A insurreição fascista é uma oportunidade para a esquerda brasileira enfrentar os militares

É preciso encarar e enfrentar o "Partido Fardado". O ataque golpista do passado 8 de janeiro abriu uma crise política que pode ser uma oportunidade para o “campo democrático” fazer um acerto de contas histórico com as Forças Armadas brasileiras.

Ensaio
18 Janeiro 2023

Nos últimos tempos recebia mensagens e cumprimentos de vários portugueses/as pelo fim do governo Bolsonaro. Por vezes, questionava-os: “mas o movimento bolsonarista foi derrotado?”. Recebia respostas diferentes. Entretanto, acredito que as invasões do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso nos oferecem pistas consistentes para a esquerda brasileira. 

Todas elas reforçam a tese de que não se derrota eleitoralmente o bolsonarismo enquanto movimento (neo)fascista. Quando se afirma tal coisa tem-se em vista a “natureza” social e histórica do movimento bolsonarista. Então, uma pergunta parece incontornável: o que é o bolsonarismo? 

Poderia descrevê-lo genericamente como um movimento neofascista ou fascista com algumas características do integralismo (movimento fascista brasileiro dos anos 1930) e com ligações internacionais a outros movimentos reacionários (extrema-direita) pelo mundo (EUA, Espanha, Hungria, Portugal...). Mas esta categorização não evidencia quais as forças sociais que constituem o bolsonarismo no Brasil. Só identificando as suas estruturas conseguimos examinar onde o movimento bolsonarista foi derrotado e qual o tipo da derrota e os seus limites.  

Esse movimento manifesta a convergência de (pelo menos) cinco setores ou franjas da sociedade brasileira: a) o ultra-neoliberalismo ligado à lógica do mercado financeiro; b) o agronegócio e a condição dependente da economia brasileira; c) o lavajatismo; d) o Partido Fardado (os militares) e as polícias; e) o fundamentalismo religioso. As confluências dessas forças (económicas e políticas) mobilizam um bloco eleitoral robusto e um movimento social de massas com aspirações insurrecionais.

Por mais que os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) não tenham contrariado, nas estruturas, os interesses da classe dominante brasileira, especialmente na banca (os banqueiros e o rentismo), o seu projeto político, principalmente no campo do discurso e do imaginário político, expressava em certa medida um enfraquecimento da ideologia e das práticas macroeconómicas neoliberalizantes. 

O exemplo mais evidente da rejeição dessa política económica por parte da população é a recusa massiva das privatizações (pilar fundamental do neoliberalismo) até 2018. Portanto, desde a primeira vitória de Lula da Silva (2002) até à última de Dilma Rousseff (2014) esse projeto político foi derrotado nas urnas.

Aproveitando o esteio da “lava-jato”, o bloco social economicamente dominante e seus representantes partiram para uma ofensiva burguesa com a finalidade de retirar o PT do governo central.

O ponto de viragem foi 2014. Mesmo depois do “Junho de 2013”, período em que ocorreram grandes manifestações contra o governo, evidenciando os limites do projeto político do PT, Dilma Rousseff conseguiu ser reeleita. Disse que tinha o programa político “mais à esquerda”, mas  a presidenta iniciou o seu segundo mandato a governar com o programa do candidato derrotado: austeridade na veia. 

Aproveitando o esteio da “lava-jato”, o bloco social economicamente dominante e seus representantes partiram para uma ofensiva burguesa com a finalidade de retirar o PT do governo central. Sinalizaram não existir qualquer espaço para a dita “conciliação de classe”, principalmente pelo enfraquecimento político e social (pela crise capitalista, o “estelionato eleitoral” e a operação comandada pelo juiz Sérgio Moro) do segundo governo de Dilma Rousseff. Mas também por causa do longo processo de desmobilização dos movimentos sociais levado a cabo pelo PT, bloco social decisivo na luta de classes. 

