Jornalista sediado em Paris. Escreve sobre trabalho e política. Ex-redator do International Business Times e do In These Times. Também publicou trabalhos nas revistas Vice, The Nation e The Village Voice.

Os grandes poluidores da Europa querem garantir que a UE não impõe limites às suas emissões

A União Europeia está a considerar uma importante legislação climática para reduzir as emissões em todo o continente. Mas há um inimigo familiar que se mobiliza para enfraquecer a legislação: os lobistas dos grandes poluidores corporativos.

Ensaio
30 Agosto 2021

Tem sido aclamada como um potencial "momento seminal no esforço global para combater as alterações climáticas" e uma tentativa de "dar à humanidade uma oportunidade de lutar". Mas o novo plano abrangente da União Europeia (UE) para combater o aquecimento global pode ser bloqueado pelo inimigo habitual da reforma progressiva em Bruxelas, casa da sede da UE: os poderosos lobistas corporativos.

No início deste mês, o ramo executivo da UE, a Comissão Europeia, apresentou finalmente o plano há muito esperado para cumprir a sua meta de reduzir as emissões em 55% até 2030 e alcançar a neutralidade de carbono até 2050 — oferecendo uma combinação de novos impostos, normas de emissões mais rigorosas e regulamentos mais fortes. O conjunto abrangente de propostas poderá ter repercussões globais: a UE é a terceira maior economia do mundo e o terceiro maior emissor de gases com efeito de estufa, depois dos Estados Unidos e da China, gerando mais de 7% do total de emissões de carbono do planeta.

Em muitos aspetos, no entanto, a batalha está apenas no início. Para entrar em vigor, a legislação precisa da aprovação tanto do Parlamento Europeu como de uma "maioria qualificada" dos governos nacionais — pelo menos 15 dos 27 Estados-membros da UE que, em conjunto, representam no mínimo 65% da população da Europa. No total, espera-se que o labiríntico processo de negociação demore cerca de dois anos. 

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Muitos grupos ambientalistas consideram que o plano em cima da mesa não é suficientemente ambicioso. Mas enquanto governos e legisladores se preparam para estudar as suas quase quatro mil páginas de texto, o pacote climático da UE poderá vir a ser ainda mais enfraquecido nos próximos meses. Algumas das indústrias mais poluentes da Europa já manifestaram a sua oposição a medidas-chave — e, ao contrário das suas congéneres do movimento ambientalista, têm amplos recursos financeiros e poderosas armas de lóbi que podem usar em seu benefício.

Alargamento de impostos sobre combustíveis

Uma proposta incluída no pacote climático criaria um novo imposto sobre o querosene, pondo termo à isenção de longa data dos impostos europeus sobre os combustíveis do setor da aviação civil. Embora o principal grupo de pressão da aviação europeia, Airlines for Europe, insista em declarar o seu apoio os amplos objetivos climáticos da UE, não deixou de advertir, após a publicação do plano da Comissão, que os "impostos europeus mal concebidos não reduzirão as emissões".

A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), outro grupo industrial, foi ainda mais explícita quanto à sua oposição ao fim da isenção. No dia do lançamento do plano climático, emitiu um comunicado de imprensa com o título "O imposto não é a resposta para a sustentabilidade da aviação".

Ambos são forças a ter em conta em Bruxelas. De acordo com os dados publicamente disponíveis, o grupo Airlines for Europe gastou mais de um milhão de euros em esforços para pressionar os funcionários da UE no ano passado, enquanto a IATA gastou mais de 900 mil euros entre 2019 e o início de 2020.

Os membros de cada grupo também não se pouparam a esforços para reunir os seus próprios exércitos de lobistas. A fabricante de aeronaves Airbus gastou mais de 1,75 milhões de euros para influenciar as decisões da EU em 2019, ano do seu mais recente relatório disponível. A companhia aérea Air France-KLM, entretanto, duplicou os seus gastos em lóbi no ano passado, desembolsando mais de 900.000 euros para conseguir aceder a um pacote de resgate financeiro de 10 mil milhões de euros dos governos francês e holandês, que exigia luz verde da Comissão Europeia. A companhia aérea alemã Lufthansa gastou mais de 300 mil euros em lóbis junto de funcionários da UE, enquanto a gigante dos voos low-cost Ryanair pagou mais de 200 mil euros, de acordo com as últimas revelações anuais divulgadas.

