Pofessor na Universidade de Lisboa. Publicou recentemente Sombras (2019) e, com Mariana Mortágua, Manual de Economia Política (2020). Foi deputado e é membro do Bloco de Esquerda.

A maioria absoluta em modo autodestrutivo

É certo e sabido que a maioria absoluta é um pasto de arrogância. Uma parte da sociedade está cansada da fórmula promessa-conta-certa-salários-comprimidos do governo de António Costa. A responsabilidade da esquerda é criar campos sociais de luta e organizar movimentos unitários para se opor à maioria absoluta e à agressividade neoliberal.

Ensaio
27 Abril 2023

Haverá antecipação das eleições em 2023? Não. A comparação da atual deriva política com a do tempo de Pedro Santana Lopes – que o próprio, a quem falta noção, tem sugerido e explorado – é absurda: o governo de António Costa resulta de eleições e não de um arranjo partidário então inaudito em Portugal, como foi o caso de Santana Lopes, e, a haver eleições, não é certo que Luís Montenegro conseguisse vencer e, em contrapartida, se ficasse à frente por um nariz de cavalo, é certo que faria uma aliança com o Chega. São dois obstáculos para uma iniciativa presidencial dissolvente. 

Lembro que, quando se arriscou a demitir Santana Lopes, o presidente Jorge Sampaio estava preparado para renunciar ao mandato caso a maioria PSD-CDS reconquistasse o governo e esse é um risco que Marcelo Rebelo de Sousa não pode correr, sendo que as probabilidades estavam então muito mais a favor de Sampaio do que estariam agora pelo lado de Marcelo. A não existir um caso monumental, a possibilidade atual de uma jogada atómica parece-me nula. Recorrer a ela em função das eleições europeias não será tão impossível, mas ainda assim difícil – usar eleições em que participarão 25% dos eleitores e eleitoras para conclusões políticas sobre a inviabilidade de um governo permitiria um potente discurso de vitimização, em que Costa é exímio. Ou seja, o que ocupa a conversa política da semana são trivialidades e jogos de sombras.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

O que talvez seja mais interessante é a razão pela qual surgem estas efervescências. Há para isso uma explicação psicologizante: Marcelo estaria farto do papel de pilar do bloco central presidencial e irritado com o desinteresse, ou talvez incapacidade, de Costa em distribuir as verbas do PRR pelos empresários que pedem um dinheirinho, e faz disto uma pressão. Ora, essa explicação não serve ou, pelo menos, é insuficiente. O que cria esta tensão que leva Marcelo, imprudentemente, a repetir à saciedade a evocação de um poder de dissolução – repetição que o enfraquece e mostra mais incapacidade do que força – é outra, e mais importante: é a consequência do modo autodestrutivo da maioria absoluta e a desorientação do sistema que a permitiu e sustentou, a aliança Marcelo-Costa.

Que uma maioria absoluta, esta do PS ou, no passado, as do PSD e do PSD-CDS, seja um pasto de arrogância, de procedimentos expeditivos, de carreiras meteóricas, isso é certo e sabido. Mesmo que esses processos sejam mais vulneráveis se houver comunicação social que investigue – e há alguma, como o Setenta e Quatro – eles são o condimento tradicional do absolutismo, do cavaquismo ao socratismo. Sempre foi assim e assim será. 

O que há agora de novo, sobretudo em comparação com os dois anos em que o PS destroçou a geringonça e começou a preparar o dia do golpe orçamental (2019-2021), é a justaposição entre partes importantes da opinião pública que sentem o cansaço da fórmula promessa-conta-certa-salários-comprimidos, e que sofrem a explosão das contradições sociais provocadas pela política liberal do governo, que já não tem refúgio em nenhuma limitação, dado ter a maioria absoluta que exigiu. É nessas contradições que está a responsabilidade da esquerda: criar campos sociais em que o descontentamento se torne luta, essa luta procure vitórias e alavancas e organize movimentos unitários.

