Albicastrense. Mestranda em Medicina. Pós-graduada em Sexualidade Humana. A trabalhar num projeto de investigação em alterações climáticas e sistemas de saúde.

Há um boicote silencioso contra o direito ao aborto

Já não é possível negar estarem a ser impostas restrições no acesso ao aborto. Não basta ter uma lei, tem de ser orientada e cumprida. O ressurgir do debate sobre o aborto deveria resultar numa estratégia de convergência e diálogo para melhorar o acesso aos direitos de saúde sexual e reprodutiva. Quando vai acabar o tempo do boicote tolerado (e alimentado) pelo sistema?

Ensaio
18 Maio 2023

Agulhas de tricô. Cruzetas. Pé de salsa. Candeeiros de mesa. Panos na boca para abafar os gritos. Úteros dilacerados. Ficar infértil. Arder em febre com infeções generalizadas. Sangrar até à morte. Era assim o aborto em Portugal até 2007. 

Lisete Moreira morreu no dia 8 de março de 1997, depois de tentar fazer um aborto a si própria com substâncias corrosivas que comprou numa farmácia. Morreu num barraco no bairro de Aldoar, no Porto, no Dia Internacional da Mulher. Muitas mais morreram e, cinco anos depois, 17 mulheres foram acusadas do crime de aborto, sentando-se no banco dos réus no conhecido julgamento da Maia. Apenas uma foi condenada a quatro meses de prisão, que depois passaram a 120 euros de multa. O tribunal condenou uma mulher pobre e doente, sem acesso a cuidados de saúde, por ter abortado. Uma mulher que só conseguiu pagar a multa com a ajuda de grupos ativistas. 

Estes dois casos de mulheres reais poderiam ter o nome de tantas outras. Falar do que lhes acontecia é a denúncia do que correspondia ao verdadeiro crime: a dupla penalização das mulheres pela lei que proibia o aborto. Não só abortar era um ato punível com até três anos de prisão, como também a terceira causa de morte das mulheres em Portugal. 

Mesmo perante centenas de casos idênticos, foram precisos dois referendos para a despenalização do aborto: um em 1998 e outro em 2007. Mais de 16 anos depois da despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) por vontade da mulher até às dez semanas, como tem sido a sua implementação?

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Dos movimentos sociais à lei do aborto, passando pelo referendo

O aborto era proibido em Portugal, independentemente do contexto, até 1984. Nesta altura, ocorriam entre 100 mil e 200 mil abortos clandestinos por ano, dos quais 2% terminaram na morte de mulheres. A primeira lei sobre a sua licitude apenas incluía alguns casos: perigo de vida física e psíquica para a mulher, por violação e/ou malformação do feto. Embora tenha sido um primeiro passo para a lei atual, as suas condições restritas levaram a que 98% dos abortos ocorressem na clandestinidade.

Foi nos anos 1980 e 1990 que se construiu um forte movimento social em torno do direito ao aborto, juntando diferentes grupos da sociedade civil na luta pelos direitos das mulheres e pelo aborto como cuidado de saúde. A defesa deste direito aliou-se à luta pela pílula e contracepção da década de 1960, no contexto das reivindicações pela autoderminação e autonomia da mulher. Em Portugal, a materialização da luta pelo direito das mulheres sobre os seus próprios corpos deu um grande salto em 1998, com o primeiro referendo sobre a despenalização do aborto por vontade da mulher. O referendo, além de não vinculativo (só votaram 32% dos eleitores), viu o “não” ganhar.

É reconhecido que o resultado da primeira consulta popular acendeu um novo período de discussão, mas a principal visibilidade na questão do aborto resultou dos vários julgamentos que criminalizaram mulheres por terem feito abortos ou participado no processo. Surgiram grandes mobilizações contra os julgamentos de variadíssimos grupos da sociedade, dando origem a uma enorme polémica. Polémica foi também a receção da organização Women on Waves, vulgarmente conhecida como “barco do aborto”, em 2004. Vinha “alertar para o direito a uma educação sexual objetiva, o acesso a métodos contracetivos e ao aborto legal e seguro”.

