Docente da Escola Superior de Comunicação Social, Instituto Politécnico de Lisboa e investigadora integrada do ICNOVA.

Mantém o jornalismo uma missão na sociedade contemporânea?

O jornalismo é essencial para a liberdade, política democrática, soberania e para se alcançar justiça e igualdade social, mas a sua degenerescência é um dos grandes problemas das sociedades. Como chegámos a esta situação?

Ensaio
13 Julho 2022

A chamada sociedade da informação conjugada com o neoliberalismo gerou uma economia política da comunicação e da cultura cuja dinâmica subverteu o regime dos media e tem vindo a alterar profundamente as práticas do jornalismo e a sua própria existência. Como chegámos a esta situação?

A compreensão sobre o jornalismo e a sua situação atual tem gerado uma ampla reflexão que envolve não só os jornalistas, mas também perspectivas oriundas da Filosofia, Sociologia, Ciências da Comunicação, Economia e outras áreas do pensamento e da investigação académica. É possível considerar este processo como verdadeiro movimento de ideias em torno de interrogações cruciais sobre a vida pública, a cidadania política e o papel que têm no jornalismo, nas circunstâncias de transformação profunda da economia e da tecnologia. O jornalismo tornou-se uma questão verdadeiramente filosófica e a sua discussão tem vindo a intensificar-se e a ser cada vez mais urgente.

No âmbito desse movimento de ideias, há que identificar, grosso modo, três grandes abordagens. A primeira consiste numa perspetiva tecnocrática e liberal económica, que considera o jornalismo como uma atividade produtiva das empresas de media e tende a não o distinguir de outras práticas de informação. A segunda relaciona-se com a tradição cultural e literária, que entende o jornalismo como fórum para a conversação pública e ação no âmbito cívico independente dos interesses comerciais. Finalmente, a terceira abordagem está ligada às consequências da conjugação, a partir de finais do século XX, da junção da viragem neoliberal da economia com a revolução digital. Esta última abalou a força económica e social dos media e, no mesmo passo, desestruturou o jornalismo.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

A forma como aqui se apresentam os dois primeiros modos de abordar o jornalismo não consegue evidentemente dar conta de uma história multifacetada de várias décadas, na qual cada uma das visões integra variantes com matizes e até contradições, como acontece com qualquer grande perspetiva. Esta opção significa decerto um obstinado back to basics, congruente com a ideia de não se considerarem esgotadas as categorias centrais das distinções políticas da modernidade, ainda que não esclareçam tudo o que na situação actual fica nos interstícios, no que é difícil de figurar, e que tem nos media um campo de eleição. 

A conjugação da viragem neoliberal da economia com a revolução digital abalou a força económica e social dos media e desestruturou o jornalismo.

Mas esse é precisamente o estímulo para o terceiro modo de abordagem. No fundo, as três visões são como que diagramas: já se sabe que a realidade é sempre mais combinatória, emaranhada, meândrica. 

Iremos esboçar estas três aproximações, incidindo nos seus planos, caracterização e manifestações mais salientes. Esta digressão será completada com um apontamento sobre a importância e a missão do jornalismo no novo cenário de profundas mudanças na comunicação e nos media.

As três abordagens ao jornalismo

Analisemos cada uma das abordagens. A primeira não separa categoricamente a atividade jornalística das empresas de media onde se inseriu ao longo dos últimos dois séculos e postula que o mercado da informação é o mais sólido apoio para o seu exercício. Esta conceção é partilhada pelas tendências ideológicas e políticas que acreditam serem as empresas e o mercado os meios mais adequados para organizar a esfera económica da sociedade e que a atuação dos poderes públicos deve estar a si submetida.

No quadro desta visão, defendida pelos principais grupos económicos de media e plataformas tecnológicas, o jornalismo é subsumido no mundo industrial e económico da informação moderna que se expandiu com o desenvolvimento da mecanização da imprensa, depois com a eletrificação e, mais recentemente, com a digitalização. Nesta ótica, o jornalismo tem na indústria da informação a sua procedência e razão de ser. A inovação tecnológica é tida como sendo sempre benéfica, quer sob a justificação da melhoria dos produtos informativos, de os tornar mais atraentes e de os dotar de maior capacidade de disseminação, quer porque seria geradora de maior riqueza económica. Ao jornalismo cabe adaptar-se aos imperativos industriais e à mudança tecnológica. 