Marcelo evoca à saciedade o poder de dissolver o parlamento, criando tensão com o governo. Mas a tensão tem outra origem: é a consequência do modo autodestrutivo da maioria absoluta e a desorientação do sistema que a permitiu e sustentou, a aliança Marcelo-Costa.

Esses campos sociais são hoje a luta pela escola pública, pelo feminismo, contra as alterações climáticas ou várias expressões de combate a desigualdades, e ainda os terrenos de confrontação de que vou dar exemplo de seguida, a luta contra a inflação, a habitação, a saúde e as pensões, insistindo em argumentos que tenho vindo a apresentar. Não sugiro nenhuma hierarquia nestes processos, eles têm dinâmicas próprias, nuns casos mais convergentes e noutros ainda divergentes, são lugares de disputa de hegemonia, mas têm uma potência que talvez esteja a ser menosprezada pelas formas rotineiras da política. Melhor seria que passassem a ter a centralidade que lhes corresponde, pois é aí que está a oposição à maioria absoluta e à agressividade neoliberal.

A cavalgada dos preços

Quando se percebeu que a inflação colonizaria as nossas vidas, moveram-se exércitos de bem disciplinados especialistas, arautos e gurus, para convencer o povo não só da inevitabilidade como até da sua bondade, conjurando tragédias imensas se este curso fosse obstaculizado por uma condenável manutenção dos salários reais. A banca festejou a margem que lhe foi oferecida entre os juros minúsculos pagos aos depósitos e os impostos ao crédito e, se algo deduziu com a impunidade da cobrança de taxas punitivas contra os clientes, foi que o governo bradará sobre o assunto e tudo permitirá. O governador do Banco de Portugal multiplicou intervenções para avisar que os salários não podem crescer, pois gerariam uma inflação perigosa que, curioso facto, continua a galgar (mais 6% em 2023, diz o Conselho de Finanças Públicas), apesar de a causa maldita estar ausente nesta consequência.

Também esta questão tem uma história que, como não podia deixar de ser, é de muita bravata e menos ação. E, se já descobriu o que pode a volubilidade de um ministro, aqui tem um exemplo de fábula: no dia 9 de março, o ministro da Economia ameaçava os supermercados, “vamos ser inflexíveis para com todas as situações anómalas que possam ocorrer” e explicou que havia uma anomalia, pois apesar da descida dos preços da energia, “isto contrasta, em absoluto, com o que se passa a nível dos preços dos bens alimentares. Por isso, o Governo desenvolveu uma estratégia e está a trabalhar em seis dimensões. Respeitamos os operadores económicos, mas também respeitamos muito os direitos dos consumidores”. Valente.

Os campos sociais de combate da esquerda são a luta pela escola pública, pelo feminismo, contra as alterações climáticas ou várias expressões de combate a desigualdades: inflação, habitação, a saúde e as pensões. 

Vai daí, e considerando as suas seis dimensões, no dia 15 o governo anunciou a “maior operação” da ASAE sobre os ditos, e o respetivo secretário de Estado garantiu que a mão seria pesada e em quatro meses teriam sido levantados 70 processos-crime contra supermercados. Foi um sucesso de telejornal. Resultado: dois dias depois de convocar as televisões para filmarem a ASAE em ordem de marcha contra a grande distribuição, o ministro fez um discurso lamentando que “infelizmente vivemos num país que, por motivos ideológicos, continua a hostilizar as empresas, em particular as grandes empresas.  Continua a considerar o lucro um pecado e nós temos que combater esses preconceitos”. 

Os donos das grandes superfícies tinham-se zangado, o que resultou. Tiveram imediatamente razões para regozijo quando a ASAE recolheu, tudo ficou pelo IVA a 0% e pela transferência de 400 milhões para uns misteriosos subsídios à produção, com a certeza de que os preços continuarão a subir. Portanto, isto resume-se a um princípio: o congelamento e perda real do salário é a variável de ajustamento para o aumento do lucro que garantirá a prosperidade. A proposição conduz a contradições e não só por ser desmentida pelos factos, pois nem se vê prosperidade nem investimento, malgrado a obediência servil àquele princípio, que faz da compressão salarial e da recusa de controlo dos preços o alfa e ómega da política económica.

