Ativista de Direitos Humanos. Licenciada em Relações Internacionais e mestre em Segurança, Intelligence e Estudos Estratégicos. Trabalhou em Bogotá (Colômbia), Praga (Chéquia), Bruxelas (Bélgica) e Lima (Peru), entre outras paragens.

Antirracista. Peruano, filho de migrantes, nascido em Coimbra e naturalizado português na adolescência. Licenciado em Relações Internacionais e mestre em Gestão.

O Peru entre golpes e contragolpes

O presidente Pedro Castillo tentou dissolver o Congresso, foi por ele destituído e acabou detido quando procurava refúgio na embaixada do México. Há várias semanas que as ruas do país latino-americano são palco de tumultos e mais de 25 pessoas já morreram nas manifestações. Quais as raízes destes golpes e contragolpes?

Ensaio
22 Dezembro 2022

Nem sempre a história precisa de anos para se escrever, às vezes basta uma hora de almoço atribulada. Foi assim na passada quarta-feira, 7 de dezembro, no Peru. Em menos de três horas, o então Presidente Pedro Castillo dissolveu o Congresso peruano, o Congresso destituiu-o, Castillo dirigiu-se à embaixada do México em Lima para pedir refúgio. Acabou preso com a colaboração dos seus guarda-costas. Pouco depois, a vice-presidente, Dina Boluarte, assumiu as rédeas do país. A vasta maioria dos meios de comunicação social peruanos (e internacionais) falou em golpe de Estado, mas, num país em que nem tudo o que parece é, só o tempo e uma análise profunda farão a prova dos factos.

Ainda que abruptos, a verdade é que os acontecimentos daquela alargada hora de almoço não são coisas de agora, mesmo que haja quem diga que a ingovernabilidade é um fenómeno relativamente recente, dos últimos cinco anos. Há quem aponte para temas de justiça e reconciliação pendentes desde o conflito armado interno e o fim da ditadura Fujimorista na década de 1990; e há até quem se refira à chegada dos espanhóis ao Peru, no século XVI, como o gatilho que espoletou uma história de contradições cuja síntese tarda em ser escrita. As três perspectivas estão certas, mas comecemos pela última.

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Um país, dois sistemas

O Peru é um país muito diverso, dividido em três regiões sempre celebradas na canção criolla nacional: a costa, a serra e a selva. A linguagem quotidiana usada na capital revela, contudo, outra realidade: para a maioria, só existem Lima ou província — expressão que se refere a uma região difusa e quase estrangeira que abarca tudo o que não seja a Lima metropolitana. Um país, dois sistemas, aos quais o contexto político não é alheio: em Lima e na costa, o sistema; na província, sobretudo na serra, o anti-sistema. A distribuição regional dos resultados eleitorais de 2021 confirma essas diferenças.
 

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Resultados das eleições presidenciais peruanas de 2021 por região e província.

Num país que só recentemente celebrou o Bicentenário da Independência, é compreensível que o legado do colonialismo se faça sentir e que entre em colisão com os esforços de consolidação democrática em curso. Essa colonialidade transversal, institucional, estrutural e quotidiana expressa-se na concentração do poder político e económico na elite limeña, na manutenção de um racismo e colorismo profundos, e de um classismo ativamente excludente, que acabam por encontrar maior resistência política nas regiões andinas do país.

Estas realidades são tão definidoras da peruanidade que a própria literatura nacional a tem abordado exaustivamente, ora em forma de crítica social, ora em tom de fetichização, mas sempre descrevendo bem o choque entre a branquitude e a choledad (do termo racista e depreciativo “cholo”/”chola”, usado para se referir a pessoas com rasgos andinos), em Lima e no país.

Batizada de Ciudad de los Reyes aquando da fundação espanhola, Lima veio (à força) substituir Cusco, o centro do Império Inca, obrigando à transferência do poder da serra para o litoral portuário. Paralelamente a uma distribuição de poder político e económico profundamente desigual, ao despojo de recursos naturais e à exploração de pessoas escravizadas e racializadas, os séculos vividos sob o jugo colonial espanhol resultaram num apagamento da diversidade étnica e cultural dos territórios que formam o atual Peru.