Este navio permitia a realização da IVG a bordo, com recurso a equipas de profissionais de saúde qualificados, em águas internacionais, fugindo às legislações proibitivas. Paulo Portas, então ministro da Defesa, proibiu unilateralmente a entrada deste barco em águas portuguesas, alegando razões de saúde pública, com um navio de guerra. Esta posição chegou à imprensa internacional, visto que desrespeitava as convenções internacionais e acordos entre Estados-membros da União Europeia. Ironicamente, em 2005, terão sido realizados cerca de 17 mil abortos clandestinos em Portugal, mas sobre isso Paulo Portas nada disse.

No início de maio de 2009, o Estado português foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a pagar uma indemnização de dois mil euros a cada uma das três organizações pró-legalização organizadoras do navio. O tribunal considerou que as ações ordenadas por Paulo Portas foram desproporcionadas e que violaram o artigo 10.º da Convenção dos Direitos Humanos, referente à liberdade de expressão. 

Foi neste contexto que vários países da União Europeia formularam leis de despenalização do aborto por decisão da mulher. Estas leis apoiavam-se em recomendações de organizações internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e as Nações Unidas. Foi assim que se formou um caldo político a que Portugal não podia ficar indiferente.

O reagendamento do tema na sociedade civil levou à exigência de um novo referendo. Dessa vez, o programa de governo do PS de 2005, liderado por José Sócrates, comprometeu-se a cumprir esse pedido. Entre 2005 e 2007 foram criados vários movimentos pelo “sim”, trabalhando com uma identidade coletiva e priorizando a organização estratégica. Foi assim que se atingiu a vitória no segundo referendo que, embora também não vinculativo, juntou 59% dos votos em torno do “sim”. Este resultado deu ao parlamento legitimidade reforçada para aprovar a despenalização da IVG até às dez semanas de gestação por vontade da mulher. Nasceu a lei n.º16/2007.

Basta olharmos para outros países — França, Itália, Alemanha, Estados Unidos — e identificamos o alastrar de um movimento conservador, alicerçado na extrema-direita, que usa o aborto como cavalo de batalha.

Embora a lei ainda vigore, em 2015 ocorreu a única tentativa conhecida de alteração da sua formulação. Nesse ano, uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos levou à implementação de algumas barreiras no acesso ao aborto por vontade da mulher: acabar com a isenção de taxas moderadoras, tornar o aconselhamento psicossocial obrigatório, obrigar a mulher a assinar uma ecografia, bem como permitir que os profissionais de saúde deixassem de ser obrigados a declarar a objeção de consciência, podendo participar nas consultas prévias da IVG. As leis que resultaram desta iniciativa foram revogadas em 2016, regressando-se à até hoje redação original da lei.

A alteração à lei de 2015 insere-se num movimento internacional alargado de contestação ao direito das mulheres de decidirem sobre os seus corpos, neste caso sobre o aborto. Basta olharmos para outros países — França, Itália, Alemanha, Estados Unidos — e identificamos o alastrar de um movimento conservador, alicerçado na extrema-direita, que usa o aborto como cavalo de batalha. 

Em 2022, o Supremo Tribunal americano reverteu a histórica decisão que estabeleceu o direito ao aborto, a Roe vs. Wade, de 1973. Em Itália, no mesmo ano, Giorgia Meloni, líder do partido de extrema-direita Irmãos de Itália, subiu ao poder afirmando ser defensora dos “valores da família” num país em que 70% dos obstetras declaram objeção de consciência ao aborto. 

Estes movimentos "pró-vida" têm vindo a fortalecer-se por todo o mundo, criando redes informais e formais de colaboração, já se vendo em Portugal alguns dos seus braços ativos, que parecem ser organizados pela Federação Portuguesa pela Vida. Quanto tempo até as vigílias aterrorizadoras junto de clínicas onde se praticam abortos, um modus operandi conhecido nos Estados Unidos, se tornarem prática corrente em Portugal com a conivência do silêncio legal e institucional? Os Estados Unidos não estão tão longe assim.