Sob este enquadramento, o jornalismo é olhado como uma atividade naturalmente condicionada pela estrutura de recursos organizacionais, tecnológicos, funcionais e normativos das empresas de media e seus objetivos de ganho económico. Neste tipo de raciocínio, abraçado pelo liberalismo económico de várias gradações, o jornalismo é uma entidade que contribui para um sistema produtor de mercadorias. Estas podem ser notícias, reportagens, entrevistas, imagens e, claro, as miscelâneas conhecidas pelas designações infotainment, publinformação e outras. Acredita-se no princípio da economia liberal, segundo o qual a chamada competição livre unida à troca mercantil é geradora de mais qualidade a um preço mais justo. 

O pressuposto aqui subjacente consiste na abençoada promessa da combinação harmoniosa entre liberdade, mercado e qualidade da informação. A máxima desta crença é: os lucros podem aumentar ao mesmo tempo que os produtos jornalísticos são melhores. Trata-se da riqueza dos media: se existirem empresas de media produtoras de informação séria e se houver um mercado livre, os produtos jornalísticos de melhor qualidade impor-se-ão à má informação e à desinformação. 

Na versão do atual capitalismo dominante, de matriz neoliberal, o Estado deve nortear-se por três grandes eixos: incentivar a mercadorização e a empresarialização; limitar-se à fiscalização do cumprimento dos contratos das empresas de media; proteger as pessoas contra a violência, o roubo e a fraude. Qualquer modo de atuação e regulação que ponha em causa o dito mercado livre é fortemente negado. Nestas condições, o jornalismo deve não só acomodar-se à economia como verdadeiramente afeiçoar-se.

Neste tipo de raciocínio, abraçado pelo liberalismo económico de várias gradações, o jornalismo é uma entidade que contribui para um sistema produtor de mercadorias.

A segunda abordagem, radicalmente distinta da primeira, concebe o jornalismo como uma prática de expressão cultural que promove a constituição do laço social, impulsiona a conversação pública e contribui para o sentido de comunidade. O seu compromisso é melhorar a vida pública através da produção e divulgação de informações e conhecimentos geradores de discussão que permitam aos cidadãos serem livres, participar nas decisões políticas e manter os elos comuns. A missão do jornalismo é fornecer à população tais recursos e a ecologia para viver em liberdade e se autogovernar. 

Para cumprir esta nobre tarefa, eis a exigente lista normativa de Bill Kovach e Tom Rosenstiel, em Elements of journalism. What newspeople should know and the public should expect: estar obrigado à verdade; ter um compromisso com os cidadãos; manter independência face aqueles que cobre; ser monitor independente do poder; verificar é essencial; servir como um fórum para a crítica pública; orientar-se para tornar o significativo interessante e relevante; assegurar notícias abrangentes e proporcionais; e impor aos seus praticantes o exercício da sua consciência pessoal.

No âmbito do debate sobre os regimes políticos, esta abordagem posiciona o jornalismo como afim à democracia, embora convenha não ignorar que o conceito de democracia é – como todos os conceitos políticos – disputável, o que tem tradução em entendimentos diferentes e até contraditórios de democracia. Seja como for, nesta aceção, o jornalismo tem uma clara feição política na aceção do Estagirita, pois é uma ação orientada para a politeia, para as ocorrências importantes da vida na qual todos participam. 

Em suma, seguindo o ditoso ideal, mas também bastante desventurado, do governo para o povo e com o povo. Para esta abordagem, como a atividade jornalística tem estado sediada nos media, instituições maioritariamente empresariais que procuram alcançar o maior proveito económico possível, o jornalismo é alvo de constrangimentos dos proprietários e o seu exercício pode ser subvertido. Que o jornalismo não esteja orientado para o bem comum seria um resultado da lógica mercantil, em especial quando esta é desregulada. 

