Relações públicas e assessor de imprensa. Mestre em Ciências da Comunicação (televisão e cinema) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Licenciado em Estudos Artísticos e pós-graduado em Storytelling. Estagiou na SP Televisão como guionista e trabalhou como assistente de produção em teatro e cinema.  

Indústria cultural: as repetições, os milionários, a revolução e os lucros

A indústria cultural de entretenimento tem apostado nos últimos anos na promoção e repetição de conteúdos ad nauseum: os mesmos arcos narrativos, argumentos semelhantes e personagens análogas. É através destes conteúdos que assegura a acumulação de lucros e a disseminação da ideologia dominante, mesmo quando se adapta a nichos de mercado apostando em conteúdos de estética radical e anticapitalista.

Ensaio
20 Abril 2023

Chegam à Sicília de barco e bebem um copo de prosecco. Os funcionários permanecem disponíveis para os auxiliar, transportando malas, servindo comida, tocando piano e tirando fotografias. Os hóspedes são recebidos e instalados num hotel de cinco estrelas, usufruindo de jardins interiores, obras de arte, moda e paisagens deslumbrantes. É o paraíso na terra, dir-se-ia. Mas nem todos o podem viver. 

Mia e Lucia, duas jovens italianas da classe trabalhadora, não têm dinheiro e arranjam esquemas, prostituindo-se a hóspedes ricos, de forma a poderem cumprir o desejo de usufruírem dos luxos que lhes são distantes. Portia, assistente de uma mulher rica, hóspede no hotel, também se insere neste estilo de vida, mas em troca tem de aturar os caprichos da sua patroa e os seus dramas desfasados da realidade. É um mundo requintado que lhes está vedado, bem como à maioria dos espectadores da série The White Lotus. 

O cinema e a televisão desempenham um papel determinante na construção de desejos, identidades, discursos, políticas e percepções sobre a realidade. A indústria cultural continua a ter o poder de captar a atenção da população e gerar lucros de milhões de dólares. 

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Este ensaio debruça-se sobre os processos de proliferação cultural capitalista e sobre os conteúdos que têm vindo a ser promovidos e repetidos ad nauseam ao longo dos anos. Através da distribuição destes mesmos conteúdos, assegura-se, simultaneamente, acumulação de lucros e uma disseminação da ideologia dominante, mesmo quando a indústria cultural se adapta e aposta em conteúdos de estética radical e anticapitalista. 

O conceito de indústria cultural foi desenvolvido e aprofundado por Adorno e Horkheimer, em A Dialética do Esclarecimento (1947), e revelou uma crítica à mercantilização da cultura e à reprodução da ideologia das classes dominantes. Os filósofos referem que “cada setor [cultural] é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto”, criticando a produção de conteúdos “estruturalmente alienados e objetivamente autoritários da cultura de massas capitalista”. 

As críticas e observações feitas sobre a indústria cultural do entretenimento, com foco particular em filmes, séries e telenovelas, não procuram respostas definitivas, mas levantar questões dentro deste campo tendo em conta não a época de prosperidade do pós-guerra mas o atual contexto económico, social, histórico e cultural. 

Como o mundo mudou: da televisão ao streaming

A forma como os indivíduos foram consumindo cinema e televisão alterou-se ao longo do tempo. Nem o cinema é consumido com a cerimónia dos anos 1940 e 1950 nem a televisão é a mesma desde as suas primeiras emissões regulares em Portugal, através da RTP, em março de 1957. Podemos, assim, definir diferentes fases da televisão: do seu aparecimento até ao denominado por streaming.  

A era das redes, de 1952 a meados de 1980, foi o seu momento inicial. Ao não ser portátil, estando reduzida ao ambiente doméstico, a televisão limitava as escolhas dos espectadores a uma grelha diária de programação. Em Portugal, esta fase estava intimamente ligada ao Estado Novo (1933-1974) e era amplamente influenciada pelo seu regime de poder e propaganda. Depois da queda do regime ditatorial português, as séries norte-americanas eram as mais vistas em Portugal. Este facto representava uma hegemonia e dominação cultural, além de económica, política e militar, dos Estados Unidos nos anos seguintes à II Guerra Mundial.

A segunda fase foi a era de múltiplos canais, de 1980 a meados de 2000. Foi um momento de transição que ofereceu mais autonomia aos utilizadores: controlo remoto, introdução de canais de subscrição e a oportunidade de organizarem bibliotecas de visionamento. Este período de transição representou o período, em Portugal, entre o fim da ditadura e a adaptação ao regime democrático. Foi um momento de maior competitividade da indústria, surgindo canais privados na televisão portuguesa. 