Muitas dessas tendências perduram, sobretudo no que diz respeito à censura social dos idiomas originários, como o Quechua e o Aimara, que só foram reconhecidos como idiomas oficiais em 1975. Há hoje, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Informática, três milhões e 375 mil pessoas que têm o Quechua como língua materna, e mais de 444 mil com o Aimara, às quais se juntam mais de 45 línguas indígenas faladas entre a serra e a Amazónia peruana.

Das armas à guerra de narrativas

Pouco estudado a nível internacional, mas não por isso menos devastador, o Peru sofreu um conflito armado interno de aproximadamente duas décadas, entre 1980 e 2000. Teve como protagonistas grupos armados não estatais, como o Sendero Luminoso (SL), grupo derivado do Partido Comunista Peruano e de inspiração maoísta e mariateguista, liderado por Abimael Guzmán (Chairman Gonzalo), e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), guerrilha de menor dimensão, e grupos armados estatais, com destaque para as Forças Armadas Peruanas.

Embora motivado pela forte desigualdade económica, social e étnica no país, a ação política do Sendero Luminoso acabou por se subverter em ações sanguinárias, deixando um legado lamentável de terror e  milhares de vítimas mortais e deslocados internos. Sob a filosofia do Pensamento Gonzalo, doutrina política antirrevisionista de Abimael Guzmán que adaptava a “guerra popular” maoísta à realidade peruana, o SL excedeu-se nos ataques às forças estatais ou a setores radicalmente opostos à sua agenda revolucionária.

Mais do que isso, adotou uma política de sectarismo violento: “se não estás comigo, estás contra mim”, levando a sistemáticos ataques a membros de movimentos de esquerda que optaram por meios de luta pacíficos, membros de comunidades indígenas (com destaque para o massacre de mais de seis mil membros do povo indígena Ashaninka), e outros civis inocentes.

Sob esta realidade de confrontação armada, em que efetivamente se vivia um ambiente de terror, a resposta política acabou por surgir através de candidaturas eleitorais que prometiam o fim da luta subversiva, propondo a militarização extrema como via para a securitização do país.

Entre 1996 e 2000 foram esterilizadas aproximadamente 270 mil mulheres peruanas, na sua grande maioria pobres e indígenas.

A proposta do antigo presidente  Alberto Fujimori para o Peru não diferiu muito da receita que o ditador chileno Augusto Pinochet aplicou no Chile: neoliberalismo misturado autoritarismo, com os seus opositores a serem alvo de raptos, torturas e assassinatos. Prova disso é que, logo depois de eleito, em 1990, Fujimori viajou para os Estados Unidos por dois motivos. Primeiro, para pedir autorização para o controverso “Fujishock”, sob o qual, para combater a hiperinflação da economia, substituiu abruptamente a moeda Inti pela Nuevo Sol, penalizando as poupanças de milhões de famílias. Segundo, para negociar o início da guerra suja contra o Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru.

Sob essa linha neoliberal, Fujimori concretizou a privatização de empresas estratégicas peruanas nas áreas das telecomunicações, linhas ferroviárias, empresas mineiras, bancos, fábricas de cimento e siderúrgicas. Foi em 1992 que Fujimori revelou a sua vertente autoritária, ao dar um autogolpe de Estado inconstitucional, no qual fez uso de tanques da Forças Armadas para cercar o Congresso. Dissolveu depois o órgão legislativo, com o objetivo de ganhar a maioria parlamentar, e convocou eleições para um “Congresso Constituinte” que escreveria a Constituição de 1993 que, apesar da sua origem, ainda hoje regula o país.

Sobre a “guerra contra o terrorismo”, ficou claro que o terror sempre teve dois lados quando Fujimori se viu  condenado a 25 anos de prisão por autoria imediata dos massacres e assassinatos extrajudiciais em Barrios Altos e em La Cantuta pelo Grupo Colina, braço paramilitar do fujimorismo, entre outros crimes.

