Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

O Deus mercado rejeitou o homem branco

Estamos a importar para Portugal uma polémica sem qualquer expressão no nosso mercado editorial. Os leitores de sensibilidade não são censores, são consultores. Não têm qualquer poder. Afonso Reis Cabral sentiu uma minúscula fração daquilo que autores racializados e LGBTQIA+ sentem desde que o mercado editorial existe.

Ensaio
13 Abril 2023

Em 2016 trabalhava como assistente editorial na 20|20 Editora. Lembro-me de recomendar que publicássemos uma das melhores séries de fantasia e ficção científica que já tinha lido: Broken Earth, de NK Jemisin. O segundo livro da série tinha saído duas semanas antes de eu entrar para a empresa e estava fascinado.

Os anos seguintes viriam a trazer a NK Jemisin e à sua série o devido reconhecimento. Ganhou o mais importante prémio de fantasia e ficção científica do mundo (o Hugo) três vezes. Foi a primeira autora a ganhá-lo três vezes seguidas, e a trilogia é a única da história a ganhar com cada volume. O terceiro e último romance da série, The Stone Sky, venceu ainda os outros dois grandes prémios do género, o Locus e o Nebula. Menos de 20 livros ganharam todos os três prémios, incluindo clássicos de Neil Gaiman, Isaac Asimov, Michael Chabon, ou Ursula K. Le Guin.

A minha sugestão foi rejeitada. A editora concordou que o livro era muito bom, mas explicou-me que em Portugal o mercado de fantasia passava muito por representações da Europa medieval. Cavaleiros, dragões, magos e druidas. Não havia mercado para estéticas asiáticas ou africanas.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Trabalhar numa indústria cultural é uma experiência agridoce. Durante três anos como assistente editorial na 20|20, entretanto absorvida pela Penguin Random House, tive a oportunidade de acompanhar a publicação em Portugal de livros da mais variada índole. Trabalhei com fenómenos de vendas como O Diário de um Banana, de Jeff Kinney, ou Isto Acaba Aqui de Colleen Hoover. Trabalhei para que estivessem nas livrarias portuguesas romances eróticos, ficção científica, thrillers, e até clássicos da literatura espiritual.

Tive o (imerecido) privilégio de coordenar as edições de livros de monstros da literatura mundial como Ray Bradbury, Zbigniew Herbert, Julio Cortázar, ou Adolfo Bioy Casares. Deixei a minha marca indelével na história da literatura portuguesa ao errar grosseiramente na colocação de uma vírgula na contracapa de um livro de Ferreira de Castro.

Sugeri, ou analisei, vários livros igualmente bons, ou talvez ainda melhores, que foram rejeitados por motivos que não tinham nada que ver com qualidade. Tal como Jemisin, sugeri outras três autoras negras ao longo dos anos: Angie Thomas, Jesmyn Ward e Nnedi Okorafor. Todas extraordinárias. Todas rejeitadas. Porquê? “Isso não vende.”

“Isso não vende”

Este texto foi motivado pela publicação de Afonso Reis Cabral no Facebook, na qual expôs que os seus livros foram rejeitados por uma editora americana. Não é habitual comentar polémicas do mercado livreiro em Portugal porque ao escrever sobre a minha experiência em primeira mão, mesmo que não refira onde trabalhei, basta uma pesquisa de minutos na Wook para o descobrir.

O mercado discrimina. E a discriminação do mercado força os editores a discriminar, criando um círculo vicioso em que nem o público se habitua a sair das estéticas a que está habituado nem os editores têm qualquer incentivo para inverter essa tendência.

Ainda mal passei da primeira página deste texto e já expus dois ou três editores de grande humanidade e competência inimputável a eventuais situações desagradáveis. Vou portanto deixar-me de rodeios: nem os editores portugueses que recusaram nomes de qualidade inquestionável como Jemisin, Okorafor, Ward, ou Thomas o fizeram por racismo ou misoginia (pelo menos não ostensivamente, e sabendo que há casos grosseiros disso no editorial), nem o editor americano de Afonso Reis Cabral o preteriu por ter algum problema com homens brancos.

Todos o fizeram pelo mesmo motivo: o Deus mercado.

NK Jemisin, que referi no começo deste texto, acabou por ser publicada cá pela Relógio d’Água. As vendas foram tão poucas que não chegou a sair o terceiro livro da série. The Stone Sky até hoje não existe em português europeu.

Nnedi Okorafor também venceu o Hugo e o Nebula, o World Fantasy Award e ainda o prémio Eisner, o mais importante prémio de banda desenhada do mundo. É best seller do New York Times e várias das suas obras estão neste momento a ser adaptadas para a HBO e para a Hulu, uma delas por George R.R. Martin.

Em Portugal? A Saída de Emergência lançou um livro da autora em 2018. Não esgotou a primeira edição e nunca mais nenhuma das suas obras foi traduzida para português europeu.