O ápice dessa ofensiva foi a destituição de Dilma pela via de um golpe jurídico-parlamentar com a falsa acusação crime de responsabilidade fiscal. Será sob o governo de Michel Temer que o projeto político-económico neoliberal ganhará força com a tal “ponte para o futuro”, tendo na (contra)reforma laboral e no “teto de gasto”, que congela o investimento público por 20 anos, as suas maiores expressões do fim de um ciclo na formação social brasileira. 

Dito isto, algumas notas objetivas são necessárias. 

          a)

No governo Bolsonaro-Mourão, a agenda neoliberal foi intensificada de forma jamais vista no Brasil: um rol de privatizações, definhamento de políticas públicas essenciais para o povo trabalhador pobre e pauperizado, a (contra)reforma da previdência (segurança social), a “independência” do Banco Central em relação ao poder do voto popular; entre outras políticas neoliberalizantes. Isto é, um Estado “seletivamente forte” na defesa dos interesses do mercado financeiro, do agronegócio e dos grandes industriais e retalhistas (e.g. Havan e Riachuelo). 

A escolha de Paulo Guedes para o superministério da Economia teve o papel político de ser o “fiador” do projeto político e económico encabeçado por Bolsonaro, visto que Guedes, além de ser banqueiro, é conhecido como “Chicago boy” por ter trabalhado no Chile sob a ditadura sanguinária de Augusto Pinochet. 

Entendo estar aqui o núcleo do bolsonarismo, pois o caráter contrarrevolucionário e reacionário do movimento no que tange a guerra cultural, de pânicos morais e de “costumes”, foi por vezes utilizado como distração em relação à aplicação do programa político ultraneoliberal da “Faria Lima”. Essa tática bolsonarista tornou ainda mais difícil a luta política para o campo da esquerda e dos socialistas/comunistas nos últimos quatro anos.

O economista Alfredo Saad Filho define o neoliberalismo como "um modo de existência do capitalismo ou um sistema de acumulação”, estruturado a partir da lógica do capital financeiro (portador de juro). Mas o Brasil, sendo um país da periferia na mundialização capitalista, tem particularidades — e um segmento da burguesia fortemente ligado ao bolsonarismo.

A agenda neoliberal é o núcleo do bolsonarismo. O reacionarismo das guerras culturais e dos pânicos morais são utilizados como distrações na aplicação do programa política ultraneoliberal.

         b)

O agronegócio foi o primeiro setor do bloco economicamente dominante brasileiro a tomar a decisão de apoiar a candidatura do então deputado federal Jair Bolsonaro. Não é surpresa para quem conhece um pouco da história do Brasil, pois os latifundiários (fazendeiros) sempre foram reacionários e defensores da escravidão das pessoas negras até aos dias que antecederam a sua abolição (formal, visto que em termos práticos o sistema escravocrata continuou por longos anos). 

Um dos (falsos) argumentos da burguesia latifundiária dizia que, com o fim do trabalho escravo, a economia fundamentalmente agrária brasileira iria à bancarrota (justificativas semelhantes são utilizadas hoje para não aumentar os salários ou garantias sociais, por exemplo). 

Avancemos. O agronegócio tem vindo a crescer economicamente e tem procurado, de todas as formas, transformar o seu poder económico em poder político, especialmente a partir de dois momentos chave dos últimos 30 anos. O primeiro foi o processo de desindustrialização da economia brasileira, que reduziu a complexidade produtiva, e definhou o pouco desenvolvimento tecnológico e das forças produtivas garantido até ali  —  um dos efeitos do neoliberalismo numa economia subdesenvolvida. 

Em contrapartida, deu-se prevalência a uma dinâmica económica agro-mineira exportadora (commodities com pouco valor agregado)  —  uma forma característica de acumulação numa economia capitalista periférica e dependente. O segundo momento surge quando os governos do PT  —  observemos a contradição  —  decidem incentivar o agronegócio por meio de créditos públicos e isenções fiscais às terras que produzissem para exportação (a justificativa seria equilibrar a balança comercial e criar uma reserva cambial). 