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Mamá Angélica e companheiras fundadoras da Associação Nacional de Familiares de Sequestrados, Detidos e Desaparecidos do Peru. Fonte: Yayunapaq. Para recordar. Relato visual de conflicto armado interno (1980-2000).

Uma das realidades mais atrozes dos anos do fujimorismo foi a violência obstétrica sistemática e organizada contra as mulheres rurais. Segundo o Ministério da Saúde, entre 1996 e 2000 foram esterilizadas aproximadamente 270 mil mulheres e 22 mil homens, na sua grande maioria pertencentes a comunidades pobres e indígenas. 

Muitas destas esterilizações foram feitas de maneira forçada, com recurso a chantagens que impediam qualquer possibilidade de consentimento informado. Em 2022, uma investigação do Congresso confirmou que as mulheres indígenas quechua foram as mais afetadas por este “controlo de natalidade”, confirmando os projetos de eugenia social racista do fujimorismo. Só em março de 2022 é que arrancou o processo penal relativo a estes crimes.

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Jenny García com suas amigas de Belén, todas esterilizadas. O homem com quem vive depois da morte de seu marido quer ter filhos. Felicitas Chacón, com seus filhos: "Fujimori não queria mais de nós, porque somos pobres, demasiado pobres”.
Fonte: Biblioteca Virtual de la Verdad e Reconciliación de Perú​​

Segundo a Comissão da Verdade e Reconciliação, o número de peruanos mortos ou desaparecidos no conflito armado interno ronda os 69 mil. Atribui-se 54% das vítimas fatais ao Sendero Luminoso, 37% a agentes do Estado (Forças Armadas e Polícia) e 1.8% ao Movimento Revolucionário Tupac Amaru.

Uma vez findo o conflito armado, as diferenças sociais entre Lima e o interior do país acentuaram-se, com consequências que ainda hoje se fazem sentir. Se é verdade que o abandono histórico das populações mais pobres foi o grande motivo para a luta armada, também é verdade que foram essas mesmas populações as mais vitimadas pelo Sendero. 

Ainda assim, em vez de salvaguardadas, a associação entre pobreza, racismo e subversão fez com que estas populações fossem perseguidas pelo Estado por suspeitas de ligação aos grupos armados — com especial destaque para o departamento de Ayacucho. Diz-nos a Comissão de Verdade e Reconciliação que os apelidos mais frequentes entre as pessoas mortas e desaparecidas nesses anos são Quispe e Huamán, nomes quechua.

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Peru 1989-2000: Número de mortos e desaparecidos reportados à Comissão de Verdade e Reconciliação segundo departamento de ocorrência.
Fonte: Hatun Willakuy: versión abreviada del Informe Final de la Comisió de la Verdad y Reconciliación.

Os efeitos desta cultura de desconfiança e de polarização ainda perduram no pensamento geral e nas mensagens mediáticas com o chamado fenómeno do terruqueo, estratégia usada pelos setores mais conservadores no Peru que consiste em chamar terrucos, uma forma abreviada e depreciativa de dizer “terroristas”, a todos aqueles que trabalham em prol dos direitos humanos e que defendem causas sociais progressistas. O terruqueo traz duas consequências. Por um lado, gera uma discussão sobre como se deve chamar a este período histórico: terrorismo ou conflito armado? 

Apologistas do fujimorismo têm avançado a ideia de os anos de violência atravessados no Perú serem “los años del terrorismo”, rejeitando qualquer visão que responsabilize social e judicialmente ambas as partes pelos atos cometidos. Assim, a expressão “terrorismo” foi rapidamente absorvida pelos meios de comunicação nacionais e impregnada na linguagem da população geral. A designação “conflito armado”, abreviada de “conflito armado interno” ou “não internacional”, usada pela Comissão de Verdade e de Reconciliação, e a mais correta do ponto de vista do direito internacional humanitário, é frequentemente alvo de censura ou crítica.

