Antropólogo e doutorando do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente pesquisa a história do movimento antirracista e artes na periferia de Lisboa.

O império de João Maria Bravo: da Escravatura à Guerra Colonial, das armas ao Chega

Não esqueçamos a forma como, no passado, o fascismo se ergueu através do financiamento das oligarquias e com alianças estratégicas nas estruturas armadas do Estado.

Ensaio
26 Julho 2021

No verão passado, vários milionários juntaram-se numa luxuosa propriedade em Odivelas para escutar, aconselhar e planear o financiamento de um partido de extrema-direita, o Chega. O almoço aconteceu na Quinta do Barruncho, residência de João Maria Bravo, magnata que lidera o fornecimento de armas e equipamento militar ao Estado.

À mesa da casa feudal sentaram-se André Ventura, Diogo Pacheco de Amorim e os homens de negócios João Maria Bravo, Paulo Côrte-Real Mirpuri, Miguel Félix da Costa, Francisco Sá Nogueira, Carlos Barbot, João Pedro Gomes e Francisco Cruz Martins. O passado das fortunas e poder de muitos destes homens revelam uma história que importa conhecer. Uma delas é a do vasto império da família Bravo.

João Maria Bravo, principal promotor do almoço, é o dono da Sodarca, um grupo empresarial ligado ao lobby das armas, da caça, do turismo de luxo e da aeronáutica. Com os seus vários tentáculos, a empresa divide-se na Sodarca Defesa e Segurança, Sodarca Caça e Pesca, Helibravo e Herdade Vale do Manantio.

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Nos últimos anos, este grupo faturou ao Estado dezenas de milhões de euros em negócios de armas e aeronaves. Por exemplo, em 2014 equipou o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) com as suas pistolas Glock.

Em 2019, a Helibravo apareceu em várias notícias, e não pelas melhores razões: esteve ligada a um polémico negócio de fornecimento de meios aéreos à Força Aérea Portuguesa, destinados ao combate a incêndios. A empresa, que varreu toda a concorrência num concurso internacional, foi acusada de prestar falsas declarações.

Segundo as restantes empresas concorrentes, como referiu o Jornal de Notícias, a Helibravo teria omitido o facto de não deter as 35 aeronaves necessárias, sendo que as iria subcontratar a um grupo espanhol e a outro italiano, ambos acusados de cartelização de preços nos respetivos países. Ainda assim, o contrato com o Estado avançou por 53 milhões de euros.

João Maria Bravo, grande entusiasta de André Ventura, afirmou à revista Visão que “Portugal se afunda desde 1974". Defende mesmo que o deputado neofascista pretende “colocar o país na ordem”, garantindo que conta com muitos apoios nas forças policiais e militares, onde o empresário tem excelentes contactos.

O dono da Quinta do Barruncho é conhecido pela sua ostentação. Em setembro de 2015, na celebração do seu aniversário, organizou uma luxuosa festa de três dias na sua Herdade do Vale do Manantio, em Moura. O evento, ao qual compareceram 200 convidados, incluiu uma viagem de barco no Alqueva, com um rapto encenado por mulheres baywatchers, dançarinos profissionais, DJs, festas temáticas e um concurso miss e mister t-shirt molhada.

“Bico”, como é conhecido pelos amigos, inaugurou a celebração irrompendo entre os convidados ao som de uma ópera, vestido de toureiro e em cima de uma charrete puxada por dois cavalos. No segundo dia, foi também o grande anfitrião da noite temática “África Minha”, cujo imaginário pretendia recriar safaris africanos. Na enorme tenda onde decorreu a festa exibiu animais embalsamados caçados por si e o chão foi coberto de lenços de leopardo.

Escravatura, ditadura, colonialismo e guerra

O passado da família Bravo, como o de muitas outras famílias poderosas portuguesas, conta uma história ligada à Escravatura, ao Colonialismo, à ditadura do Estado Novo e à Guerra Colonial.

Sabe-se que António Maria Bravo, tetravô de João Maria Bravo, chegou a Lisboa no início do século XIX vindo da Andaluzia e instalou uma fábrica de seda nas Amoreiras. Mais tarde, rumou com o seu filho até ao Rio de Janeiro, onde se ligaram ao transporte marítimo de mercadorias que circulavam entre o Brasil, Angola, Portugal, Holanda e a Inglaterra.