O grupo político desse setor ficou conhecido como “bancada do boi”, especialmente no parlamento brasileiro. Entretanto, esse poder político passou a ser transversal ao aparato estatal: estados, municípios, judiciário e policial. No âmbito cultural vamos ver emergir o dito “sertanejo universitário” enquanto género “musical” dominante no espaço nacional.

Quando foi noticiado que o “agronegócio” seria um dos financiadores dos atos golpistas do passado 8 de janeiro, em Brasília, isso foi espanto para pouca gente, dada a ligação estreita e apoio público do setor à candidatura de Bolsonaro.    

         c)

Primeiramente, o lavajatismo não se restringe à figura de Sérgio Moro, ex-juiz que condenou e prendeu Lula da Silva e que, em seguida, se tornou ministro de Jair Bolsonaro, apoiando e assessorando o mesmo na segunda volta das eleições presidenciais de 2022. Contudo, Moro expressa e representa em ações políticas, pelas vias jurídicas, a visão maioritariamente reacionária do judiciário brasileiro e as suas pretensões de exercer e conduzir o poder político eleito pelo voto. 

O segundo governo da presidenta Rousseff foi marcado por intensas operações policiais que visaram desgastar o governo e incluíam recolhas ilegais de provas (famosos “grampos”, no Brasil) e fugas de informações (os “vazamentos”), especialmente de conversas telefónicas entre a então presidenta e Lula da Silva. A tática fundamental do lavajatismo sustentava-se em agendas e discursos moralizantes contra a corrupção, sendo ela a suposta raiz de todos os problemas e males do Brasil. 

Em síntese, mobiliza ativamente, no sentido de invenções jurídicas e na seletividade persecutória, o aparato estatal-jurídico a fim de criminalizar adversários políticos, especialmente o campo da esquerda (moderada e a radical). Esse moralismo abstrato e messiânico (“os salvadores do Brasil”) capturou muito os setores médios (a dita “classe média”, categorização errada na minha perspetiva) que se viram “desprezados” pelo governo do PT. Identificaram no lavajatismo uma forma antipetista. 

Portanto, o lavajatismo representa um partido na sociedade brasileira, pois vários políticos têm vindo a se eleger com o discurso lavajatista, especialmente o ex-juiz Sérgio Moro, eleito Senador, e o ex-procurador (evangélico) da operação, Deltan Dallagnol, eleito como deputado federal mais votado no estado do Paraná.

O êxito máximo” do lavajatismo foi a condenação e a prisão de Lula da Silva, que possibilitou, consequentemente, a vitória de Jair Messias Bolsonaro.

Não se pode esquecer o papel acrítico que a comunicação social desempenhou ao alimentar a “operação Lava-jato” e a condenação pública de diversas figuras políticas  —  isso precisaria de uma reflexão à parte e exaustiva. Resumidamente, somente com a “Vaza Jato” podemos dizer que se colocou luz sobre tudo e todos. Recomendo a análise muito rigorosa da doutora Sylvia Moretzsohn sobre “O caso Vaza Jato”.

O êxito máximo na “grande política” do lavajatismo foi a condenação e a prisão de Lula da Silva (em primeiro lugar nas sondagens do pleito eleitoral de 2018), possibilitando, consequentemente, a vitória de Jair Messias Bolsonaro, que depois nomeou Moro ministro da Justiça. Entretanto, só percebemos melhor a força social e conjuntural da lava-jato se entendermos o papel das Forças Armadas.

         d)

Há, igualmente, dois momentos chave que sinalizam o retorno do Partido Fardado ao centro do tabuleiro político no Brasil. Primeiro, Michel Temer afirmou que o Exército foi consultado para saber se apoiava a derrubada golpista de Dilma Rousseff. Depois o comandante do Exército, o General Eduardo Villas Bôas, escreveu um tweet  —  planeado pelo alto comando  —  com “ares” golpistas, pressionando publicamente o Supremo Tribunal Federal (STF) para que negasse o habeas corpus impetrado por Lula da Silva em abril de 2018.