Nesta visão, o mercado não se move pelo cuidado de que todos participem nos processos de governo e poder. Uma orientação para o lucro opõe-se a uma que se guia pelo ideal do governo para o povo e com o povo. O Estado pode e deve atuar no sentido de proteger, através de várias formas de regulação, a liberdade de informação, a sua qualidade e o exercício livre do jornalismo.

Muitos defensores desta perspetiva não recusam que a indústria e o mercado tenham um papel nos processos de comunicação da sociedade, mas certamente a tendência é para rejeitar que o mercado possa definir a prática de uma qualquer atividade. Entendem que a definição de uma prática profissional, neste caso o jornalismo, é ditada pelo desempenho de um conjunto de competências de conhecimento, técnicas e de enquadramento moral que contribuam para o melhoria e elevação da vida pública, uma vida comum que seja possível compartir com os cidadãos.

Que o jornalismo não esteja orientado para o bem comum seria um resultado da lógica mercantil, em especial quando esta é desregulada.

Há muito que alertam para a circunstância de que o jornalismo enquanto prática tem vindo a ser seriamente ameaçado pelos media, pela concentração dos grupos económicos e pelos fins comerciais e ainda, segundo os mais críticos, por um público descrente na imprensa, num clima político que afasta os cidadãos e outros problemas radicados na própria cultura profissional da imprensa. 

Clama-se pela intervenção pública do Estado, dos grupos de cidadãos e dos cidadãos individualmente para corrigir os efeitos nefastos associados à excessiva tendência comercial que os media podem adotar. Quando tal exortação é feita, logo se volve objeto de reparo do liberalismo económico sob o argumento – muitas vezes certeiro e ainda mais vezes interesseiro – do perigo que a interferência estatal pode significar para a independência dos media e da autonomia do jornalismo. Isto em circunstâncias de fraqueza dos media comerciais e do mercado dos media. 

Veja-se agora aquilo que foi designado como uma terceira forma de abordar o jornalismo, surgida no contexto da revolução digital. Não escapa a ninguém que, desde as duas últimas décadas do século XX, os media passaram por mudanças decisivas quer na sua economia, quer enquanto tecnologias, quer ainda como instituições. Estas transformações, pelo menos nos países com regimes democrático-liberais, integram uma constelação de consequências ocorridas na comunicação pública, cuja origem reside no facto de a comunicação se ter tornado crescentemente matéria dos interesses privados do mercado, de forma cada vez mais intensa e uniforme. 

A viragem neoliberal, na qual o chamado mercado livre apareceu como Deus ex machina que se apoderou da gestão dos media, entrosou-se com as transformações possibilitadas pelas tecnologias digitais, satélites e computadores. Os arautos do liberalismo rejubilaram. O padrão da comunicação modificou-se, o sistema produtivo e de receção da comunicação pública segmentou-se em múltiplos fluxos, tudo afetando: o mundo dos livros, dos jornais, das revistas, do grande público. Consequentemente o regime dos media sofreu alterações substanciais e o jornalismo desorganizou-se, pondo em causa a possibilidade de uma esfera de conversação comum. 

Quem defende a importância do jornalismo para o sentido de comunidade considera que o que restou foram indivíduos – vistos como seres aquisitivos, eivados do utilitarismo meios/fins e com interesses – que interagem em bolhas informáticas onde estão somente os que remam para o mesmo lado. A noção de cidadãos de uma coletividade política portadora de uma memória partilhada perdeu fôlego e as condições para a liberdade política passaram a estar em perigo. 

Os sistemas políticos, incluindo os que eram considerados democráticos, abalados pelos efeitos do aumento das desigualdades acentuadas pela política neoliberal tecnocrática e pelas mudanças induzidas pela globalização económica e pela digitalização, começaram a observar crises graves e alterações significativas. Os mensageiros do liberalismo económico têm reafirmado o que imaginam ser as virtudes da troca mercantil, da inovação, do empreendedorismo e do merecimento dos que souberam esforçar-se e lutar por um lugar ao sol. Já os que advogam a segunda abordagem denunciam que as conceções da vida política foram confinadas à crença no mercado, à competição económica global, à retórica da meritocracia e ao individualismo.