Nessa época, vários portugueses enriquecidos no Brasil, como os Sousa Breves, os Pinto da Fonseca, o Conde de Ferreira, ou João Henrique Ulrich, estiveram envolvidos no tráfico de negros escravizados. No caso dos Bravo, sabemos que foi numa fábrica de tabaco, instalada em 1836 no Rio de Janeiro, que o tetravô e o trisavô do financiador do Chega exploraram dezenas de escravizados na indústria.

Há registos de que os Bravo compraram pessoas raptadas em Benguela, Congo, Cassanje, Cabinda ou Songo. Eram dezenas os escravizados na fábrica carioca.

Há registos de que os Bravo compraram pessoas raptadas em Benguela, Congo, Cassanje, Cabinda ou Songo. Eram dezenas os escravizados na fábrica carioca, a maioria vinda de Angola, alguns de Moçambique e outros do Brasil. Quem nos fornece os documentos que comprovam estes dados é o próprio pai de João Maria Bravo, que em 1992 editou um livro sobre os seus antepassados com o título António Maria Bravo & Filho.

Com o dinheiro acumulado no Brasil, graças ao trabalho escravizado na indústria e ao transporte de mercadorias, a família fundou, em 1843, a poderosa firma António Maria Bravo & Filho. Foi neste período que se ligaram à banca como acionistas do Banco Comercial do Rio de Janeiro, do Banco de Lisboa e do Banco de Portugal. No século XIX, o investimento na banca com dinheiro acumulado da Escravatura foi o trajeto comum de muitas fortunas vindas do Brasil.

Durante a ditadura fascista, os negócios da família não pararam de se afirmar e beneficiaram diretamente da Guerra Colonial (1961-1974), como comprovam diversos contratos celebrados com o Estado neste período. No século XX, já em Portugal, os negócios da família passaram do transporte marítimo para a aviação e armamento. João Maria Feio Bravo, por exemplo, pai do atual dono da Sodarca, esteve também ligado à ditadura de António de Oliveira Salazar, sendo representante dos interesses das armas e da caça na Câmara Corporativa do Estado Novo. Foi ainda diretor do Clube Português de Tiro a Chumbo, vice-cônsul do Luxemburgo em Lisboa e escreveu diversos livros sobre caça, prática que parece ser uma antiga paixão na família.

Por exemplo, poucos meses depois de Salazar proferir as palavras “Para Angola, rapidamente e em força”, em 1961, surgiu um decreto-lei que oficializou um contrato com a empresa Alberto Maria Bravo & Filhos, selando um negócio de fornecimento de paraquedas à Força Aérea.

Naqueles dias, em Angola, a repressão abatia-se ferozmente sobre a população negra e, em Portugal, milhares de jovens eram mobilizados para a “guerra do ultramar” para matar e morrer pelo império. Enquanto isso, alguns aliados do regime lucravam com a situação.

Nos primeiros anos de guerra contra as libertações africanas, são diversos os contratos do Estado com a empresa da família Bravo, nomeadamente para: fornecimento de motores Lycoming para aviões da Força Aérea (1962); compra de material sobresselente para as aeronaves militares Douglas C-54 (1962); venda de sobresselentes para os aviões Noratlas e Douglas C-47 (1962); fornecimento de paraquedas para os Cessna T-37 (1963); ou aquisição de sobresselentes para os Dornier Do 27 (1963). Parte destes gastos estava enquadrada como “despesa extraordinária para as forças militares no ultramar”. Depois, em 1968, os Bravo compram a extensa herdade alentejana do Manantio.

Não é por isso de estranhar que a nostalgia dos privilégios desse período levem João Maria Bravo a dizer que Portugal se afunda desde 1974, afirmando, sem complexos, que é importante mobilizar outros empresários à volta de André Ventura para que este possa ganhar as eleições, fazendo o necessário para financiar o seu projeto.

A influência deste magnata sobre as forças policiais, exército e empresas de segurança - através da sua posição no lobby das armas - mostra-nos o perigo real da extrema-direita em Portugal. Não esqueçamos a forma como, no passado, o fascismo se ergueu através do financiamento das oligarquias, com alianças estratégicas nas estruturas armadas do Estado e mobilizando nas ruas milícias violentas.

Nas recentes eleições presidenciais, André Ventura obteve importantes votações em zonas “nobres” do país. Na zona da capital aconteceu na Estrela, em Belém, nas Avenidas Novas, em Cascais ou no Estoril; e no Porto, na Foz. É também conhecida a sua influência sobre diversos setores da Polícia de Segurança Pública (PSP), Guarda Nacional Republicana (GNR) e forças armadas.