Lula foi julgado nos dias que se seguiram. Há pesquisadores que, ao trabalharem com a tese do regresso dos militares ao poder, argumentam que este retorno se deu por meio da figura política de Bolsonaro, o que em termos numéricos fica bastante patente. O mais importante, no meu entendimento, é que os “milicos” são defensores da política económica ultraneoliberal do governo liberal-fascista de Bolsonaro.

A militarização do governo central começou na gestão Temer, mas foi massificada no mandato de Bolsonaro, aumentando em “70% a presença de militares em cargos de natureza civil na administração federal”. Há estudos que apontam que mais de seis mil militares estiveram no governo. 

O papel fundamental dos militares no bolsonarismo fica mais evidente na trágica gestão na pandemia da COVID-19 no Brasil, que fez quase 700 mil mortos no Brasil. Para exemplificar, nos dez meses em que o general Eduardo Pazuello permaneceu no comando Ministério da Saúde, o país foi de 16 mil mortos para aproximadamente 280 mil mortos. O que, em certa medida, põe por terra o mito de que os militares seriam “competentes” na gestão da máquina pública, à custa muitas vidas do povo trabalhador. Por outro lado, também deixou vestígio do ADN das Forças Armadas no genocídio brasileiro.

O perfil geral dos militares brasileiros forjados na doutrina estadunidense, profundamente anticomunista e antiesquerdista (“o inimigo e perigo interno”), é reacionário, golpista, repressivo e violento (especialmente o conhecido “grupo haitiano”). Conseguimos identificar essas características na leniência das Forças Armadas com os ditos acampamentos golpistas que estavam na frente dos quartéis, bem como a proteção e a colaboração dada aos fascistas no intentona golpista. Mas o processo de bolsonarização é mais alargado. 

As forças policiais e de policiamento (especialmente as Polícias Militares) foram cooptadas pela ideologia bolsonarista, principalmente pelo seu discurso armamentista, reacionário e racista de que “bandido bom é bandido morto”, a heroicização da polícia e ideias afins. Durante a intentona golpista de Brasília, observamos a colaboração da polícia com os bolsonaristas para que eles chegassem até a sede dos três poderes, e até tiravam fotos com os mesmos. Em Portugal, as forças policiais parecem caminhar no mesmo sentido, como divulgado na grande investigação jornalística “Polícias sem lei”.

O imaginário social e político conservador e reacionário hegemónico é resultado de uma longa duração histórica, mas há um fenómeno recente (dos anos 1950-1960) que colaborou com a amplificação dessa mentalidade reacionária ou (neo)fascista.

As forças policiais foram cooptadas pela ideologia bolsonarista, principalmente pelo seu discurso armamentista, reacionário e racista de que “bandido bom é bandido morto”.

         e)

Na guerra cultural, o pânico moral por meio do fundamentalismo religioso tem cumprido um papel decisivo na mobilização dos movimentos reacionários (extrema-direita) mundo afora. No Brasil, as “correias de transmissão” e disseminação desse fundamentalismo são (essencialmente) os evangélicos nas suas três vertentes: tradicional, pentecostal e neopentecostal. 

As duas últimas são as mais engajadas na “cruzada fundamentalista”, especialmente porque no centro de suas teologias tem o objetivo de influenciar o poder político “em nome de deus”, e, em última instância, eliminar o Estado laico por um supostamente “cristão”. 

Por outro lado, existe também a influência da ideologia neoliberal, particularmente constitutiva do neopentecostalismo: a teologia da prosperidade, que procura justificar e sustentar uma lógica empresarial nas igrejas que prestam um “serviço” de apoio e ajuda espiritual para indivíduos membros. A suposta contrapartida é que quanto mais essas pessoas ofertarem para “deus”, mais serão recompensadas. 

Foi nesse esteio que emergiu a denominada “burguesia da fé”, tendo como figuras mais mediáticas e enriquecidas Silas Malafaia, Edir Macedo e Valdemiro Santiago. São apoiantes do governo Bolsonaro desde a primeira hora e também atuaram ativamente na mobilização dos fiéis para irem até Brasília.