Por outro lado, o terruqueo gera um ambiente de perseguição, criminalização e estigmatização do ativismo e do protesto que impede um exercício realmente livre de direitos sociais e políticos. É comum ativistas, líderes sociais e comunitários e líderes políticos de setores à esquerda serem referidos pelas autoridades como responsáveis por crimes de terrorismo ou associados a grupos armados à margem da lei. Importa ainda referir que a forma como a lei peruana define o delito de terrorismo ser altamente susceptível a interpretações e usos abusivos, que podem facilmente levar um defensor dos direitos humanos a uma pena mínima de vinte anos de prisão.

Castelos de ar peruanos

Contra vários candidatos de campos políticos radicalmente opostos, representados pela figura de Keiko Fujimori, filha e primeira dama de Alberto Fujimori, a candidatura de Pedro Castillo, professor, sindicalista e do interior, às eleições presidenciais de 2021 significou a representação dos los nadies do país. Parte fundamental dessa alternativa era a realização de uma Assembleia Constituinte para se redigir uma Constituição que pusesse fim ao texto fujimorista de 1993.

Numa campanha eleitoral muito absorvida pelo anti-fujimorismo (e no combate aos mitos dos perigos do comunismo), mais do que no projeto político do castillismo, havia, contudo, propostas interessantes. Algumas delas seguiam a linha da esquerda andina: reconhecimento de culturas plurinacionais, da promoção das línguas originárias e da proteção de populações vulneráveis. Noutras propostas, numa linha protecionista, incluíam-se a expansão do ferrocarril e a nacionalização de setores chave da economia relacionados com a exploração e distribuição de indústrias fósseis. Muitas destas promessas pareciam apelativas para um país com um trabalho de reconciliação pendente e que sofreu efeitos devastadores da pandemia da covid-19, ao ter registado o maior número de mortes per capita do mundo.

Mas talvez essa ideia de representação dos de baixo fosse demasiado ambiciosa. Afinal, Castillo poderia identificar-se como parte da classe trabalhadora, da luta sindical e do interior do país. No entanto, representava uma esquerda profundamente conservadora e patriarcal, ativamente oposta a causas progressistas como os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+. 

Reivindicações como o direito ao aborto ou o casamento de pessoas do mesmo sexo são praticamente orfãs nos partidos com representação no Congresso peruano. Não encontram proponentes no poder legislativo ou executivo capazes de as fazer avançar — ainda que, no momento da campanha eleitoral, Castillo se escudasse na possibilidade de deixar o povo peruano decidir sobre esses temas aquando de uma futura Assembleia Constituinte. Mas a Assembleia Constituinte acabou por nunca acontecer, já que o Congresso não lhe era favorável.

Assim sendo, Castillo esteve sempre perante uma encruzilhada. Por um lado, por não cumprir totalmente com essa promessa de representatividade e de tranformação política; por outro, porque ainda que não fosse suficientemente progressista, esse professor humilde e de origem campesina era suficientemente revolucionário para provocar a reação do sistema colonial e elitista instalado. Essa reação fez-se sentir quando o então primeiro-ministro, Guido Bellido, fez um discurso em Quechua e foi vaiado com gritos e assobios pelas bancadas parlamentares.

Discurso do primeiro-ministro Guido Bellido, em Quechua, e reação dos congressistas

Ao mesmo tempo, a demografia do país tem-se alterado nos últimos cinco anos. Frequentemente ignorada no contexto internacional, a emergência humanitária e migratória venezuelana tem vindo a agravar-se e tornou-se na segunda maior do mundo, logo depois da ucraniana. Nesse contexto, o Peru é o segundo maior país de acolhimento da diáspora venezuelana, recebendo cerca de 1,8 milhões de pessoas desse país. Lima, que acolhe pelo menos 1,3 milhões, é a cidade do mundo com mais população venezuelana fora da Venezuela.

Embora grande parte desta população esteja em situação irregular e não tenha ainda acesso ao voto, o efeito da migração no tecido social do país é inegável, especialmente na capital. A presença venezuelana tem sido capitalizada por todo o espetro político para a mobilização de ressentimentos, a disseminação de receios anticomunistas, a estigmatização de pessoas migrantes e para a legitimação de políticas migratórias mais restritivas, inclusive por Pedro Castillo.