Como é fazer um aborto em Portugal?

Como é habitual quando se tenta perceber uma realidade social, o primeiro passo costuma ser procurar dados e estudos oficiais sobre o tema. Em relação à prática da IVG em Portugal, são mais conhecidos os relatórios anuais da Direção-Geral de Saúde (DGS), que fazem uma análise dos registos das IVG. 

De acordo com os dados mais recentes disponibilizados pela DGS, reforçados numa audição parlamentar sobre a matéria, num total de 40 unidades hospitalares do SNS que poderiam realizar abortos, são 29 as que afirmam fazer esta prática clínica. Conclui-se então que aproximadamente 30% dos hospitais em Portugal não o realizam com os seus próprios recursos, encaminhando a mulher para outra instituição oficialmente reconhecida. O SNS tem contratos com privados em quatro hospitais e referencia para outras instituições da rede pública em sete casos, referiu em abril deste ano o ministro da Saúde, Manuel Pizarro.

Saber-se quantas instituições não praticam IVG não é suficiente, é preciso conhecer o número e a distribuição de instituições que deixaram de as realizar nos últimos anos. Esta informação não é de fácil acesso, visto não ser analisada comparativamente em nenhum dos documentos oficiais sobre o tema. Segundo cálculos da jornalista Fernanda Câncio num artigo no Diário de Notícias, sete hospitais deixaram de fazer IVG entre 2009 e 2023. É um número preocupante.

Importa assinalar que os dados sobre a IVG que a DGS apresenta têm por base os registos de declaração obrigatória de realização desta prática clínica de todas as instituições para tal reconhecidas. Embora esta entidade assegure a plataforma onde os profissionais de saúde devem registar estes dados, a DGS admitiu, num debate recente sobre a IVG, a existência de um problema no registo dos dados, não conseguindo garantir a informação mais atualizada e fidedigna. Quando, além de existirem tantos estabelecimentos nos quais o aborto não é praticado, se reconhece um problema de recolha e atualização de dados, podemo-nos questionar: de que forma estão a ser cumpridas as regras relativas à IVG?

A mediana de semanas de gestação para a realização da IVG em Portugal é a mais curta da Europa (sete semanas), tendo-se mantido constante nos últimos anos, segundo o relatório mais recente sobre o tema. Além disso, o tempo médio de espera entre a consulta prévia e a realização da IVG é de cinco dias. É o SNS que assegura 71% das IVG, sendo que aproximadamente 60% das mulheres vão por iniciativa própria ao estabelecimento de saúde mais direto, com recurso à informação disponível. 

Não obstante, a tendência de procura deste procedimento no privado tem vindo a aumentar, bem como o encaminhamento de mulheres da sua região de residência para regiões distantes, principalmente oriundas do Centro e Alentejo, para o centro de Lisboa, por forma a terem acesso à IVG. É um claro entrave geográfico a um procedimento de saúde. Estes dados também não contemplam as pessoas que ficam fora do prazo das dez semanas e que podem ter feito abortos por vias alternativas - noutro país ou abortado clandestinamente. Não existe informação sobre o número de mulheres que não chegam a conseguir sequer uma consulta prévia.

Já não é possível negar estarem a ser impostas restrições no acesso ao aborto, mais ou menos camufladas. Muito recentemente, a 5 de maio de 2023, foi rejeitada no parlamento uma proposta de auditoria ao acesso à IVG no SNS.

Faz sentido, consequentemente, olhar para lá do que os dados oficiais e reclamações que temos nos permitem conhecer. É nesse campo que a comunicação social se tem vindo a assumir como porta-voz de muitas mulheres. Estas recorrem aos media para descreverem aquilo por que passaram quando procuraram um aborto pela via descrita na lei. Com que limitações se depararam? Hospitais que se dizem “amigos dos bebés”, falta de informação, serem empurradas entre vários serviços de saúde, serem recebidas por profissionais desadequados e desinformados. Esta é a realidade descrita que chega à comunicação social, mas que, mesmo assim, deixa a história de muitas mulheres de fora, particularmente as que estão em situações de maior vulnerabilidade socioeconómica.