O debate sobre a política de habitação segue exatamente este guião. A dupla tenaz do aumento dos preços dos juros (para mais de um milhão de famílias endividadas a pagar a casa) e do disparar dos preços da compra ou do arrendamento responde igualmente uma estratégia de preços para transferir rendimentos, neste caso para bancos e fundos financeiros que dominam o mercado imobiliário e que procuram o apoio de uma massa de pequenos proprietários que vivem na margem do turismo. 

Como tudo tem uma história, vale a pena lembrá-la: começou com o compromisso de Costa, nas eleições de 2019, de que no cinquentenário do 25 de Abril não haveria família alguma com casa degradada, promessa repetida na eleição de 2022, seriam 26 mil famílias e não aconteceu nada; houve depois um plano e logo surgiu um menu de recuos, o alojamento local fica como está, o imposto é menor do que o inicialmente anunciado, os vistos gold são substituídos pelos nómadas digitais, os fundos imobiliários recebem borlas fiscais, terrenos públicos vão ser lançados na roda, fecha-se os olhos ao licenciamento. 

Entretanto, como seria de esperar, discute-se acaloradamente uma medida destinada a não ser aplicada em lado nenhum, o arrendamento forçado. Tudo uma manobra política perfeita, com o único problema de manter a corrida aos preços da habitação. Um dia, e não será preciso esperar muito, os jovens hoje expulsos das cidades perguntarão se houve algum efeito concreto destas medidas ou se era somente uma paródia.

O aumento dos preços dos juros e o disparar dos preços da compra ou do arrendamento é uma estratégia para transferir rendimentos para bancos e fundos financeiros que dominam o mercado imobiliário. 

Nesta precipitação, tudo se torna absurdo. O Presidente garante, com dureza, que as medidas propostas pelo governo são “inoperacionais”, uma “lei-cartaz”, sublinhando que algumas nem serão para inglês ver. É claro, e ele bem o sabe, que não haverá um único alojamento requisitado para arrendamento e o argumento de que tal faculdade já existe na lei só o sublinha, até agora nunca foi usada e não será diferente no futuro. Por isso, o governo, na aflição de um confronto com Belém, faz o que Marcelo esperaria e certamente sentirá como uma vitória, disse mansamente que há benefícios fiscais para os fundos financeiros, além de propriedades a entregar aos construtores imobiliários. De facto, esse é o núcleo realizável deste pacote, é mais uma vez o preço. 

Toda a política dos vários governos, desde a Lei Cristas até aos Vistos Gold, passando pela promoção do alojamento local, tem uma única lógica económica e social, subir os preços. Não há nem haverá nenhuma promessa que belisque esse processo até ao dia em que sejam disponibilizadas casas suficientes a preços suficientes de modo a determinar o valor da habitação, o que, como é bom de ver, está tão distante da ideia do governo como um putativa manutenção dos salários reais. 

E que importa tudo isto? Com o défice a 0,5% o governo rejubila, satisfeito por não ter usado a folga de mais de três mil milhões de euros para resolver o problema dos professores ou para criar carreiras profissionais nos hospitais e centros de saúde.

O engano das pensões e o recuo do governo

Apesar deste jogo, o governo ficou aflito com as sondagens e percebeu que a desconfiança se instalara entre as pessoas que recebem pensões, pelo que anunciou que irá cumprir a lei (proposta e aprovada pelo próprio PS), depois de ela ter sido declarada uma ameaça à República. A respeito destas danças declarativas, alguns meios de comunicação social lembraram um episódio da campanha eleitoral de 2015, quando Pedro Passos Coelho prometeu a Bruxelas um corte anual de 600 milhões de euros na segurança social e o PS o recusou. A atrapalhação do governo da direita foi evidente, não havia nenhum plano para cumprir tal meta e a ministra das finanças explicou, com candura, que poderia levar a novos cortes de pensões. 