O Airlines for Europe gastou mais de um milhão de euros em esforços para pressionar a UE no ano passado, enquanto a IATA gastou mais de 900 mil euros entre 2019 e o início de 2020.

O plano climático da UE também faria com que o sector de transporte marítimo perdesse a sua isenção de impostos sobre combustíveis — uma medida que já causou irritação no lóbi da indústria. Numa reação à divulgação da proposta, a Associação de Armadores da Comunidade Europeia argumentou que "remover a atual isenção de impostos para o combustível não é consistente com a via do progresso”.

O grupo, que declarou mais de 500 mil euros em despesas de lóbi nos seus relatórios mais recentes, disse estar “ansioso por um diálogo estreito com os decisores políticos da UE, para assegurar que as ambições climáticas sejam alcançadas e que a competitividade da navegação europeia seja salvaguardada".

Expansão do comércio de emissões

Outro pilar do plano climático é uma expansão do mercado de carbono da UE. É conhecido como o sistema de limite e negociação (cap-and-trade), cujos regulamentos estabelecem limites máximos para as emissões de carbono e exigem que as empresas comprem créditos, caso poluam acima desses limites. Enquanto o programa atual se aplica apenas às indústrias mais poluentes, como a siderurgia ou a produção de energia, a UE pretende alargar estas regras a toda a economia, atribuindo pela primeira vez um preço ao carbono em sectores como os transportes e a construção civil.

Alguns especialistas argumentam que os programas cap-and-trade são inadequados e vulneráveis à manipulação política. Mas, tal como com a proposta de imposto sobre o querosene, a indústria aérea já manifestou a sua oposição à medida.

A BP, ExxonMobil e Shell declararam mais de três milhões de euros em taxas anuais de lóbi, de acordo com os últimos dados disponíveis.

De acordo com os pedidos de informação do grupo de vigilância empresarial InfluenceMap, tanto a Air France-KLM como a Lufthansa criticaram as extensões do sistema de créditos de carbono propostas pela Comissão Europeia. Numa mensagem de e-mail enviada em janeiro de 2021 ao comissário europeu Frans Timmermans, que dirige a política climática europeia, a Lufthansa argumentou que uma expansão do comércio de emissões "afetaria unilateralmente os custos das companhias aéreas da UE".

A indústria europeia de combustíveis fósseis também está reticente em relação à proposta. FuelsEurope, o principal lóbi das refinarias de petróleo e gás natural — grupo que inclui a BP, ExxonMobil, Shell, TotalEnergies e o gigante norueguês da energia Equinor – criticou diretamente a proposta da Comissão Europeia de expandir o cap-and-trade. No seu site, o grupo defende que "a inclusão do transporte rodoviário [no sistema de comércio de emissões] dificilmente se revelará eficaz" e apela, em alternativa, à criação de um mercado de carbono separado "feito à medida" para o trânsito automóvel.

Só a FuelsEurope gastou mais de 3,25 milhões de euros para fazer pressão sobre a UE em 2020, cerca de mais um milhão que em 2019. Tal como nos Estados Unidos, as empresas de energia são das maiores gastadoras na política europeia. A BP, ExxonMobil e Shell encontram-se entre as dez empresas com maiores despesas em lóbi na UE. Cada uma declarou mais de três milhões de euros em taxas anuais de lóbi, de acordo com os últimos dados disponíveis.

Os fornecedores de gás natural europeus são igualmente poderosos. O seu grupo de pressão Eurogas — que também inclui alguns membros da FuelsEurope — manifestou a sua oposição a uma extensão imediata do cap-and-trade, defendendo uma transição mais gradual. Numa tomada de posição publicada em junho, a Eurogas, que gastou mais de 400 mil euros em lóbi no ano em que divulgou os seus dados mais recentes, reconheceu que “diferentes setores têm diferentes custos de prevenção e a sua inclusão imediata no sistema de limite e negociação existente, sem passos intermédios, poderia inicialmente pôr em risco o aumento da pressão sobre os setores atualmente abrangidos pelo sistema de comércio de emissões”.

Tal como outras indústrias, os lóbis do petróleo e gás natural afirmam apoiar o objetivo mais vasto da UE de alcançar a neutralidade de carbono até 2050. Mas como salienta Myriam Douo, uma ativista do grupo ambiental Friends of the Earth Europe, as próprias ações do setor comprometem regularmente essa promessa.