Procurar uma IVG em Portugal parece, na prática, um labirinto. Tanto os dados oficiais como as reportagens da comunicação social parecem concordar num ponto: o direito de realizar um aborto por decisão da pessoa grávida, tal como consagrado na lei portuguesa, tem sido sucessivamente violado. O SNS não está a garantir o acesso generalizado em todo o território nacional nem a todas as pessoas que pretendem recorrer à IVG. 

Esta afirmação, cuja ideia já foi anteriormente proferida em deliberações da Entidade Reguladora da Saúde e usada como manchete pela jornalista Fernanda Câncio, não pretende descredibilizar o SNS, nem causar erosões na confiança que os cidadãos têm nele, mas trazer ao debate público problemas atuais na tentativa de procurar soluções que permitam melhorar os cuidados de saúde sexual e reprodutiva em Portugal. Afinal de contas, esse é o objetivo em torno do qual todas as partes interessadas se unem: um SNS mais robusto e democrático.

Não existem estudos que tracem uma causalidade inequívoca entre os problemas de acesso ao aborto em Portugal e o aumento de abortos clandestinos, mas seria absurdo assumir que, se o aborto seguro não está a ser possibilitado em determinadas situações, então não é procurado nem está a acontecer por vias alternativas. O aborto sempre existiu e sempre existirá. O que muda é a sua segurança — ou então empurram-se as mulheres para vãos de escada. Se não existem dados sobre o número de abortos clandestinos, não é porque eles não existam, mas pela sua condição de clandestinidade. 

Já não é possível negar estarem a ser impostas restrições no acesso ao aborto. Estas são mais ou menos camufladas, seja por falta de regulação ou ausência de auditorias. Muito recentemente, a 5 de maio de 2023, foi rejeitada no parlamento uma proposta de auditoria ao acesso à IVG no SNS que procurava “fazer um levantamento da aplicação da lei, os motivos e os responsáveis dos casos em que não foi aplicada”. O PS e o Chega votaram contra, dois deputados do PS e o PSD abstiveram-se e um deputado do PS, o PCP, o BE, a IL, o PAN e o Livre votaram a favor. 

Perante uma situação de violação da lei e incumprimento de direitos fundamentais, cabe à política resolver a situação, não só garantindo o cumprimento da lei, mas também pensando na necessidade da sua revisão.

As limitações da atual lei da IVG

A formulação e a implementação da atual lei da IVG comprometem a garantia plena do direito ao aborto por escolha da mulher. Além de mediatizar os problemas identificados, devemos discutir possibilidades e vias para a sua superação. Existem vários problemas que resultam da formulação e conteúdo da lei do aborto, a lei nº26/2007, ainda antes da sua implementação.

Em primeiro lugar, é de notar que a lei da IVG tem como sumário “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez”. Isto é, o aborto é tratado, em termos legais, em relação às implicações criminais que podem existir para quem o pratique. É por isso que vem inserido no Código Penal. Isso leva a que, tal como afirmado por Miguel Areosa Feio, se atribua um caráter estigmatizante a um cuidado de saúde, a quem o procura e aos profissionais que o praticam. 

Seguindo na mesma linha estigmatizante, é de realçar o cunho paternalista da lei, particularmente no que diz respeito à existência de um período de reflexão obrigatório de três dias. A lei, ao tornar a reflexão compulsória, revela que é atribuído um valor diferente a um procedimento que corresponde a um ato médico, exigindo um especial cuidado no que toca à consideração da capacidade de decisão de quem o procura. 

O que acontece em relação ao aborto passa-se também com outros procedimentos associados a cuidados de saúde sexual e reprodutiva da mulher, particularmente à gravidez e ao parto, nos quais a capacidade de decisão da mulher é posta em causa. Neste sentido, é atribuída uma dimensão moral a uma prática médica, reforçando a concepção ideológica de que as decisões da mulher são mais impulsivas, menos racionais, limitando a sua autonomia sobre o seu corpo.