Golpes múltiplos

Quando,  a 7 de dezembro, Pedro Castillo denunciou que desde o início do seu mandato a única agenda do Congresso tem sido usar a figura da “vacancia presidencial por incapacidad moral” contra ele, o presidente não está a mentir. De facto, a Constituição de 1993, na sua alínea 2 do artigo 113, prevê a possibilidade de impeachment por "incapacidade moral", uma figura jurídica que se tem vindo a usar como arma de arremesso político e sido responsável pela instabilidade governativa dos últimos anos.

Aliás, a instabilidade não vem de agora. O Peru teve, nos quatro anos que antecederam Castillo, quatro presidentes diferentes, dos quais três não foram eleitos. Primeiro, Pedro Pablo Kuchinsky, que renunciou por acusações de corrupção com a construtora multinacional Odebrecht e que se encontra em prisão domiciliária. Sucedeu-lhe o vice-presidente Martin Vizcarra, posteriormente alvo de impeachment por incapacidade moral associada a um escândalo de desvio das primeiras vacinas destinadas ao país — foram por si usadas e pelos seus amigos.

Seguiu-se-lhe Manuel Merino, presidente do Congresso, que acabou por se demitir depois de duas pessoas terem morrido em protestos contra o seu governo em Lima. O Congresso elegeu Francisco Sagasti como presidente de um governo transitório, culminando finalmente na eleição de Castillo em 2021. Até agora.

Quando, a 7 de dezembro, Castillo fez o seu discurso de dissolução do Congresso, declarando Estado de  Exceção e a reorganização das estruturas de justiça, já se sabia que nessa mesma tarde se iria votar uma nova moção de impeachment contra ele — uma jogada imprudente e prejudicial às regras democráticas. Não tivesse sido pelo seu discurso, quem sabe essa votação alguma vez tivesse acontecido e Castillo permanecesse na presidência. 

Em todo o caso, essa hora de almoço abre várias questões — algumas jurídicas, outras subjetivas. O anúncio de dissolução do Congresso por parte de Pedro Castillo foi autogolpe de Estado? O impeachment de que foi de seguida alvo é constitucional?

Segundo o artigo 134 da Constituição vigente, o presidente tem o poder de dissolver o Congresso e de convocar novas eleições em quatro meses, isto quando o órgão legislativo censura ou nega a sua confiança a duas composições de Conselhos de Ministros, isto é, a dois governos. A ação de dissolução do Congresso de Pedro Castillo seria, portanto, inconstitucional, na medida em que o gabinete de ministros só foi negado uma vez.

O terruqueo gera um ambiente de perseguição, criminalização e estigmatização do ativismo e do protesto que impede um exercício realmente livre de direitos sociais e políticos.

Na interpretação do chefe de Estado cessante, essa negação aconteceu duas vezes. Em novembro de 2022, o então primeiro-ministro Aníbal Torres tentou apresentar uma nova moção de confiança para o seu gabinete ministerial ao Congresso, mas este recusou a discussão dessa moção de confiança. Declarou-a “improcedente”, ao que o primeiro-ministro respondeu que isso seria interpretado como negação da moção. 

De forma coerente, Aníbal Torres demitiu-se do cargo de primeiro-ministro e deu-se uma reorganização dos gabinetes. Subsequentemente, o Tribunal Constitucional pronunciou-se indicando que essa improcedência não poderia ser interpretada como uma recusa da moção.

Qual é, então, a legalidade do processo de impeachment presidencial que se seguiu? Desde que iniciou o mandato, Pedro Castillo tem sido refém do desequilíbrio de forças entre o governo e um Congresso em que a oposição é maioria. As tentativas de descredibilização não têm faltado e, de facto, Castillo está sob investigação em vários processos relacionados com crimes de corrupção. Há quem, no Congresso, argumente que essas suspeitas, que interpretam como certas, são suficientes para pedir uma vacancia por incapacidade moral. Contudo, não existe qualquer acusação formal.

