-me bastante óbvios: incapacidade em criar relações saudáveis, uso descartável de mulheres, repressão de carinho e amor saudável, exacerbamento de agressividade, romantização da solidão. 

No plano laboral, não é difícil encontrar homens que interpretem profissionalismo, competência e assertividade de mulheres como falta de sexo ou de vida social e familiar. Fazem-no ao mesmo tempo que atribuem às mulheres um jeito “natural” para determinado tipo de atividades e assumem como garantidas certas tarefas domésticas ou trabalho reprodutivo.

Contudo, gostaria de atentar a Christian Troy, da série Nip/Tuck (2003-10). Trata-se de uma personagem que faz mais do que congregar, em sobredose, todas as características acima descritas: usa-as de forma a destacar-se como cool, ao dividir protagonismo com uma personagem casada e marcadamente infeliz, encolhida, errante — ao passo que o garanhão, sem chatices da vida em casal, anda de garota em garota, numa planície de emoções muito limitadas. Troy tem mais uma camada: é cirurgião plástico. Ainda que o criador Ryan Murphy pretendesse retratar, ou até condenar (teria de rever para o comprovar), a obsessão pelo corpo, o resultado acaba por ser a propagação do estereótipo, a criação de expectativas inalcançáveis (por inexistentes) e uma compulsão para a gordofobia, extremamente difícil de erradicar.

A culpa não é (só) da ficção, mas a ficção, como vimos, não é um momento à parte. Por isso, creio que mais do que ponderar se aquilo que consumimos tem ou não qualidade, importa usar o seguinte filtro: será que determinada história merece ser vista? Ou, do lado dos criadores, será que vale a pena contar certa história? Que benefícios traz construir mais uma narrativa com o homem tóxico como protagonista, a fazer aquilo que os homens tóxicos já fazem na realidade? É também por isto que é fundamental que os lugares de poder sejam distribuídos além do homem heteronormativo. E, já agora, é por isto que, quando quem decide quem decide (roubando a expressão a Shoshana Zuboff) não compreende a importância da diversificação, se devem aplicar quotas. 

Isto para dizer que foi ao assistir à peça de teatro Casa Portuguesa que surgiu a ideia para este texto: a rejeição de alguns homens em identificarem-se como homens — não por questões biológicas, mas de comportamento. Em entrevista a propósito da peça que criara, Pedro Penim explica: “Para mim é uma questão pessoal, tenho dificuldade em afirmar que sou um homem — e a razão é sobretudo histórica, porque traz uma herança pesadíssima que eu não quero colada à minha pele. Então, isso pressupõe também um processo de recusa de algumas palavras, de algumas heranças, de algumas ideias”.

Esta recusa parece-me urgente. A primeira série que deixei de ver usando este critério foi “Peaky Blinders”. Se prestarmos atenção à personagem torna-se impossível não a ver carregada masculinidade tóxica: o culto do indivíduo e do individualismo, a soberania da vontade e a força e a violência como meio para quaisquer que sejam os fins. A valentia na solidão do um contra todos, mesmo a própria família. Curiosamente, sei de um porteiro de um bar que se veste à peaky blinder e que está, invariavelmente, envolto em confusão –— não é a roupa que o torna tóxico, é a personagem que confirma e valida o comportamento. O adereço revela a narrativa; a criação promove a ação.

Mas há mais influências do que a produção audiovisual. Jorge García Marín, em Novas Masculinidades, fez um breve levantamento das músicas mais populares em Espanha, em 2017, através dos dados do Spotify; alguns dos temas são ‘Despacito’, ‘Shape of You’, ‘Felices los Cuatro’, ‘Chantaje’ ou ‘El Amante’. 

O autor conclui: “Uma simples análise das letras destes temas situa-nos claramente nos mitos do amor romântico: a loucura, a possessão, a omnipotência do amor, os ciúmes, a beleza da mulher. Estas letras monopolizam as temáticas de amor; são experiências de sujeição, glorificando um amor de possessão que vamos consumindo como recetores passives, aceitando o que vai chegando. Não têm muita profundidade, apenas ideias facilmente decifráveis que contêm os mitos do universo patriarcal.” Se quisermos um exemplo mais recente e abrangente, é fechar os olhos e escolher uma faixa de ‘El Madrileño’, de C. Tangana. 