No caso do aborto, esta dúvida sobre a competência para decidir é acutilante, na medida em que vem explanada na lei que o regula. Como em qualquer outro cuidado de saúde, cada pessoa tem o direito de prestar o seu consentimento de forma livre e esclarecida, demorando o tempo que considerar adequado para tomar a sua decisão. Quem decide o tempo em que essa decisão é tomada é quem procura o cuidado de saúde, desde que dentro dos prazos legais. Não cabe à lei ou aos profissionais de saúde atribuir diferentes valores ou condições às decisões que as pessoas tomam sobre os seus comportamentos e/ou sobre os seus corpos. 

Falar em obrigatoriedade é ainda abordar a obrigatoriedade da verificação da idade gestacional ser realizada por um médico diferente daquele que faz a IVG. Esta condição legal também mostra como a IVG é vista de forma diferente em relação a outros atos médicos. Quando se faz a datação de uma gravidez desejada, ninguém exige que seja confirmado por um profissional diferente. É importante rever a verdadeira razão para ser obrigatório ter-se dois médicos diferentes na realização da IVG. A eliminação deste requisito poderia ser um dos mecanismos para facilitar o acesso ao aborto.

A lei do aborto, para além de paternalista, atribui uma dimensão moral a uma prática médica, reforçando a concepção ideológica de que as decisões da mulher são menos racionais, limitando a sua autonomia sobre o seu corpo.

Adicionalmente, a disponibilização de contacto com psicólogos e assistentes sociais, durante o período de reflexão, embora positiva à primeira vista, pode resvalar para mais um mecanismo de desmotivação para quem procura o aborto, isto se não for regulamentada e auditada. Essa possibilidade ficou clara aquando da aprovação da Iniciativa Legislativa Cidadã de 2015. Esta pretendia tornar a assistência por parte destes serviços obrigatória, o que criaria não só mais um entrave burocrático como também uma oportunidade perversa de dissuadir a mulher de fazer um aborto, dissimulada na intenção de lhes prestar maior auxílio social e psicológico aquando da decisão. O aconselhamento prévio ao aborto nunca deve ser um requisito legal, como recomenda a OMS. 

Outro dos pilares da formulação da lei que pode ser identificado como um dos principais problemas no acesso ao aborto por decisão da mulher é o prazo no qual é permitida a sua realização: as dez semanas. Portugal tem o prazo mais restrito da realidade europeia; a maioria dos países europeus autorizam-no até às 12 semanas.

Vários estudos indicam que as restrições sobre o aborto legal, especialmente no que toca aos limites gestacionais do primeiro trimestre da gravidez, afetam negativamente quem deseja interromper a gravidez. Não se pode pensar que dez semanas são suficientes para todas as pessoas quando existe quem só consegue detetar a gravidez tardiamente, tendo de passar por um processo burocraticamente complexo: realizar múltiplas consultas, exames, marcar ecografia, além de tudo isto acontecer em diferentes serviços médicos. 

É frequentemente usado como argumento contra a extensão do prazo para a realização da IVG que a solução deve ser procurada a montante, resolvendo os problemas de acesso, antes de se prolongar o prazo em que o aborto é permitido. Esta sugestão não só é um raciocínio cruel, como é desleal, visto que os problemas de acesso à IVG são reconhecidos há muitos anos e têm sido sucessivamente ignorados por quem usa este argumento. Invocar que é preciso resolver primeiro os problemas de acesso antes de se prolongar o prazo das dez semanas é varrer o pó para debaixo do tapete. 

O único argumento válido contra a extensão do prazo da IVG prende-se com a relevância que a idade gestacional tem para a eficácia do método medicamentoso, especialmente se procurarmos disseminar a prática do aborto para lá dos hospitais. Não obstante, tal como o próprio ministro da Saúde admitiu em comissão parlamentar, o conhecimento técnico e a emissão de recomendações e orientações de órgãos técnico-normativos são necessários para se perceber esta situação, sem que sirva para afastar a possibilidade de se aumentar o prazo. Em debate recente sobre o tema, a DGS afirmou estar a analisar estas questões para emitir uma proposta que passe pela extensão do prazo legal da IVG.