O primeiro canal privado foi a SIC, em 1992. Apostou numa programação diversificada, com uma forte aposta em telenovelas brasileiras produzidas pela TV Globo, que conquistaram a liderança de audiências três anos depois da sua inauguração. A TVI, como segundo canal privado, surgiu em 1993 e apostou na produção de um formato diferente de telenovelas, como, por exemplo, "Olhos de Água" e "Anjo Selvagem", e também num novo tipo de informação e em reality shows, como o "Big Brother", alcançando a liderança de audiências a partir de 2000. Não obstante, a luta de audiências continuou firme e permanente entre os dois canais. Entretanto, surgiu a TV Cabo Portugal, em 1995, que conquistou também um grande número clientes.

A indústria cultural é como uma filha de Medusa e Midas que, com apenas um olhar, nos transforma em ouro. Até os consumidores que pensam que conseguem desviar-se desta lógica continuam a fazer parte de um segmento de mercado específico que os conduz a uma ingestão inevitável da mesma ideologia e à garantia do lucro destas grandes empresas. 

A era das pós-redes, definida de meados de 2000 até ao presente, representou um momento de crescimento da fragmentação da audiência e uma fase em que o consumo passou a ser feito através de múltiplos ecrãs, seja pela utilização de telemóveis, computadores ou tablets com acesso à Internet, que hoje é a síntese da indústria cultural. 

Em 1973, com o advento de um protocolo de comunicação, que abriu uma possibilidade de transmissão e recepção entre qualquer máquina que estivesse ligada à rede, começou a delinear-se aquilo que se entende como Internet. Foi a consequência de um longo processo de contribuições científicas e tecnológicas, com o esforço de múltiplos estudantes, investigadores e cientistas. Só décadas mais tarde houve a sua expansão global e a possibilidade de acesso por parte dos mais diversos agregados familiares. 

As afirmações de que o surgimento da Internet ditou o fim da televisão parecem-me inadequadas. Houve, sim, como apontam os investigadores especialistas em streaming Amanda Lotz e Ramon Lobato, uma adaptação, tal qual aconteceu com a rádio e o cinema. De forma a descrever este momento, o autor de comunicação Henry Jenkins utiliza o conceito cultura de convergência: uma cultura baseada numa interligação em rede, de um ponto de vista cultural e de participação social, onde são mais os conteúdos a convergirem do que as tecnologias

Os indivíduos assistem aos conteúdos usando diferentes suportes tecnológicos, sendo a Internet a sua base, permitindo uma “gestão de dietas audiovisuais trans-plataforma, iniciando, ou terminando, o consumo numa e passando para outra(s) conforme a conveniência do seu utilizador”. Esta estrutura de tecnologia, que responde “aos imperativos da relação social e não o contrário”, reproduz paralelamente forças produtivas e destrutivas, não estando “imune à forma económica do fetiche do capital nem à função de controle social a ela associada” (Kurz, 2012: 4). 

Vivemos uma fase intensa de consumo on demand (“a pedido”). Existe um consumo de serviços SVOD (Subscription Video on Demand) que exigem um pagamento mensal dos seus subscritores para que tenham acesso aos conteúdos, como a Netflix, Disney +, HBO Max, Amazon Prime. No entanto, a RTP Play, apresentada em 2011, é uma plataforma de streaming pública e gratuita que concede acesso universal a uma quantidade de documentários, filmes, entrevistas, reportagens e outros conteúdos. 

A indústria cultural de entretenimento possui arquétipos de um sistema capitalista, patriarcal e colonialista.

Além dos serviços SVOD, existem os AVOD (Advestised Financed Video on Demand), que oferecem um serviço gratuito, obrigando, no entanto, os utilizadores a interagir permanentemente com anúncios, como é o caso do YouTube.  

Segundo a Marktest (2022), a percentagem de utilizadores de serviços streaming em Portugal situa-se nos 44,1%, ficando a Netflix em primeiro lugar nas escolhas dos consumidores (77,6%), Disney+ em segundo (56,5%), HBO Max em terceiro (50,6%) e PrimeVideo em quarto lugar (50,4%). 

Apesar disto, o mercado português, embora em rota ascendente, permanece numa fase de amadurecimento, ficando atrás de países como a Alemanha, Suécia ou Dinamarca. Apesar deste facto, existe um crescimento geral da utilização de video on demand em Portugal, apesar de continuarem a ser os mais jovens, entre os 16 e os 34 anos, e os indivíduos mais qualificados e com maiores rendimentos aqueles que apresentam uma maior  percentagem de utilização destes serviços, de acordo com dados da Autoridade Nacional da Comunicação (ANACOM), publicados em 2021.