Quem defende a importância do jornalismo para o sentido de comunidade considera que o que restou foram indivíduos. O jornalismo desorganizou-se, pondo em causa a possibilidade de uma esfera de conversação comum. 

É no contexto desta nova situação que os problemas que dilaceram o jornalismo devem ser pensados. O jornalismo está afetado pela conjuntura da transição do século XX para o século XXI de duas formas. 

Em primeiro lugar, o desenvolvimento da propalada sociedade da informação, em modo neoliberal, deu origem a um novo sistema de produção industrial de comunicação e cultura que transverteu profundamente os alicerces institucionais e organizacionais no qual o jornalismo estava estruturado. Sobreveio a crise da imprensa, as tentativas desesperadas e miméticas de adaptação aos novos formatos digitais de produção, circulação e receção. O grande público foi estilhaçado. O capitalismo digital e de plataforma passou a assediar, a cercar e a devorar os media tradicionais. O jornalismo foi arrastado para as indústrias do entretenimento, das telecomunicações e do digital. Desmoronaram-se as demarcações entre o que é uma organização jornalística ou uma redação noticiosa e o que são conteúdos, entretenimento, marketing e publicidade.

Em segundo lugar, a distinção entre jornalismo e conteúdos, entre facto e ficção – criações dos inícios da história da imprensa – foram desativadas. A vaga favorável à obsolescência das categorias fez o seu caminho impetuoso. Muitas vezes não se consegue perceber onde acaba o jornalismo e começam outras formas culturais ou de consumo. O jornalismo anda perdido num labirinto de propósitos, passou a ter um entendimento de si próprio impreciso, a sua missão e possibilidades estão agora sob um manto de desnorteio. 

Importa salientar que não foi apenas a nova impetuosidade do sistema de mercado que sacudiu o jornalismo. Há que ponderar o fator mudança tecnológica. Além da economia, são os media e a tecnologia que estão a condicionar fortemente a existência do jornalismo. Mas caberá ao determinismo económico e ao determinismo tecnológico decidirem a existência ou não de ocupações e profissões? Pode o jornalismo ser simplesmente considerado como mais uma atividade no domínio da comunicação, como os publicitários, as relações-públicas e os assessores? 

Como ensinou anos a fio o professor de comunicação e jornalismo norte-americano James W. Carey, o jornalismo não pode ser confundido com os media, nem compreendido como mais um ofício da comunicação, numa aceção superficial de comunicação. E acrescentamos que não pode também ser definido pela tecnologia. Como escreveu, em Afterword: The culture in question, os media são organizações nas quais algumas formas de jornalismo são praticadas, mas é uma prática que existe independentemente de qualquer sistema dos media. Não pode ser amalgamada com os interesses comerciais, políticos ou outros dos media. 

Dito isto, o jornalismo pode ser praticado de formas muito diversas: em organizações de diversas dimensões; por jornalistas independentes ou em redações com grandes equipas; usando a voz humana, a imprensa, a câmara, etc. Embora tenha uma inegável importância, como e onde o jornalismo acontece não é o que o define.

O jornalismo também não se define tout court como comunicação, pelo menos no sentido redutor de comunicação enquanto mera transmissão de informação com múltiplas formas e profissões (que poderá até abranger a publicidade e a propaganda). Nesta conceção, a comunicação estreita partilha alguns atributos com o jornalismo, mas não necessariamente os mais relevantes para a política democrática. 

O jornalismo passou a ter um entendimento impreciso de si próprio e a sua missão e possibilidades estão agora sob um manto de desnorteio. 

No que diz respeito à relação com a tecnologia, não cabe a esta determinar uma ocupação ou profissão. Além disso, a opção por um determinado sistema tecnológico deveria responder a perguntas sobre se um dispositivo técnico promove uma melhor comunicação para servir o ideal democrático e a equidade social ou se antes favorece uma maior dependência das grandes concentrações empresariais ou das gigantes tecnológicas e das suas lógicas de dataficação e formas de controlo algorítmico.