Ficou por lembrar o outro episódio, quando Costa foi confrontado na televisão por Catarina, que lhe mostrou a página do programa económico do PS que se vangloriava de obter 1660 milhões por via do congelamento das pensões na legislatura. Essa medida acabaria por cair, o PS teve que aceitar a imposição do acordo da geringonça. Ora, o que ambos os casos demonstraram é que os dois governantes olhavam para a segurança social como a forma de reduzir despesa real e que não sabiam como o haviam de fazer.

O arrendamento forçado não passa de uma manobra política. Um dia, e não será preciso esperar muito, os jovens hoje expulsos das cidades perguntarão se houve algum efeito concreto ou se era somente uma paródia.

Isto é um clássico. A técnica de atirar números absurdos para cima de uma discussão tem sido exercitada com volúpia por vários governos, o atual não é exceção. Quando foi proposto o fim da dupla penalização das pensões antecipadas, o que já tinha sido prometido, vieram as ameaças, que eram mil milhões de euros e que o futuro da sustentabilidade seria dilapidado. Eram 90 milhões, que importava, desde que o povo acreditasse. E a expressão mais recente destes truques foi, em setembro passado, o governo engalfinhar-se no argumento de que, se cumprisse a lei e aumentasse em 2023 as pensões segundo a lei, a conta da segurança social seria aniquilada. A simples ideia de que a lei que estabelece a fórmula de cálculo para proteger o valor real de pensão em relação à inflação deve ser anulada pelo facto de haver inflação, já é suficientemente chocante. Para mais, era uma mentira. 

A ministra Ana Mendes Godinho afinou o diapasão: cumprir a lei “tira 13 anos de vida ao sistema”. Costa mandou acreditar e foi ainda mais ameaçador: “transformar esta inflação deste ano com impacto permanente na Segurança Social poria em causa algo que é absolutamente fundamental preservar, que é a sustentabilidade futura da Segurança Social”. A explicação para este raciocínio é insultuosa, mas é a política, e acrescentou: “O que justifica que em 2023 haja uma regra específica para a atualização das pensões é que este ano vivemos uma inflação absolutamente extraordinária, anómala e atípica”, anunciando que mudaria a lei para que terminasse este modo de cálculo do ajustamento das pensões. Ora, mesmo que a inflação fosse um pico, e não é, dado que os preços não voltam para trás, a perda do valor real das pensões é definitiva, pelo que a lei impõe a sua recuperação, o que agora, depois da perda nas sondagens, passou a ser apresentado como um favor ao povo.

Para então justificar que as pensões tivessem que sofrer nova perda em 2024, a ministra mandou ao parlamento uma conta em setembro. Demonstrava a morte do sistema e era falsa. Três semanas teve que apresentar a conta verdadeira com mais dois  mil milhões de euros: afinal, a receita cresce mais depressa do que a despesa e o sistema da segurança social está protegido. O excedente previsto para 2023 era de 3,1 mil milhões e será ultrapassado. Assim, a conta do Fundo de Estabilidade, que em 2015 antecipava que se entraria em défice na próxima década (em 2030 já só teria 10747 milhões), já anunciava em 2022 uma reserva de 27983 milhões em 2040 (pg. 26 do Relatório da Sustentabilidade da Segurança Social no OE2023). 

O governo rejubila com o défice de 0,5%. Está satisfeito por não ter usado a folga de mais de três mil milhões de euros para resolver o problema dos professores ou para criar carreiras profissionais nos hospitais e centros de saúde.

Apesar destes números oficiais, a ministra e o primeiro-ministro andaram a aterrorizar os futuros pensionistas com a ideia de que não haverá dinheiro. Agora, aflitos com sondagens e como os mais de 65 anos serão já um terço do eleitorado, e talvez o menos abstencionista, o governo, perdido nos preços do supermercado, empenhou-se nesta operação com afinco e repôs o valor real das pensões em relação à inflação.

É uma vitória para os pensionistas e mostra a vulnerabilidade da maioria absoluta. Se outros campos sociais conseguirem ganhar a opinião da maioria do país, persistir em soluções fortes e manter a determinação do confronto, haverá em Portugal um terceiro protagonista, além dos da trica e intriga entre Belém e S. Bento: uma esquerda que luta.