Os “portugueses de bem” de André Ventura

Nos seus discursos, o líder do Chega vocifera contra os corruptos; no entanto, entre as pessoas que compareceram no verão passado na Quinta do Barruncho, é difícil encontrar um nome que não esteja envolvido em casos investigados por corrupção ou ligado a negócios pouco transparentes.

O gabinete do próprio André Ventura foi alvo de buscas, em 2018, no âmbito da operação policial Tutti Fruti, a cargo da Polícia Judiciária. Anos antes, quando era inspetor tributário, sabe-se que Ventura facilitou a fuga de impostos ao Estado, por parte de uma empresa, no valor de 1.8 milhões de euros; e a firma para a qual trabalha, a Finpartner, é especializada em vistos gold, imobiliário de luxo, offshores, evasão fiscal, além de estar a ser investigada no caso Monte Branco.

Naquele almoço de verão na Quinta do Barruncho compareceu o advogado Francisco Cruz Martins, padrinho de casamento de André Ventura, homem que acumula um vasto currículo de envolvimento em casos investigados por corrupção. O seu nome surge ligado aos processos do Banif, do BES, de Vale do Lobo ou, a nível internacional, aos Panama Papers.

Outra das figuras presentes foi Paulo Côrte-Real Mirpuri, o empresário que liderou a Air Luxor durante quase duas décadas. Em 2005, esta companhia aérea faliu de forma fraudulenta, deixando para trás enormes dívidas.

Outro dos participantes foi Francisco Sá Nogueira, ligado à Helibravo de João Maria Bravo. É o antigo vice-presidente da Espírito Santo Viagens, sucursal do BES de Ricardo Salgado. E, como se sabe, este banco esteve envolvido no maior escândalo de corrupção ocorrido em Portugal nas últimas décadas.

André Ventura é um homem que caminha sobre os escombros do colonialismo, ao lado dos cadáveres da ditadura e arrasta consigo a alma racista da sociedade portuguesa.

Na luxuosa propriedade estava ainda Diogo Pacheco de Amorim, autor do programa do Chega e seu autoproclamado ideólogo. Este antigo dirigente da extrema-direita exibe no seu currículo a mancha de ter integrado um grupo bombista reacionário, o MDLP, responsável por diversos assassinatos depois do 25 de Abril de 1974.

No almoço estavam ainda Carlos Barbot, dono do império das tintas Barbot; João Pedro Gomes, ligado à poderosa firma de advogados BSGG e ainda Miguel Félix da Costa, ferrenho defensor de Donald Trump e cuja família representou, durante mais de sete décadas, a britânica Castrol em Portugal.

São estes alguns dos “portugueses de bem” que apoiam André Ventura, o político que diz que vai combater a corrupção no país. Mas isto não é de espantar: o antigo seminarista apresentou na sua tese de doutoramento, de 2013, muitas ideias que contradizem o que defende hoje; durante quase vinte anos foi um boy do PSD; e lançou-se como figura pública enquanto controverso comentador de futebol na CMTV.

Nasceram morangos e floribelas na campa de Salazar

Paredes meias com a quinta onde se reuniram estes homens em redor de André Ventura, nasceu, há várias décadas, o bairro de construção precária da Azinhaga do Barruncho. Nesta zona, milionários e pobreza extrema estão separados por um vale. Uns têm um heliporto nas traseiras do palácio, os outros têm ratos, cobras e lixo à porta de casa, como referia, em 2015, uma reportagem do semanário Expresso. De um lado, estão os privilegiados do antigo império, do outro, os “condenados da terra” das antigas colónias.

Nesse bairro de maioria negra cresceu um dos mais poderosos narradores da miséria do país, Allen Halloween. O rapper de origem guineense, a quem “Salazar condenou desde o princípio”, escreveu um dia que “nasceram morangos e floribelas na campa de Salazar”. Só não imaginaria é que parte do “esqueleto” do ditador pudesse estar ali tão perto, no luxuoso palácio que se esconde atrás dos muros.

Este é o país profundamente desigual e racista que presencia a ascensão de André Ventura, um homem que caminha sobre os escombros do colonialismo, ao lado dos cadáveres da ditadura e arrasta consigo a alma racista da sociedade portuguesa. E isto tudo com o apoio de uma elite milionária, saudosista e poderosa.