Podia continuar, mas acho que seria insistir no óbvio: em Portugal, fantasia e ficção científica de autores africanos e afro-americanos não vende. Independentemente da excelência inquestionável da escrita e das obras.

O mercado discrimina. E a discriminação do mercado força os editores a discriminar, criando um círculo vicioso em que nem o público se habitua a sair das estéticas a que está habituado nem os editores têm qualquer incentivo (antes pelo contrário) para tentar inverter essa tendência.

Os grandes grupos são grandes empresas

Uma nota importante a reter sobre o funcionamento de um grupo editorial: nada importa senão a faturação. Nada. O sucesso é quando a faturação atinge os objetivos e o insucesso é quando não atinge. Os grupos editoriais não são geridos de forma muito diferente de um grupo de têxtil que faça toalhas de mesa. Um dos diretores com quem trabalhei dizia sempre que não é muito diferente vender livros e vender gelados da Olá.

A “cultura de cancelamento”, esse chavão de fácil recurso para quando não se atingem os objetivos, não tem qualquer expressão a nível editorial. Ninguém quer saber de polémicas nas redes sociais senão como barómetro de vendas e um autor “cancelado” tem mais probabilidade de ver esse facto usado como artimanha de marketing do que nalgum tipo de repercurssão negativa.

As editoras (lá como cá) cortejam e publicam abertamente autores e livros reacionários desde que calculem que vão ter vendas que o justifiquem. Se um diretor editorial concluir que é mais rentável cinco livros fracos venderem mil exemplares cada que um grande romance vender cinco mil exemplares, os cinco livros fracos vão aparecer nas livrarias, ponto final.

A função dos leitores de sensibilidade é comercial e a decisão de os contratar obedece a critérios de mercado. São os grandes grupos, que querem vender e não estão interessados em produtos rejeitados pelo público alvo, que os usam. A última palavra é do editor e da folha de Excel.

Os leitores de sensibilidade, que estão no centro desta polémica, são um custo acrescido para as editoras, e ninguém os quer. Em Portugal não existem. Aparentemente, nem sequer existem nos Estados Unidos para a língua portuguesa. Mesmo lá, a sua função não é censória. A censura presume exercício de poder e os leitores de sensibilidade não têm poder algum. A vastíssima maioria dos livros publicados no mercado americano não passa por leitores de sensibilidade e não há qualquer obrigação ou necessidade de contratar os seus serviços.

A censura real não é facultativa. E não faltam exemplos nos próprios Estados Unidos, na Flórida do governador republicano Ron De Santis, por exemplo, de livros aí sim proibidos em bibliotecas. O número de pedidos e proibições mais que duplicou entre 2020 e 2022 nos Estados Unidos, um recorde dos últimos 20 anos - no ano passado, 1651 títulos foram alvos. A maioria dos livros debruçava-se sobre comunidades racializadas, a história do racismo ou tinham personagens LGBTQ. Essas histórias, por algum motivo, não tendem a ter tanta repercussão cá.

A função dos leitores de sensibilidade é puramente comercial e a decisão de os contratar obedece a critérios de mercado. O seu uso é quase exclusivo dos grandes grupos, que querem vender e não estão interessados em pôr produtos no mercado que vão ser rejeitados pelo seu público alvo.

Estamos a importar para Portugal uma polémica sem qualquer expressão ou significado no nosso mercado. Pior, estamos a fazer uma grande confusão: os leitores de sensibilidade não são censores. São consultores. Não têm qualquer poder. No fundo, fazem apenas análise de mercado. A última palavra é do editor e da folha de Excel.

O mercado vai continuar a discriminar

Afonso Reis Cabral, assim como outros paladinos anti-woke, combatentes heroicos contra o politicamente correto, está agora a sentir uma minúscula fração daquilo que autores que não são o que ele é, um homem branco cis-hetero, sentem na pele desde que existe um mercado editorial.

O talento não determina se o livro é feito de todo, nem determina a aposta que a editora faz caso o seja. Não determina a tiragem, a distribuição, a publicidade, a compra de destaques em loja, nem sequer o número de publicações que a equipa de redes sociais lhe vai dedicar. Todas essas variáveis são decididas pela perceção da empresa daquilo a que o mercado vai ser recetivo. Ponto final.

Vou dar um exemplo simples: o romance erótico. Passei quase dois anos a trabalhar exclusivamente com a chancela Topseller, dedicada à literatura comercial. Ao longo desse período fiz mais de dez romances eróticos. Publicávamos um cada dois meses, sensivelmente.

Esta curta sinopse seria apta para todos os que fiz, sem exceção: mulher branca, hétero, virgem ou quase, muito jovem e sem nenhuma característica que a destaque das suas amigas, conhece de forma arbitrária o homem dos seus sonhos. Branco, hétero, mais velho, sexualmente experimentado, muito rico e com uma profissão de prestígio (i.e. CEO, médico, advogado), ele apaixona-se por ela sem nenhum motivo em particular para isso. Começa a persegui-la. Ela resiste. Ele deseja-a e insiste. Ela acaba por ceder. Se isto parece o Cinquenta Sombras de Gray é porque é. Mas também é todos os outros.