Segundo Douo, um dos culpados mais evidentes é a Royal Dutch Shell, com sede nos Países Baixos e integrada no Reino Unido. Para além de ter produzido quase mil milhões de barris de petróleo e gás natural no ano passado, a empresa confirmou recentemente que iria recorrer da decisão de um tribunal holandês, que a obrigava a reduzir mais rapidamente as emissões de carbono.

“Uma empresa que realmente se preocupa com as alterações climáticas e que está seriamente empenhada em mudar a sua atividade, apelaria de uma decisão que a obriga a uma mudança dessa atividade?”, questiona a ativista. "Existe um enorme fosso entre o seu discurso e as suas ações".

Eliminação gradual de carros movidos a gasolina e gasóleo

A UE está também a apelar a uma eliminação gradual dos automóveis movidos a gasolina e gasóleo. A atual proposta da Comissão exigiria uma redução de 55% nas emissões de carbono dos automóveis e carrinhas vendidos na UE até 2030, seguida de um corte de 100% até 2035 — abrindo caminho a uma proibição efetiva da venda de automóveis movidos a combustíveis fósseis.

Embora a indústria automóvel europeia tenha saudado a transição para os veículos elétricos, que constituem uma parte cada vez maior das vendas, está muito mais relutante em aceitar o fim definitivo da venda de automóveis a gasolina e a gasóleo. “Banir uma única tecnologia não é uma forma racional de avançar nesta fase”, declarou a Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA) num comunicado emitido após o lançamento do plano da UE.

A ACEA gastou mais de 2,5 milhões de euros em lóbi no ano passado, e os seus principais membros são por si grandes gastadores: a Volkswagen gerou uma conta de lóbi de três milhões de euros em 2019; a Daimler, dona da Mercedes, gastou mais de dois milhões em 2020; a BMW mais de 1,25 milhões no mesmo período; e a Toyota, que liderou uma campanha global para promover veículos movidos a hidrogénio e resistiu a uma transição total para carros elétricos, gastou mais de 400 mil euros entre abril de 2020 e março de 2021.

Lóbi em casa

Como normalmente acontece na União Europeia, o plano climático será negociado em duas vias. Para além das negociações em Bruxelas, os governos nacionais podem ajudar a promover ou inviabilizar certos pontos do acordo — defendendo propostas, pressionando alterações ou retendo apoios, quando considerem adequado.

Enquanto examinam os milhares de páginas do plano serão, quase de certeza, alvo de pressão dos lóbis empresariais. Como divulgou a organização não-governamental InfluenceMap num relatório do início deste mês, todos os lóbis empresariais intersectoriais das maiores economias europeias — Alemanha, França, Itália e Espanha — expressaram preocupações relativas a vários aspetos do plano. Tal como a Câmara de Comércio dos EUA, estes lóbis nacionais tendem a defender as posições dos seus membros mais poluidores em nome da indústria em geral, adotando o que a ONG apelidou de "abordagem do menor denominador comum".

A atual proposta da Comissão exigiria uma redução de 55% nas emissões de carbono dos automóveis e carrinhas vendidos na UE até 2030, seguida de um corte de 100% até 2035.

De uma forma geral, o apoio oficial da indústria aos objetivos da UE não se coaduna com a sua oposição às propostas concretas em cima da mesa de negociações — uma contradição que, provavelmente, se tornará mais evidente à medida que as negociações se forem intensificando nos próximos meses.

“É uma ‘lavagem verde‘”, afirma Douo, da Friends of the Earth Europe. "Estão a tentar apresentar-se como aliados do clima e isso não é de todo verdade".

Embora também sejam críticos em relação ao plano climático da UE e esperem vê-lo evoluir — se bem que numa direção muito diferente — os grupos ambientalistas não têm condições para competir com a influência do lóbi dos combustíveis fósseis.

Confrontadas com recursos limitados, as principais ONG ambientais da Europa formaram recentemente a sua própria coligação: os Green 10. Em 2019, o grupo declarou mais de 25 mil euros em despesas de lóbi — menos de 1% do que a FuelsEurope gastou no ano passado.

"Temos de nos unir para obter esse acesso, e depois temos uma reunião com dez organizações", diz Douo sobre a influência do grupo junto da Comissão Europeia. "É um alcance completamente diferente; não é nada comparado com o que a indústria tem".

Artigo originalmente publicado na Jacobin Magazine a 30 de julho de 2021.