Mas os dados acima indicados ainda não têm em conta as alterações reveladas pela empresa Netflix, em fevereiro de 2023, que ditaram as novas regras e as alterações aos planos de subscrição para limitar o número de contas partilhadas. A partir deste anúncio, alguns utilizadores têm vindo a cancelar as suas subscrições e a partilhar o seu descontentamento nas redes sociais. 

Embora o capital digital, isto é, o tipo de acesso digital e categoria de competências digitais, seja desigual entre a população, o consumo de ficção continua a assumir um papel central na vida dos indivíduos. Em As Práticas Culturais dos Portugueses fica demonstrado que 57% dos portugueses vêem filmes, 43% têm o costume de ver séries e 40% o hábito de ver telenovelas. Os serviços de video streaming são serviços que agregam a televisão e o cinema, disponibilizando um catálogo de centenas de séries, filmes e documentários. 

Hoje, os “Big Five”, os grandes estúdios de Hollywood - Universal Pictures, Paramount Pictures, Warner Bros. Pictures, Walt Disney Pictures e Columbia Pictures - produzem e distribuem centenas de filmes a nível internacional, acumulando 80% a 85% das receitas de bilheteira nos Estados Unidos. Apesar do processo de globalização e de uma aparente maior diversidade cultural na distribuição dos conteúdos, as produções norte-americanas continuam a dominar em Portugal.

A filha de Midas e Medusa

Quando analisamos alguns conteúdos de entretenimento dentro e fora destas plataformas, identificamos uma incontestável lista de repetições. A rivalidade e tensão entre as personagens Maddy e Cassie, da série "Euphoria" (2019), é uma autêntica réplica da relação entre Serena e Blair, da série "Gossip Girl" (2007), em que uma se apaixona pelo namorado da outra. 

Ainda que os conteúdos sejam promovidos como entretenimento original, se nos focarmos na sua configuração percebemos facilmente que se revelam muito pouco inovadores. Isto porque existe uma reciclagem permanente de conteúdos que originam arcos, argumentos, personagens e estruturas narrativas análogas que, salientam Giles Lipovetsky e Jean Serroy, “embora não escapem a fórmulas-padrão, têm de se apresentar como singulares”, acabando por fazer parte de uma “lógica de novidade e de obsolescência acelerada”.

Sex and the City (1998) foi uma série televisiva que contou com a produção de seis temporadas e dois filmes posteriores sobre as experiências de quatro mulheres privilegiadas. A protagonista é colunista de um jornal, mas consegue arrendar um apartamento em Manhattan e adquirir frequentemente sapatos e outros produtos de luxo. The O.C. (2003) foca-se na vida de um grupo de adolescentes privilegiados da Califórnia, Gossip Girl (2007) nos escândalos de um grupo de adolescentes ricos de Upper East Side. 

Apesar do processo de globalização e de uma aparente maior diversidade cultural na distribuição dos conteúdos, as produções norte-americanas continuam a dominar em Portugal.

E por aí adiante: Damages (2007) Revenge (2011), Scandal (2012), Empire (2015), algumas telenovelas como Vila Faia (1982), Ninguém Como Tu (2005), Tempo de Viver (2006), Belmonte (2013), Santa Bárbara (2015), A Herdeira (2017), Ouro Verde (2017) ou alguns reality shows, como Keeping Up with the Kardashians (2007), The Real Housewives of Atlanta (2008), The Real Housewives of New York City (2008), The Real Housewives of Beverly Hills (2010), Rich Kids of Beverly Hills (2014), Secret Lives Of The Super Rich (2013) Bling Empire (2021) reforçam este ponto. 

Além de se tornarem repetitivos, os conteúdos de entretenimento parecem maioritariamente centrados nas vidas e nos dramas familiares das classes dominantes. Acabam por provocar no público uma reincidência de determinadas imagens e uma procura obstinada pela reprodução destes hábitos e estilos de vida.

As séries House of Cards (2013), Big Little Lies (2017), Elite (2018), Succession (2018), The While Lotus (2021) ou House of the Dragon (2022) são alguns dos mais recentes fenómenos de sucesso onde podemos identificar a persistência de um velho padrão de encenação das experiências das classes dominantes. Embora exista um intervalo de tempo razoável entre as séries mencionadas, continuamos submetidos a uma publicidade intensa a marcas, a certos estilos de vida e a destinos de luxo. Esta reincidência cria uma hipermetropia generalizada. Conseguimos ver, ao longe, as experiências dos outros, mas somos incapazes de ver a realidade diante dos nossos olhos. 