Se a revolução tecnológica digital tem sido articulada à lógica da economia de mercado e ambas têm agitado o jornalismo, é no plano conceptual – daí a índole filosófica da reflexão sobre o jornalismo – que o jornalismo joga o seu futuro. Empresas e escolas de jornalismo, ou com responsabilidade na formação de jornalistas, estão a dar indicações no sentido de considerar o jornalismo uma atividade que seria obsoleta - mais uma espécie de velharia do que uma antiguidade - no quadro da revolução digital e de uma sociedade que tem no mercado o seu centro económico. 

O embuste do jornalista empreendedor

Nos últimos anos, há quem tenha apostado na deslocação do jornalismo para o empreendedorismo, tendência que já se observa em muitos outros domínios profissionais. Surge assim o oxímoro do “jornalista empreendedor”. 

Uma tal cambalhota tem a jactância de redefinir a atividade do jornalismo. Em muitas escolas de jornalismo e em bolsas de estudos sobre formação jornalística é promovida a ideia de que os indivíduos não podem nem devem contar com o jornalismo institucional para o emprego, têm que ser convocados para o empreendedorismo, capazes de construir o seu negócio e as suas próprias “marcas”, desenvolver novas iniciativas que juntem “o fazer jornalismo” com o negócio e o lucro. A reboque das potencialidades abertas pela revolução digital, a celebrada disposição empreendedora está a alastrar-se no discurso académico, popular e em novas práticas de trabalho.

O jornalista empreendedor, acompanhando o diagnóstico de observadores como Nicole S. Cohen, Paul Benedeti, Meridith Levine e Mike Gasher, entre outros, é pensado como um indivíduo ativo que não confia em organizações tradicionais e que pode traçar o seu próprio caminho para o êxito. Energético, flexível, desapegado e adaptável, ele é o trabalhador neoliberal ideal. Adora as novas tecnologias e práticas “inovadoras” para reinventar o jornalismo como algo simultaneamente relevante e, é claro, para atrair dinheiro.

No chamado empreendedorismo, tudo é desafio, tudo é competição, as lutas são reformuladas como oportunidades ou hipóteses.

Bem calibrado às necessidades do mercado, o jornalista empreendedor labora como um religioso do capitalismo na sua perpétua automercadorização e automarketização. Independentemente de qualquer empresa de media, constrói uma audiência em torno da sua marca pessoal, desenvolve, cria e promove conteúdos, e está constantemente à procura de novas oportunidades. 

No chamado empreendedorismo, tudo é desafio, tudo é competição, as lutas são reformuladas como oportunidades ou hipóteses. Jovens jornalistas devem ser sagazes o suficiente para, através de networking, conseguirem estágios, bolsas, trabalhar sem remuneração, ao mesmo tempo que desenvolvem um site ou uma aplicação que pode aliciar investidores ou ser vendido. O jornalista empreendedor vive permanentemente num ambiente web summit. Para um defensor do jornalismo empreendedor como Jeff Jarvis, o jornalismo é negócio, os jornalistas são culpados da sua situação atual e têm diante de si o seguinte dilema: sell or perish.

E agora, que futuro?

Ter em conta o cenário descrito de mudanças deve levar-nos a desistir dos ideais do jornalismo e do seu papel na vida pública? Há ainda possibilidades de reapropriar e tonificar as suas tradições mais notáveis? Qual o significado político da disrupção do jornalismo? Pode ainda manter o jornalismo uma missão na sociedade digital de mercado?

As mudanças traçadas na esfera económica e tecnológica não são forças isoladas, importa compreendê-las na sua relação com desenvolvimentos em âmbitos mais vastos como o das conceções de sociedade e do lugar de cada sujeito na estrutura social e dos países nas relações internacionais. Na definição de cada um de nós estão as comunidades de que fazemos parte, as suas culturas, projetos e finalidades, embora as estejamos sempre a gerar, a desfazer e a remodelar. A história da vida de cada um está inscrita nesse conjunto, e nos subconjuntos formados pela classe, etnia ou género, mas nunca se restringindo apenas a estes. E só com tal consciência é viável um conceito sério de vida pública e do seu sentido cívico. 

