Filósofo, escritor, crítico cultural, professor universitário e psicanalista lacaniano.

O que nos espera

Se queremos enfrentar devidamente a ameaça de uma catástrofe global, devemos abraçar uma nova noção do tempo. É preciso inverter o lugar-comum segundo o qual entendemos o presente processo histórico, ao estarmos engajados nele, como cheio de possibilidades e escolhas livres, enquanto, de um jeito retroativo, o mesmo processo aparece absolutamente determinado e necessário. 

Ensaio
16 Fevereiro 2023

Há no francês (e noutras línguas, como a minha, o esloveno) duas palavras para o “futuro” que não podem ser adequadamente traduzidas para o inglês: futur e avenir. Futur significa o futuro enquanto continuação do presente, a completa atualização das tendências já presentes, enquanto avenir aponta para uma quebra radical, uma descontinuidade com o presente - avenir é que está por vir (à venir), não somente o que será. Se Trump tivesse vencido as eleições de 2020, contra Joe Biden, teria sido (antes das eleições) o futuro presidente, não o presidente por vir.

Na situação apocalíptica contemporânea, o derradeiro horizonte do futur é o que o filósofo Jean-Pierre Dupuy chama o distópico “ponto fixo”, o ponto-zero da guerra nuclear, do colapso climático, do caos social e económico, etc. Ainda que indefenidamente adiado, o ponto-zero é o “atraente” virtual para que tende a nossa realidade, deixada à sua mercê.

A catástrofe futura combate-se interrompendo a nossa queda em direção a esse “ponto fixo”. Aqui podemos ver quão ambíguo é o lema “sem futuro”: a um nível mais profundo, designa não a impossibilidade de mudança mas precisamente aquilo que deveríamos almejar - quebrar o domínio que esse catastrófico “futuro” tem sobre nós, e assim abrir espaço para que algo novo que está “por vir”.

Para confrontarmos adequadamente a ameaça de uma catástrofe, devemos introduzir uma nova noção de tempo.

Dupuy argumenta que, de forma a confrontarmos adequadamente a ameaça de uma catástrofe, devemos introduzir uma nova noção de tempo, o “tempo de um projeto”, de um circuito fechado entre o passado e o futuro: o futuro é casualmente produzido pelos nossos atos no passado, enquanto a maneira como agimos é determinada pela nossa antecipação do futuro e a nossa reação a essa antecipação.

Primeiro, devemos entender a catástrofe como o nosso destino, como inevitável, e então, ao nos projetarmos nela, adotando o seu ponto de vista, inserirmo-nos retroativamente nas possibilidades contrafactuais (“Se tivessemos feito isto e aquilo, então a catástrofe em que nos encontramos não teria ocorrido!”) do seu passado (o passado do futuro) sobre o qual podemos agir, hoje.

Ainda é cedo para dizer

Não foi isso que fizeram Theodor Adorno e Max Horkheimer na sua Dialética do esclarecimento? Enquanto o Marxismo tradicional nos comandava a agir de forma a realizar uma necessidade (o comunismo), Adorno e Horkheimer projetaram-se para o resultado final e catastrófico (o advento da “sociedade administrada” da total manipulação tecnológica) para nos pedir que agissemos contra este resultado no nosso presente.

Ironicamente, não se adequa isto também à própria derrota do Comunismo em 1990? É fácil, hoje, ridicularizar os “pessimistas”, da direita à esquerda, de Alexander Solzhenitsyn a Cornelius Castoriadis, que lamentavam a cegueira e as cedências do Ocidente democrático, com a sua falta de coragem e de força ético-política ao lidar com a ameaça Comunista.

Haviam previsto que a Guerra Fria já teria sido perdida pelo Ocidente, que o bloco Comunista já a havia vencido, que o colapso do Ocidente estava iminente. Mas foi esta  sua atitude, precisamente, que mais fez pela vinda do colapso do Comunismo. Para Dupuy, a sua muito “pessimista” previsão ao nível das possibilidades - das evolução histórica linear - mobilizou-se para lhes fazer frente.

Deveremos então inverter o lugar-comum segundo o qual entendemos o presente processo histórico, ao estarmos engajados nele, como cheio de possibilidades, e a nós como agentes livres de escolher entre todas elas, enquanto, de um jeito retroativo, o mesmo processo aparece absolutamente determinado e necessário. São, pelo contrário, esses agentes engajados do presente que se entendem enredados num Destino, enquanto, retroativamente, do ponto de vista de uma observação ulterior, conseguimos discernir alternativas no passado, a possibilidade de os eventos haverem tomado um caminho diferente.