Importa, ainda, sublinhar que não se trata da denominada música pimba, cujas letras têm tanto de óbvio como de machista. São canções populares, que escutamos desde jovens e que normalizam atitudes e comportamentos. Mas há mais do que filmes e música (poderia juntar a literatura mas o baixo consumo torna-a menos relevante). 

Outra forma de representação com os mesmos efeitos é a produção pornográfica, que distorce a verosimilhança das relações sexuais, criando estigmas nos homens e reduzindo a agência das mulheres. 

Se a ficção não é um momento à parte, esta acaba, também, por se confundir com a realidade. E há biografias tão romantizadas que parecem (serão?) ficcionadas: quem pensa em Picasso, Maradona, Hitchcock ou Sinatra como zénites da masculinidade tóxica ou até mesmo agressores? Arrisco dizer que algo não está bem quando Steve Jobs e Elon Musk (agora menos, dado o maior escrutínio) são vistos como o suprassumo do empreendedorismo e da gestão empresarial. Quem é que sabe ou conta a história toda?

É que o problema não é o real — é a seleção da realidade. Se é verdade que estes homens alcançaram grandes feitos, assumiram importantes papéis, tiveram ideias inovadoras ou alcançaram produtos pioneiros, é também verdade que convenientemente ficam de fora os traços mais negativos, como a relação com os seus pares/empregados ou a cultura organizacional instituída – coisas que, curiosamente, por vezes só ficamos a saber através da (boa) ficção. 

Ouvir as mulheres falar sobre masculinidade tóxica é a maneira mais rápida e eficaz para compreendermos e, assim, alterarmos comportamentos. Verdade seja dita: não recai sobre elas essa responsabilidade; nós, homens, temos de fazê-lo por nós e pelas restantes pessoas.

Estas figuras importam porque os ídolos, ícones e símbolos que escolhemos para fazer parte de um imaginário cultural não são de somenos. Aprendemos sempre em referência: por imitação ou alteração, melhoria ou inversão, pelo que a total devoção e falta de questionamento em relação a outros homens retumba numa perpetuação de estilo. Os homens tratarem-se melhor uns aos outros (e a eles próprios) significa, também, uma mudança de referências. Não faz mal mudar de heróis, e, espanto, também há heroínas. Eventualmente, serão poucas as que nos virão à mente, mas essa também é uma escolha, tanto do homem como da sociedade, tanto da realidade como da ficção.

Temos de mudar

Mudar custa. Implica um corte com o passado, com o que nos foi ensinado, uma redefinição de identidade. Mudar exige aprendizagem na fase adulta — qual é o homem disposto a aprender? Nem eu sei se consigo (quero?). 

Tenho de querer, todos os dias. Porquê? Copiando o título de um artigo de Bárbara Reis, sobre o viés da dor entre homens e mulheres, este texto “não é um ataque aos homens, é a vida como ela é”. E nós fazemos miserável a vida de muita gente. Se nós, homens brancos, cis, heterossexuais, só nos prejudicássemos a nós próprios já seria grave (e muito mais agressivo, pois se uns acumulam privilégio, outros ficam nas margens), mas sabemos que não é assim e quem acaba por sofrer as maiores consequências são as mulheres e as pessoas queer, que não têm qualquer culpa da nossa falta de terapia. 

Antes de terminar, e caso nada disto faça sentido, que fiquem os números: em julho de 2022, a Cláudia, a Sara, a Assunção, a Sílvia, a Celestina e uma outra mulher não identificada foram assassinadas pelos respetivos companheiros. Isto significa que um homem matou uma mulher a cada cinco dias naquele mês. Não será difícil concluir que alguma coisa está mal no comportamento destes homens. Mas e o comportamento dos restantes, desde a piada imbecil no trabalho à violência doméstica continuada, sem nunca chegar ao femicídio? De outra forma: será que as mulheres que morreram tiveram a triste sina de encontrar assassinos premeditados ou há um comportamento generalizado a montante que, no zénite da crueldade, resulta em assassinato?

Chegámos ao fim do texto, querido leitor ‘cis’ heterossexual, que tão estoicamente acompanhou estas linhas. Agora, das duas uma: ou o que escrevi não faz qualquer sentido ou pelo menos algum fundo de verdade haverá — e isso já é suficiente para impelir o início da mudança. Contudo, diria que o melhor mesmo é perguntar à mulher mais próxima. Se não o fizer, é porque já sabe a resposta.