Neste sentido, além de ser necessário aumentar o número de semanas, é basilar trabalhar-se na operacionalização do acesso ao aborto, descomplexificando o processo. E isso não se faz só no campo da implementação da lei. É preciso acabar com o período de reflexão obrigatório, com a exigência de dois profissionais diferentes para a datação e com o excesso de burocracia.

A falta de acesso à informação

Além dos problemas com a redação da lei, é preciso considerar as várias dimensões da sua implementação. Os principais obstáculos à implementação legal podem agrupar-se em dois grandes cenários: a acessibilidade e a assimetria de funcionamento. 

Em primeiro lugar, alguém que deseje fazer um aborto não consegue, frequentemente, perceber a que serviço de saúde se pode e deve dirigir. Uma pesquisa no Google tão simples como “onde posso fazer um aborto?” permite a qualquer pessoa perceber a dificuldade que é encontrar uma resposta de forma simples. 

A DGS tem a obrigação de disponibilizar online uma lista atualizada dos estabelecimentos de saúde que realizam IVG e respetivos contactos. No entanto, a própria DGS refere ter dificuldade em manter a informação atualizada, o que atribui a uma grande mobilidade de profissionais entre instituições e à perda dos pontos de contacto com as mesmas. Mas, ao mesmo tempo, admite realizar esforços nesse sentido. 

Se a realidade é esta, torna-se então importante agilizar circuitos de acesso, garantindo que existem e que estão acessíveis, de forma atualizada e simples, a todos os profissionais de saúde e utentes. Esta informação, além de disponibilizada pela DGS, deveria estar no site de todas as instituições de saúde pública e privada. É essencial que todo o material informativo esteja disponível em várias línguas — não nos esqueçamos das mulheres imigrantes.

Só com circuitos funcionantes se poderá fazer um encaminhamento eficaz e humanizado de quem procura aceder a um cuidado de saúde a que tem direito.

Adicionalmente, seria essencial criar uma linha telefónica direta para a IVG a nível centralizado, integrada por exemplo na linha SNS24, bem como ao nível de cada instituição, para tornar o contacto o mais direto possível. O SNS24 poderia garantir a marcação da consulta prévia e encaminhar a mulher para a instituição onde esse serviço estivesse disponível, sempre de acordo com a vontade da pessoa utente. Seria o próprio serviço telefónico a verificar as respostas e a proceder ao seu encaminhamento, tal como faz para múltiplas outras questões de saúde. Neste sentido, também seria o SNS24, ou a instituição que realizou a consulta prévia, a encaminhar a mulher para a IVG propriamente dita. 

Para que seja possível e funcione de forma adequada, o pessoal administrativo responsável por este contacto deve ter formação especializada para este género de atendimento, para que não seja mais um fator agravante do stress inerente à IVG. Só com circuitos funcionantes se poderá fazer um encaminhamento eficaz e humanizado de quem procura aceder a um cuidado de saúde a que tem direito.

A objeção de consciência dos médicos

Há ainda um outro obstáculo à prática da IVG: a quantidade de profissionais de saúde que se declaram objetores de consciência. A ausência de profissionais disponíveis para a realizar leva ao encerramento desta consulta nas instituições de saúde, o que tem acontecido em várias regiões do país.

Os últimos dados publicados sobre o número de profissionais objetores de consciência em Portugal remontam a mais de dez anos, quando representavam cerca de 27% dos obstetras e 19% dos médicos de família. Assumindo que os pressupostos legais sobre o tema estão a ser cumpridos, não haveria qualquer motivo para estes dados não estarem atualizados. Porque é que ninguém parece saber quantos objetores de consciência existem em Portugal, especialmente o Ministério da Saúde?

Na portaria que regulamenta a objeção de consciência é afirmado que esta condição deve ser manifestada em documento assinado pelo objetor e apresentado ao responsável clínico do estabelecimento de saúde. Ora, se é um procedimento rotineiramente cumprido, a recolha destes dados não deveria ser tão complicada como parece ser. Como é que no espaço de dez anos ninguém procurou recolher esta informação, nem que fosse para auditar se as regras administrativas que regem a objeção de consciência estão a ser cumpridas? 