É aqui que a missão do jornalismo se joga. Por isso, a degenerescência do jornalismo é um dos problemas mais alarmantes das sociedades atuais, pois é fundamental para a liberdade, para a política democrática, para a soberania dos Estados, para a capacidade de formar sociedades com equidade social. No entanto, a definição de jornalismo não é isenta de dificuldades.

Caracterizar o jornalismo como forma de cultura significa que se trata de uma prática de produção da cultura, de produção de sentido, insubstituível para o exercício da democracia numa aceção aprofundada. Mas, pergunta-se, que concretização tem o jornalismo como forma de cultura produtora de sentido? Isto porque, obviamente, existem muitas formas de cultura que são criadoras de significado.

Caracterizar o jornalismo como forma de cultura significa que se trata de uma prática de produção de sentido, insubstituível para o exercício da democracia.

Há entendimentos do jornalismo como narrativa de estórias, quase como se fosse literatura em termos amplos. Outras perspetivas defendem a proximidade do jornalismo com o trabalho da historiografia. Mas o jornalismo não é ficção, embora opere com a narrativa, e não tem os mesmos objetivos e o escopo da história ou das ciências sociais, apesar destes serem campos com quem tem relações de proximidade e até de necessidade mútua ao debruçar-se sobre as realidades sociais. Talvez uma das chaves para a definição do jornalismo se encontre na designação que damos à sua forma canónica de publicação – o “diário”. 

O jornalismo apresenta-se como diário dos acontecimentos singulares considerados pelos jornalistas como relevantes para o sentido de comunidade. Estes acontecimentos tornam-se, pela ação dos jornalistas, num diário das notícias relativas a uma cidade, região, país e mundo. A produção e difusão destas notícias de cada dia dirige-se a um conjunto de pessoas que, no plano normativo-político, podem configurar um público, uma “coletividade espiritual”, para utilizar uma expressão do sociólogo francês Gabriel Tarde.

Pensar o jornalismo desta forma não tem nada a ver com internautas que registam e escrevem sobre acontecimentos que depois divulgam ou com discussões em bolhas fragmentadas e muitas vezes alimentadas por entidades interessadas em enviesar, mentir ou propagandear. Nem toda a difusão de ocorrências, nem toda a discussão, é por si só passível de configurar um público, um sentido do comum. É necessário trabalho seletivo, rigoroso, fundado em conhecimento e regulado por princípios éticos para que a produção e difusão de notícias possa configurar uma corrente mental com pluralismo e significado cívico. O jornalismo tem uma missão a cumprir: procurar situar-nos num mundo comum, gerar a participação política e elevar a responsabilidade social coletiva.

O cenário descrito de mudanças não tem que implicar a desistência dos ideais do jornalismo e do seu papel na vida pública. E muito menos impede a constatação de iniciativas que procuram revigorar o jornalismo, como a do Setenta e Quatro, entre outras, rompendo imaginativamente com o colete de forças do neoliberalismo e do determinismo tecnológico, com e sem as tecnologias digitais. Não é necessário reinventar por completo o jornalismo, nem há uma solução mágica para a sua desestruturação.

O jornalismo tem uma missão a cumprir: procurar situar-nos num mundo comum, gerar a participação política e elevar a responsabilidade social coletiva.

Mas é fundamental que os próprios jornalistas tenham uma visão da sua história que ajude a clarificar os valores e as lutas (e os que morreram e continuam a bater-se por valores e lutas em prol da liberdade de informação, justiça social, igualdade, dignidade humana e ecologia) em que essa história está alicerçada. 

A questão apropriada, voltando a lembrar as palavras de James W. Carey, não é só que mundo os jornalistas produzem, mas também que jornalistas são produzidos no atual jornalismo praticado nos media dominantes. Os jornalistas têm que questionar o que estão a fazer à sua profissão com muitos dos modos atuais de produzir informação. Mais do que discutir o que é a objetividade, os jornalistas têm que se debruçar sobre os procedimentos, regras e convenções que guiam as suas práticas profissionais. As práticas do jornalismo não se autojustificam, não são fins em si próprias. E só são legítimas se tiverem em conta as consequências sociais que criam no sentido da construção de um mundo social de liberdade, democracia e equidade.