Os números de vendas destes livros são previsíveis e razoáveis. Sabemos qual é o público deles e esse público sabe o que quer.

Alguma vez trabalhei um erótico com autores ou protagonistas negros? Nunca. Alguma vez trabalhei um erótico com autores ou protagonistas visivelmente queer? Nunca. Há-os, e de grande qualidade? Claro que sim.

Cheguei a trabalhar com autores de péssima qualidade, autopublicados na Amazon, que nem sequer conseguiram entrar nas editoras profissionais americanas? Sim.

O JK de Rowling

Afonso Reis Cabral está publicado em espanhol, italiano e alemão. Não consta que tenha sido ainda cancelado. Quer os jornais portugueses (e o próprio) estejam a brindar este caso com epítetos como “censura”, escrevendo que o autor foi “barrado” nos Estados Unidos por ignorância, aproveitamento, ou simples falta de tacto, importa referir aqui o mais importante:

Se estes livros foram de facto alvo de algum tipo de discriminação, então convém virarmos a nossa atenção para todo o sistema, porque essa mesma discriminação acontece em todas as editoras do ocidente todos os dias, porque o mercado assim o obriga.

Um dos nomes mais sonantes desta guerra cultural que Portugal está toscamente a importar da anglosfera é o de JK Rowling. A autora de Harry Potter, a série de livros mais vendida de todos os tempos, tem estado constantemente envolvida nestas polémicas, mas não é por isso que vou trazer o seu nome à baila.

Os grandes grupos, focados no mercado, não têm qualquer interesse na pluralidade e vão sempre promover um afunilamento da cultura para os formatos que sabem poder colocar em prateleira com facilidade.

Quando Rowling tentou publicar Potter originalmente no Reino Unido o primeiro livro da série, que viria a vender 120 milhões de exemplares, foi rejeitada não por uma mas por 12 editoras antes de ser aceite provisoriamente pela Bloomsbury Publishing. Digo provisoriamente porque a editora tinha uma imposição para Rowling: não podia usar o seu nome, Joanne.

Ninguém compra livros de fantasia escritos por mulheres. Doze editoras antes da Bloomsbury sabiam isso muito bem, e a Bloomsbury também não tinha qualquer dúvida. Se Harry Potter alguma vez chegasse às livrarias, a sua autora nunca poderia ser Joanne. O público leitor tinha de ser enganado, ou ao menos distraído. E assim surgiu JK. Um nome ambíguo, neutro, sem o estigma da feminilidade.

Esta história está no domínio público há mais de 20 anos e não consta que ninguém a cite como um exemplo de “censura” misógina. Rowling não foi “barrada”. Autores africanos e de ascendência africana são rejeitados todos os dias em editoras por toda a Europa e Estados Unidos, mas a justificação parece sempre colher: o mercado não está recetivo. O mercado, essa força inevitável, não quer. Autores e criadores queer idem aspas.

Desconcentrar o mercado

Toda a gente que não se pareça com Afonso Reis Cabral vive esta realidade todos os dias desde… sempre. A situação parece incomodar mais quando vem importada dos Estados Unidos.

A leitura que o editor americano fez da sensibilidade do, e cito, “US market”, parece importar mais que a nossa própria realidade editorial, em que ambos os romances de Afonso Reis Cabral não só estão publicados como venceram prémios, mas onde não se conseguem encontrar nas livrarias romances de Chinua Achebe, Ngugi wa Thiong’o, ou Alain Mabanckou.

A concentração da publicação de livros nos grandes grupos editoriais e a eliminação paulatina das pequenas editoras vai ter em Portugal exatamente o mesmo resultado que em qualquer outro mercado: vai haver cada vez menos risco, cada vez mais aposta em valores seguros e vendas garantidas, cada vez menos espaço para autores que saiam da norma. Os grandes grupos, focados no mercado, não têm qualquer interesse na pluralidade e vão sempre promover um afunilamento da cultura para os formatos que sabem poder colocar em prateleira com facilidade.

Isto, note-se, não tem absolutamente nada que ver com leitores de sensibilidade, com a ditadura do politicamente correto, com o wokeismo, ou com qualquer um dos chavões repetitivos que insuflam as páginas de opinião dos jornais. Tem a ver com algo muito mais simples: vendas.

Vem aí a temporada das feiras do livro. Os resultados da concentração do mercado no que toca à diversidade dos autores publicados vai estar à vista de todos. Será que esta polémica levará a um olhar mais atento sobre o nosso próprio mercado editorial? Seremos capazes de superar o disparate que é ver a esquerda a defender a liberdade das empresas privadas para fazer o que lhes apetece e ver a direita a fazer de conta que se preocupa com a equidade e igualdade de resultados? Teremos finalmente uma crítica liberal séria e sóbria à concentração da edição em grandes grupos avessos ao risco?

Seria bom.