Isto começa a acontecer logo na infância, visto que as crianças consomem diferentes módulos educativos neoliberais, de modo a estarem futuramente habilitadas a enfrentar a vida adulta, a ocupar o devido lugar no seio da família e no casamento, e se resignarem ao mercado de trabalho. O entretenimento infantil tornou-se, argumenta Johanna Esquivel, um meio altamente eficaz para a difusão transversal da ideologia dominante, em particular através da multinacional norte-americana Disney, no que diz respeito a questões raciais, de identidade, classe, sexualidade e beleza. A multinacional fê-lo através da produção de filmes como Hércules, Cinderela, A Pequena Sereia, Pocahontas, entre outros. 

Quando passamos das produções infantojuvenis para a análise de algumas séries ou filmes dos últimos anos, percebemos que estas lógicas não se alteraram. Devil Wears Prada (2006), Whiplash (2014) e Black Swan (2010) são conteúdos de entretenimento que acabam por fazer uma apologia a abusos laborais e à violência psicológica. 

A indústria cultural de entretenimento possui arquétipos de um sistema capitalista, patriarcal e colonialista. Da mesma forma, são raras as vezes em que apresenta uma proposta de crítica substancial, ficando, portanto, limitada muitas vezes à promoção de uma ideologia assente no mito de sucesso individual, no consumo desenfreado, no sonho de ascensão social, na competição e na violência. Acaba por se usar uma estratégia cíclica e articulada, tal qual a Jornada do Herói e as suas doze etapas, que visa maioritariamente a obtenção de lucro e a conquista de influência cultural e social. 

A representatividade das mulheres e das pessoas racializadas e LGBTI+ é, por exemplo, apresentada de forma oportunista pelo capitalismo e oferecida generosamente pelas mãos das classes dominantes.

Isto provoca alienação relativamente ao sistema económico vigente e às próprias condições de vida dos indivíduos. Ao consumirmos estes conteúdos, é-nos dada uma distração para que problemas concretos, como a falta de acesso à habitação, a subida dos preços da alimentação e da energia, ao elevado risco de pobreza, aos obstáculos no acesso ao ensino superior, a falta de vínculos e más condições laborais, entre outros, sejam fortemente ignorados. 

Apesar de produtivista, competitiva e dependente do lucro, a indústria cultural tem de se ir adaptando à engrenagem capitalista. Assim sendo, a produção de remakes e spin off, como Gossip Girl (2021) e And Just Like That (2021), e live actions de filmes de animação da Disney, torna-se um fator vital para a manutenção da indústria e deste contraditório sistema capitalista. Reciclam-se conteúdos que apostam numa aparente ressignificação das narrativas, que se apropriam de questões identitárias e de justiça social, mas que na sua génese continuam a promover os mesmos princípios neoliberais, raciais e sexualmente normativos. 

A representatividade das mulheres e das pessoas racializadas e LGBTI+ é, por exemplo, apresentada de forma oportunista pelo capitalismo e oferecida generosamente pelas mãos das classes dominantes. Quando a Netflix tomou a decisão (e bem, note-se) de iniciar a produção da série Heartstopper (2022), fê-lo em grande medida porque as vendas dos livros lhe deram uma valiosa garantia de sucesso. 

Estes serviços procuram acentuar prestígio, distinção e conquistar reconhecimento cultural. Deste modo, e ao contrário do que se costuma dizer, estes serviços não arriscam substancialmente nas suas decisões de produção. As escolhas finais partem de extensos estudos de análise de dados dos utilizadores, permitindo sistemas de recomendação cada vez mais eficazes e de extrema utilidade para os gigantes de streaming. 

Mas não só. Tem surgido ainda uma aposta em produções que transmitam uma mensagem “eat the rich”, ou seja, produções de aparente crítica ao capitalismo e às classes privilegiadas. Temos The Menu (2022), Glass Onion: A Knives Out Mystery (2022), The White Lotus (2021), Parasite (2019), Triangle of Sadness (2022). Estes dois últimos exemplos têm, porém, uma crítica de classe muito mais reflexiva e multidimensional. 

A carga crítica da primeira temporada de The White Lotus, por exemplo, perdeu-se em absoluto na segunda temporada. No fundo, estes exemplos servem como uma nota de que todos os indivíduos acabam por ser capturados pela indústria cultural e pelo sistema capitalista, mesmo que façam parte de um pequeno grupo com um gosto distinto e, algumas vezes, com consumos de conteúdos aparentemente anticapitalistas. 