É importante sinalizar que quando criticamos a instrumentalização da religião como arma política (o que não é novidade na história da humanidade), tal não é um combate à fé individual, mas aos mercadores da fé camuflados de pastores (do perfil dos supracitados), pois são eles que lucram e se beneficiam com o poder económico e político.

Será que as bases sociais que deram condições para o bolsonarismo emergir enquanto força política foram derrotadas?

Uma observação. O fato de existir uma dimensão de irracionalidade nesses movimentos é muitas vezes disfarçada pelo misticismo religioso (e tal ponto exigiria uma análise e reflexão mais aprofundada). 

Esta sumarização apresentada acima permite levantar a questão inicial noutros termos: será que as bases sociais que deram condições para o bolsonarismo emergir enquanto força política foram derrotadas? Se congregarmos os acontecimentos da intentona golpista em Brasília, conseguimos responder de forma taxativa que não.

A separação que fiz das forças motrizes que constituem o bolsonarismo é um esforço didático para percebermos algumas particularidades e nuances. Contudo, essas forças se engendram de tal forma que é difícil separá-las. O ponto central no meu entendimento é o seguinte: a derrota eleitoral do Bolsonaro foi uma vitória tática do campo social-liberal, da esquerda progressista, dos comunistas e afins. Mas, como nos mostram os últimos acontecimentos, estamos muito longe de qualquer vitória estratégica e histórica contra o bolsonarismo.

A insurreição fascista

No que tange ao bolsonarismo, sinalizei que, em última instância, o núcleo duro do movimento é o projeto político ultraneoliberal. Acerca da intentona golpista na Praça dos Três poderes em Brasília, um conjunto de elementos aponta serem as Forças Armadas decisivas, em especial o Exército. 

Porque, diferentemente das forças policiais da capital do Brasil, foi noticiado que o Exército teria 2500 militares prontos para atuar no cumprimento da “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO). Ainda assim, permitiram e apoiaram em certa medida o acampamento bolsonarista por mais de 60 dias em frente ao quartel-general em Brasília, uma verdadeira “incubadora” do golpismo e do reacionarismo.  

Objetivamente. Um dos propósitos táticos dessa ação propedêutica do bolsonarismo era provocar um caos político, institucional e económico para que fosse declarado a GLO e as Forças Armadas interviessem a fim de derrubar o governo de Lula da Silva e fechar o STF. Além da ocupação do Congresso Nacional, Suprema Corte e Palácio Presidencial, os golpistas também procuraram interditar autoestradas, refinarias petrolíferas e derrubar torres do sistema elétrico do país. 

Um outro objetivo, no meu entender, foi demonstrar força social, capacidade de mobilização e organização, porque mesmo derrotados (1500 pessoas presas) o movimento ganharia musculatura e novos adeptos. É uma hipótese bastante plausível, pois uma recente pesquisa aponta que quase 40% da população não acredita que Lula da Silva venceu as eleições.

Toda essa meticulosa ação golpista não é fruto do voluntarismo irracional dos “soldados do bolsonarismo”.Tenho a plena convicção de que há uma coordenação e estrategistas por trás da intentona. Quem são? Tenho as minhas hipóteses, que enunciei no início dessa seção, pois não me espantaria se tivessem generais do alto-comando das FA (muitos dos que estavam no acampamento golpista eram familiares de militares da reserva e da ativa). 

Uma pergunta urgente e fundamental a ser respondida é: quem são os financiadores da marcha golpista? Não existe mobilização de pessoas num país continental com pouco dinheiro

Do que sabemos sobre as ações fascizantes, parece que a preparação teve uma organização profissional. Por outro lado, temos omissões por parte do Exército. Os militares do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) deveriam ter protegido o Palácio do Planalto, sob o comando do general Mendes Dias, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI): por que não agiram? Bem como teriam feito uma barreira para que as forças policiais (agora sob o comando de um interventor federal) não pudessem prender os bolsonaristas no acampamento. 