Colocando a questão de outra maneira, o passado está aberto a reinterpretações retroativas, enquanto o futuro está fechado, já que vivemos num universo determinista. Isto não significa que não podemos mudar o futuro; significa que para mudar o futuro teremos primeiro que mudar o nosso passado (não “entendê-lo”), reinterpretá-lo de tal maneira que este se abra em direção a um futuro diferente daquele imposto pela visão predominante do passado.

Haverá uma nova guerra mundial? Só poderemos responder em paradoxo. Se houver uma nova guerra mundial, esta será necessária: “Se um evento extraordinário acontecer, uma catástrofe, por exemplo, este não poderia não não ter acontecido; ainda assim, enquanto não acontecer, é inevitável. É então a atualização do evento - o facto de acontecer - que cria retroativamente a sua necessidade.”

Em 1953, um jornalista francês perguntou a Zhou Enlai, o primeiro-ministro Chinês, o que este pensava sobre a Revolução Francesa. Diz-se que Zhou respondeu: “Ainda é cedo para dizer.”

Assim que rebente o conflito militar (entre os Estados Unidos e o Irão, entre a China e Taiwan, entre a Rússia e a NATO) este aparecerá como necessário. Isto é, iremos, automaticamente, ler o passado que a ele levou como uma série de causas que necessariamente causaram esse rebentamento. Se não acontecer, lê-lo-emos da maneira que hoje lemos a Guerra Fria: uma série de momentos perigosos em que a catástrofe foi evitada porque ambos os lados estavam cientes das consequências mortais de um conflito global.

Quando, em 1953, Zhou Enlai, o primeiro-ministro Chinês, estava em Genebra para as negociações de paz que terminaram a Guerra da Coreia, um jornalista francês perguntou-lhe o que pensava sobre a Revolução Francesa. Diz-se que Zhou respondeu: “Ainda é cedo para dizer.” De certa maneira, estava certo: com a desintegração das “democracias populares” da Europa de Leste, em 1990, a luta pelo lugar histórico da Revolução Francesa voltou a inflamar-se. Os revisionistas liberais tentaram impôr a noção de que a queda do Comunismo em 1989 ocorreu precisamente no momento correto: marcava o fim de uma era que começara em 1789, o falhanço final do modelo revolucionário que nos havia sido apresentado pelos Jacobinos. A batalha pelo passado continua hoje: se um novo espaço de políticas radicais e emancipatórias voltar a emergir, então a Revolução Francesa não foi só um impasse histórico. 

Neste sentido, enquanto o futuro não se tornar presente, teremos de pensar nele como simultaneamente inclusivo do evento catástrofico e do seu não-acontecer - não como possbilidades disjuntivas, mas como uma conjunção de estados em que um ou outro se revelerão, depois, como necessários assim que o momento presente os escolha.

Não é que tenhamos duas possibilidades (seja militar, ecológica, catástrofe social por um lado ou recuperação por outro) - essa fórmula é demasiado fácil. O que temos são duas necessidades sobrepostas. Neste nosso dilema, é necessário que haja uma catástrofe global. Toda a história contemporânea move-se nessa direção e é necessário que façamos alguma coisa para a impedir. No colapso destas duas necessidades sobrepostas, apenas uma se atualizará, portanto, nesse caso, a nossa história será/terá sido necessária. O mesmo se passa com a perspetiva de uma guerra nuclear. Há anos, Alain Badiou escreveu que os contornos da futura guerra já estavam escritos:

Os Estados Unidos e a sua clique Japonesa-Ocidental de um lado, a China e a Rússia do outro, armas atómicas por todo o lado. Não podemos senão lembrar a proclamação de Lenine: ‘Ou a revolução evita a guerra ou a guerra espoleta a revolução’. É assim que podemos definir a máxima ambição do trabalho política que está por vir: pela primeira vez na História, a primeira hipótese - uma revolução evitar uma guerra - deve realizar-se, e não a segunda - uma guerra espoletar uma revolução. Foi a segunda hipótese que se materializou na Rússia no contexto da Primeira Guerra Mundial, e na China no contexto da segunda. Mas a que preço! E com tais consequências a longo prazo!