De acordo com notícias recentes, esta informação está atualmente a ser recolhida tanto pela pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) como pela Entidade Reguladora da Saúde. Outros indicadores de avaliação do acesso à IVG também estão a ser recolhidos. 

Uma das possibilidades é a de os serviços de saúde não estarem a pedir essa declaração escrita aos seus profissionais. Se for verdade, fica a dúvida de como é feita a verdadeira organização dos serviços de saúde em relação ao aborto, tal como a lei estipula, se não se sabe quantos são e onde estão os profissionais objetores de consciência. Qual será, então, o critério para o encerramento das consultas de IVG e como essa decisão é auditada? Se os profissionais apresentam a declaração nos serviços em que essa consulta existe, o que está a acontecer em serviços em que a consulta não existe quando o profissional é contratado? Não poderão existir serviços onde até já existem profissionais que não se declaram objetores de consciência, mas nos quais a consulta simplesmente não existe?

A objeção de consciência garante ao profissional de saúde o direito a recusar participar em IVG ao entender que esta prática entra em conflito com a sua consciência, ofendendo os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários.

Porque é que ninguém parece saber quantos objetores de consciência existem em Portugal? Como é que no espaço de dez anos ninguém procurou recolher esta informação, nem que fosse para auditar se as regras administrativas que regem a objeção de consciência estão a ser cumpridas?

Neste contexto, parece-me difícil estabelecer justiça ao tentar conciliar este direito dos profissionais com a garantia do acesso ao aborto seguro. A classe profissional tem sempre maior proteção do que a mulher que quer abortar, ainda que o direito à saúde devesse ser sempre superior ao direito de consciência. Dito isto, a OMS postula que o direito à objeção de consciência só deve ser mantido caso se garanta o acesso à saúde. Mas estará esse equilíbrio a ser garantido? A resposta é negativa quando um terço dos hospitais não fazem IVG alegando objeção de consciência do corpo clínico.

Aliás, recusar um procedimento com base na crença de um profissional é uma contradição do ponto de vista ético. Ser profissional de saúde implica não priorizar ou prejudicar as pessoas por comportamentos que a fizeram chegar ao pedido de um cuidado de saúde. Assim, a objeção é sempre prejudicial à saúde da pessoa que quer abortar. 

A valorização da crença subjetiva do profissional é particularmente obscena quando o objetor pode especificar quais as situações, limitadas às alíneas do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, a que se declara objetor. Isto é, um profissional pode declarar-se objetor ao aborto por vontade da mulher, mas não no caso de violação. Mais uma vez fica clara a diferente valorização que lhe é atribuída, de forma casuística, menosprezando a autonomia moral da mulher e invertendo-se o que está em causa: passa a ser uma questão moral e menos um ato médico. 

A existir objeção de consciência, esta não pode ser casuística, isto é, nem caso a caso, nem quando esses casos correspondem a categorias abrangentes, como as alíneas do artigo do Código Penal. Tal como não se deixa de tratar um cancro do pulmão resultante de tabagismo, não se deixa de realizar um aborto (dentro do prazo legal). 

Por outro lado, nem sempre a objeção de consciência é realizada tendo em conta os princípios éticos e morais segundo os quais foi pensada, ou seja, existem “falsas” objeções de consciência. E é essa desregulação da objeção de consciência, tal como defendido por Miguel Areosa Feio, que poderá também estar a ser usada como mecanismo para fechar consultas de IVG. 

É de realçar o forte estigma direcionado aos profissionais que realizam IVG por parte dos seus colegas. Os profissionais não objetores sentem-se desvalorizados pela sua atividade. O aborto é visto como um ato de menor valor moral pela classe profissional. Frases como “obstetrícia serve para fazer nascer, não matar” são partilhadas pelos próprios profissionais com frequência, desincentivando os profissionais que estariam disponíveis para realizar IVG. Esse estigma pesa particularmente em serviços cujo diretor se declara objetor de consciência, explícita ou implicitamente, conduzindo a que todo o serviço seja objetor. 