Temos figuras públicas sob suspeita de colaboração ou leniência com a insurreição fascista e devem ser investigadas e responder judicialmente: o governador do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e então secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, e o comando da Polícia Militar.

Há outros implicados do ponto de vista político (pelo menos até agora), dois mais gravemente, o já citado general Mendes Dias e o Ministro da Defesa (escolhido por Lula), José Múcio Monteiro, que na prática atua mais como um porta-voz das Forças Armadas do que um ministro de Estado. É um político com histórica ligação à ditadura empresarial-militar e que disse que os acampamentos golpistas eram “manifestações democráticas”, e que tinha até amigos lá. 

O ministro da Justiça, Flávio Dino, também tem responsabilidade no “capitólio brasileiro”, como o mesmo denominou — discordo dessa caracterização porque procura ocultar o papel central das Forças Armadas no Brasil, o que não ocorreu nos EUA. Principalmente a sua inação perante as inúmeras alertas da inteligência (ABIN) de que ocorreria um ataque aos três poderes com objetivo de desestabilizar o país, em especial ao governo de Lula da Silva. Uma das explicações para o erro crasso de Flávio Dino é a linha política adotada pela atual gestão federal.

Uma pergunta urgente e fundamental a ser respondida é: quem são os financiadores da marcha golpista? Não existe mobilização de pessoas num país continental com pouco dinheiro. Já se aventou em termos genéricos que seriam setores da burguesia do agronegócio, os donos dos “Clubes de Tiros” e empresários do Sul e Centro-Oeste do país (regiões em que Bolsonaro venceu nas eleições). Precisamos identificar todos e puni-los (sem qualquer culpa abolicionista), pois é preciso diferenciar os “soldados do bolsonarismo” dos comandantes e financiadores do movimento fascistas.

Perfazendo, retomo a uma questão fundamental supracitada, pois observo que as bases sociais do bolsonarismo não foram cortadas, especialmente no que concerne ao Partido Fardado. A tática do Governo Lula é a do apaziguamento, isto é, de não confrontar as Forças Armadas, com a justificativa de evitar uma crise institucional  —  é o motivo de Lula da Silva ter indicado um reacionário e porta-voz dos “milicos” para o Ministério da Defesa.

Quando o povo gritava na posse de Lula da Silva: “sem amnistia!”, não era só para o Bolsonaro e família, mas para todos os seus asseclas

Todavia, essa linha política, que pretende “organizar desastres anunciados”, foi derrotada numa semana, mas pelos vistos o governo dá sinais de não entender isso, pois a retórica é: “a democracia venceu”; “o país caminha para normalidade” e afins. Não precisamos de alarmismo, mas ter a dimensão de que o problema que emergiu com as invasões é a ponta do icebergue do bolsonarismo. 

Eles estão mobilizados. Lula da Silva erra quando diz que eles não têm pauta; têm sim: é a rutura do pacto social de 1988  —  que já é bem limitado e precário. Eles desejam uma sociedade de cariz reacionário, negacionista e fascista. Vide que mesmo depois de quase 700 mil mortos do genocídio pela COVID-19, o projeto político representado por Bolsonaro teve 58 milhões de votos. 

Precisamos encarar e enfrentá-los, principalmente porque depois desse ataque golpista abriu-se uma crise política. Esta pode ser uma oportunidade para o “campo democrático” fazer um acerto de contas histórico com as Forças Armadas. Temos de passar à régua. Refundar as FA com uma nova doutrina militar, punir todos os militares golpistas. Quando o povo gritava na posse de Lula da Silva: “sem amnistia!”, não era só para o Bolsonaro e família, mas para todos os seus asseclas, particularmente os “milicos” que saíram impunes da ditadura empresarial-militar de 21 anos.

Espero que a esquerda moderada brasileira entenda a oportunidade que se abriu agora, a primeira desde 1985. Se não existir esse enfrentamento receio que a insurreição fascista em Brasília tenha sido apenas um “ensaio geral”.