Ao votar o impeachment presidencial, o Congresso tinha, de acordo com os artigos 99 e 100 da Constituição, a obrigação de ouvir Pedro Castillo, com a assistência de um advogado. Não o fez, ao invés emitiu um projeto de lei express para fugir a essa obrigação. Quando o presidente se dirigia à embaixada mexicana, foi detido sob delito de rebelião, que tampouco consta como excepção no artigo 117 da Constituição, que se refere às possibilidades de levantamento da imunidade presidencial. No entretanto, essa detenção foi estendida, sob o argumento de perigo de fuga latente, a 18 meses de prisão preventiva pelo Supremo Tribunal de Justiça.

A família do chefe de Estado deposto teve, entretanto, mais sorte. Conseguiu refugiar-se na embaixada mexicana e recebeu do governo mexicano asilo político, estando este a analisar estratégias para retirar a família do Peru. A decisão anunciada pelo ministro das Relações Exteriores mexicano, Marcelo Ebrard, desencadeou uma nova escala de tensão diplomática: o governo peruano declarou o embaixador mexicano persona non grata - o mais forte sinal de descontentamento no mundo da diplomacia. O diplomata tem até quinta-feira (ou seja, 72 horas) para abandonar o Peru. 

Feridas abertas

O Peru dos dias de hoje é governado pela presidente Dina Boluarte, vice-presidente de Pedro Castillo, que rapidamente se distanciou das ações do antigo chefe de Estado e declarou ter tomado posse para exercer até 2026. Pouco depois, perante a força das manifestações contra o novo executivo, retraiu-se e abriu a porta a eleições antecipadas em dezembro de 2023, mas o Congresso recusou-o e, agora, fala-se numa nova data: abril de 2024.

Independentemente do “legalês” em disputa entre o antigo presidente e o Congresso, as exigências das manifestações são claras e são quatro: a demissão da presidente Dina Boluarte, a dissolução efetiva do Congresso, a realização de novas eleições para uma Assembleia Constituinte e a libertação de Pedro Castillo. Até que se corresponda à expetativa popular, mesmo que possa significar um regresso mais oficial do fujimorismo nas próximas eleições, o país estará em tumulto. O sistema limeño e o antissistema de província estão novamente em confronto.

Até 19 de dezembro, houve 25 mortos confirmados nas manifestações, nove deles  em Ayacucho, o antigo teatro de operações do conflito armado interno, às mãos das autoridades. As duas primeiras vítimas, de 15 e de 18 anos, tinham os apelidos Quispe. 

Ao contrário do que aconteceu na época de Merino, dois mortos não foram suficientes para forçar a demissão de Dina Boluarte.

Sob o estado de emergência, em Lima, a Dicorte (Direção contra o terrorismo da Polícia Nacional do Peru) ocupou a sede da Confederação de Comunidades Campesinas del Perú e a sede da organização política Nuevo Perú, presidida pela líder progressista Verónika Mendoza. As duas sedes albergavam manifestantes e camponeses, inclusive de comunidades que não falavam castelhano e que estavam em Lima para se manifestar, acabando retidas por mais de oito horas. A advogada Mar Perez, da Coordenadora Nacional de Direitos Humanos, indica que houve sequestro de facto, tentativas para se forjarem provas e vários abusos policiais.

Em Ayacucho e Andahuaylas não falta quem denuncie que o terruqueo continua em força e que os abusos de poder passam impunes quando a vítima é pobre e luta pelos seus direitos. As organizações de direitos humanos repetem que o estado de emergência não dá carta branca para a intimidação, perseguição e execução sumária de quem protesta. 

Entretanto, a presidente Dina Boluarte nomeou para a chefia dos serviços secretos peruanos o coronel Juan Carlos Liendo O'Connor, antigo integrante da equipa de inteligência de Alberto Fujimori. Liendo elogiou a ação da polícia e definiu os protestos no país como uma "insurgência terrorista".

Ao contrário do que aconteceu na época de Merino, dois mortos não foram suficientes para forçar a demissão de Dina Boluarte. Afinal, estas 25 mortes aconteceram em província, não em Lima. As feridas estão abertas há muito, e os mais golpeados são os de sempre.