Neste contexto, é igualmente preciso pensar se faz sentido a objeção de consciência abranger determinados atos, como tirar sangue ou fazer ecografias. É cada vez mais necessário incutir na formação dos profissionais a consciência coletiva de que o aborto é um cuidado de saúde e que todos os cuidados de saúde valem por igual e, como tal, devem ser realizados por igual.

Outro motivo apresentado para a falsa objeção de consciência são as condições de trabalho dos profissionais de saúde que se declaram objetores para não terem de realizar mais um serviço. Esta realidade não é resultado da má vontade dos profissionais, mas um sintoma da degradação geral do SNS: os profissionais escasseiam e os que sobram fazem longas jornadas de trabalho mal remuneradas. 

Em última instância, é importante manter a garantia de que os objetores estão impedidos de participar no procedimento da IVG, impedindo quaisquer tentativas de coação. É fulcral avançar-se com um debate sobre o que é a verdadeira objeção de consciência e como é aplicada, bem como se é ético mantê-la como possibilidade. Até lá, os serviços de saúde têm de realizar uma melhor organização, garantindo a contratação de profissionais que realizam este procedimento nos serviços em que o acesso ao aborto está ameaçado.

É necessário incutir na formação dos profissionais a consciência coletiva de que o aborto é um cuidado de saúde e que todos os cuidados de saúde valem por igual e, como tal, devem ser realizados por igual.

Efetivamente, a lei apresenta uma tentativa de garantia do acesso ao aborto perante a objeção de consciência. Os profissionais objetores têm obrigação de assegurar o encaminhamento das mulheres para serviços competentes, dentro dos prazos legais. A lei prevê que os serviços existentes se organizem para darem essa resposta. Contudo, a resposta que fornecem é consideravelmente assimétrica. Um aborto pode significar ir de Castelo Branco a Lisboa. Há distritos inteiros onde a IVG não existe. A dificuldade de acesso ao aborto no SNS, de acordo com o último relatório da DGS, parece estar concentrada principalmente na zona Centro e no Alentejo. Esta realidade obriga a um encaminhamento tanto para o privado como para outra região do país. 

O acesso à IVG nunca poderá ser equitativo se 30% dos abortos são feitos em serviços privados, a maioria na Clínica dos Arcos, em Lisboa, nem quando existem mulheres encaminhadas da sua área de residência para outras. Embora a IVG seja comparticipada nessas situações, as deslocações e os dias de trabalho perdidos nesta circulação atribulada não o são. Quem mais sofre são as mulheres cujas condições de vida são mais precárias, com menor autonomia financeira e de deslocação. Não nos podemos esquecer que nem todas as mulheres estão numa situação igual perante a lei - uma igualdade meramente abstrata e formal. 

Quando consideramos a assimetria, parte da solução deve passar pela descentralização da prática do aborto. A IVG deve ser alargada aos cuidados de saúde primários, com recursos a equipas qualificadas. Esta posição também parece estar a ser considerada pelo ministro Manuel Pizarro, como forma não só de obliviar alguns dos obstáculos que existem no acesso ao aborto de criar mas também de garantir cuidados de proximidade. 

Esta ideia não é nova, tendo já sido realizada no Centro de Saúde de Amarante. Falta só que seja organizada também noutros locais, sem descurar que a pessoa possa escolher onde quer realizar a IVG, assegurando a sua privacidade.

Por tudo isto, não basta ter uma lei. A lei tem de ser orientada e cumprida de forma ajustada a quem procura servir. O ressurgimento do debate sobre o aborto deveria resultar numa estratégia de convergência e diálogo que sirva para melhorar o acesso aos direitos de saúde sexual e reprodutiva. Quando vai acabar  o tempo do boicote tolerado (e alimentado) pelo sistema?

Se não agirmos, não só estaremos a fechar a porta a um direito como a direcionar mulheres para uma situação duplamente penalizadora: enquanto lhes tiramos autonomia com uma mão, empurramo-las com a outra para o aborto clandestino. Ambas matam. As desigualdades matam.