Aqui tropeçamos na obscena ambiguidade das armas nucleares: oficialmente, são feitas para não serem usadas. Conquanto, como disse Aleksandr Dugin (o filósofo da corte de Putin) numa entrevista, as armas são feitas para serem usadas. Existe grande incerteza sobre o quão convincentes são as ameaças nucleares, confirmando a questão retórica de Dupuy: “É preciso alguém estar louco, ou fingir estar louco, para ser credível?”. É crucial notar aqui que a verdadeira catástrofe já é viver sob a sombra da ameaça permanente de catástrofe.

Cada lado numa competição nuclear afirma, claro, que quer a paz e apenas reage às ameaças levantada por outros - o que é verdade, mas o que isto significa é que a loucura é intrínseca ao sistema, ao círculo vicioso em que ficamos presos assim que participamos no sistema. A estrutura é similar àquela da suposta crença: todos os participantes individuais agem racionalmente, atribuindo a irracionalidade ao outro, que pensa exatamente da mesma maneira.

Algo novo está para vir

Da minha juventude na Jugoslávia socialista, lembro-me de um estranho incidente com papel higiénico. Subitamente, começou a circular o rumor de que não havia papel higiénico suficiente nas lojas. As autoridades emitiram prontamente garantias de que havia papel higiénico suficiente para o consumo normal e, surpreendentemente, isso não somente era verdade, como a maioria das pessoas até acreditou que era verdade.

No entanto, um consumidor médio raciocinou da seguinte forma: “Eu sei que há papel higiénico suficiente e o rumor é falso, mas e se algumas pessoas levarem esse boato a sério e, em pânico, começarem a comprar reservas excessivas de papel higiénico, causando desta forma uma falta real de papel higiénico? Então é melhor comprar eu mesmo essas reservas.

Nem é preciso acreditar que alguns outros levam um rumor a sério — basta supor que alguns outros acreditam que há pessoas que levam o rumor a sério. O efeito é o mesmo, ou seja, a verdadeira falta de papel higiénico nas lojas.

Não é de admirar, então, que alguns investigadores sugiram agora uma nova resposta para a grande questão: se extraterrestres inteligentes já visitaram a Terra, porque não tentaram estabelecer contato connosco, os humanos? A resposta é: E se eles nos observaram de perto por algum tempo, mas não nos acharam qualquer interesse particular?

Liz Truss norteou a sua política económica pelas exigências do mercado, ignorando os apelos da classe trabalhadora — mas a sua queda foi precipitada por essas mesmas forças do mercado, que reagiram com pânico às suas propostas.

Somos a espécie dominante num planeta relativamente pequeno, no processo de desenvolver a sua civilização rumo a múltiplos tipos de autodestruição (colapso ecológico, autoaniquilação nuclear, etc.), sem falar nas estupidezes locais, como a “esquerda” politicamente correta de hoje que, em vez de trabalhar por uma abrangente solidariedade social, aplica até mesmo aos seus potenciais aliados critérios puristas e pseudo-morais, vendo sexismo e racismo em todo o lado e assim fazendo novos inimigos em qualquer lugar.

Nessa mesma linha, Bernie Sanders alertou que os Democratas não deveriam concentrar-se apenas no direito ao aborto antes das eleições intercalares de novembro de 2022; seria necessário abraçar uma agenda que abordasse os problemas económicos enfrentados pelos Estados Unidos e que apoiasse a classe trabalhadora. Embora Sanders tenha um recorde vitalício de 100% votos de pro-choice, o senador argumentou que os democratas também precisam de se concentrar em combater as visões“anti-trabalhadoras” dos Republicanos e as maneiras através das quais as suas políticas podem prejudicar a classe trabalhadora. Não é à toa que os liberais imediatamente contra-atacaram, acusando-o de antifeminismo.

Os mesmos alienígenas compreenderiam um facto não menos estranho do lado oposto do espectro político: no seu curto período como primeira-ministra britânica, Liz Truss norteou a sua política económica pelo que percebia serem as exigências do mercado, ignorando os apelos da classe trabalhadora — mas a sua queda foi precipitada por essas mesmas forças do mercado (a bolsa de valores, as grandes corporações) que reagiram com pânico às suas propostas.

Mais uma prova, se ainda for preciso, de que a política de centro-esquerda (de Bill e Hillary Clinton, de Keir Starmer) representa os interesses do capital de forma muito mais adequada do que a nova direita populista.

Os alienígenas chegariam então, com certeza, à conclusão de que é muito mais seguro simplesmente ignorar-nos, para não serem contaminados com a nossa doença. Se escolhermos algo Novo por vir, talvez mereçamos a sua atenção.