A indústria cultural é como uma filha de Medusa e Midas que, com apenas um olhar, nos transforma em ouro. Até os consumidores que pensam que conseguem desviar-se desta lógica continuam a fazer parte de um segmento de mercado específico que os conduz a uma ingestão inevitável da mesma ideologia e à garantia do lucro destas grandes empresas. 

Quando surgem personagens com uma lógica e motivações revolucionárias, os seus arcos tendem a seguir geralmente o mesmo percurso, terminando moderadas, demonizadas ou mortas, de forma a consolidar a ideia de que soluções revolucionárias não devem ser tentadas e que a tentativa de pensar e iniciar mudanças estruturais não traz nenhum benefício. Adorno já mencionava que a indústria procura propositadamente domar instintos revolucionários. 

As afirmações de que o surgimento da Internet ditou o fim da televisão parecem-me inadequadas. Houve, sim, como apontam os investigadores especialistas em streaming Amanda Lotz e Ramon Lobato, uma adaptação, tal qual aconteceu com a rádio e o cinema.

Neste sentido, The Handmaid’s Tale (2017) parece-me um exemplo recente bastante pertinente, visto que prometeu desde o início uma personagem com uma visão revolucionária, mas que ao longo das temporadas foi transformando a sua atitude radical numa mera negociação com fascistas. A repetição deste tipo de soluções pode transmitir a falsa ideia de que a única solução viável para alcançar a igualdade e a felicidade, para pôr fim à violência e a todo o tipo de opressões, é a pacificação, sem contra-violência e sem uma eliminação profunda e estrutural dos problemas. 

O filósofo comunista Antonio Gramsci dizia que a cultura “é organização, disciplina do próprio eu interior, é domínio da própria personalidade, é conquista da consciência superior, através da qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função na vida, os direitos e os deveres”. 

Apesar disto, e porque as consumo, reconheço em algumas produções culturais, incluindo em parte das mencionadas, como em Succession, por exemplo, diversas qualidades técnicas, seja na banda sonora, na realização, no guarda-roupa, na maquilhagem ou na escrita. No entanto, a função crítica da cultura e do audiovisual tem sido pouco estimulada, contribuindo para o atraso de uma sociedade verdadeiramente democrática. Apesar de ser considerado conteúdo ficcional e qualitativamente distinto da realidade, refere o filósofo Herbert Marcuse, “só no mundo ilusório as coisas parecem o que são e o que poderiam ser”. 

A crítica que faço não pretende de forma alguma ocultar a existência de realizadores, produtores e guionistas com diversas preocupações sociais e políticas. Nem pretende invalidar o seu direito e liberdade artística para criarem as obras que entendem, sem quaisquer limitações, sobre assuntos distintos e abordando tópicos universais, como a amizade, a solidão, a morte e o amor. Sei que as produções culturais podem possuir características próprias, sendo as francesas distintas das italianas, e as italianas distintas das norte-americanas, havendo mesmo dentro de cada país movimentos divergentes e contraditórios. 

Existem produtores culturais que não se limitam a simples ostentações estéticas da técnica, criando obras que promovem movimentos de questionamento sobre a vida e o status quo, Cinema Novo (Brasil), Nouvelle Vague (França), entre outros, e caminhos que levantam um debate sobre desigualdades sociais ou apontam soluções radicais para a eliminação de diferentes formas de opressão. The Battle of Algiers (1966), Bacurau (2019), Parasite (2019), seriam alguns exemplos. No entanto, e como bem aponta Raymond Williams, dentro do campo da cultura e da arte “há ainda áreas vastas da vida das pessoas que mal foram observadas com seriedade”. 

Devemos seguir com o pensamento de que mesmo com a teoria crítica, para que esta tenha um efeito real, não pode ser consumada no simbólico: precisa de se ligar a um movimento de resistência verdadeiramente revolucionário e a indivíduos “que ponham em ação uma força prática” que desvende em concreto aquilo que em que a sociedade se pode tornar, como diz Guy Debord em "A Sociedade do Espectáculo". Uma que contribua para a libertação não só da fase neoliberal do capitalismo mas de toda a relação social capitalista, de que tanto fala o filósofo alemão Anselm Jappe. 

É fundamental que todos os indivíduos “desaprendam a linguagem, os conceitos e as imagens desta administração” e que “reivindiquem a sua subjetividade, a sua interioridade”. No fundo, a antítese da indústria cultural seria isso mesmo, uma verdadeira cultura de acesso universal que “se opusesse à coerção da mera repetição e internalização do princípio dominante”, como escreveu Robert Kurz, que nos permitisse reinventar a felicidade, descolonizar o imaginário, o passado, o presente e o futuro.