Doutoranda e investigadora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, onde se dedica a estudar os processos psicossociais associados à prevenção e ao combate à radicalização. É especialista na Radicalisation Awareness Network da Comissão Europeia, autora de publicações nesta área e foi visiting scholar no Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge. 

A extrema-direita e a radicalização: o que saber, como agir

A extrema-direita tem sido fértil em radicalizar e recrutar pessoas cada vez mais jovens. Usa várias plataformas online e cria comunidades virtuais que potenciam a disseminação de narrativas que desumanizam o outro e o diferente. A sua linguagem violenta promove a violência.

Ensaio
17 Setembro 2021

O fenómeno da radicalização da extrema-direita, apesar de não ser novo, tem adquirido visibilidade e expressão cada vez maiores e com consequências reais para a sociedade. Se até há pouco tempo não eram comuns notícias sobre extrema-direita (violenta) aparecerem nos meios de comunicação social, o que é certo é que um conjunto de fatores contextuais, sociais e políticos em interação têm vindo a cozer o caldo para este fenómeno ser cada vez mais presente.

A narrativa que alimenta e dá gás ao extremismo e à radicalização, antes escondida, reprimida e socialmente indesejável, ganhou contornos, primeiro subliminares, e depois cada vez mais ostensivos, perto da normalização e da validação. O extremismo e a sua presença têm a particularidade de nos indicar o estado de saúde de uma sociedade. Ora, no caso da extrema-direita, tendo ela maior expressão no mundo ocidental e sendo particular, e por vezes circunscrita, de determinado contexto, revela-nos também, qual ação-reação, a amplitude de polarização da sociedade. 

No entanto, e apesar da saliência ser maior, o relatório anual da Europol, o Terrorism Situation and Trend Report (Te-Sat), que recolhe dados quantitativos sobre todas formas de extremismo nos Estados-membros da União Europeia, mostra que, em 2020, houve quatro ataques, sendo um completo e três frustrados, o que, de resto, tem sido a tendência nos últimos anos.

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Apesar de serem estatísticas menores, por comparação com outras formas de extremismo, este relatório lança um alerta: as pessoas detidas por planeamento de ataques de extrema-direita são cada vez mais novas, sendo algumas menores de idade, muitas estão ligadas a redes virtuais transnacionais violentas e recorrem a videojogos e plataformas de jogos online para disseminar a narrativa extremista. O que tem consequências para a radicalização e recrutamento de outras pessoas.

E é aqui que o problema pode adensar e ter consequências para um futuro não muito longínquo. Para prevenir e evitar que mais jovens entrem numa espiral de ódio, muitas vezes sem retorno, e com consequências violentas é necessário compreender e agir sobre a radicalização. 

Da radicalização à violência em nome de uma causa

Existem várias definições, mas talvez aquela que explica melhor e de forma mais simples o que é a radicalização foi proposta por Clark McCauley e Sophia Moskalenko, dois psicólogos sociais: é uma mudança nas crenças, sentimentos e comportamentos na direção de uma justificação cada vez maior da violência e que exige sacrifício das pessoas em prol da defesa do grupo, ou da causa. A radicalização e os processos psicossociais que a tornam possível são válidos e transversais a todas as formas de extremismo. 

De facto, seguindo os estudos e as conclusões da psicologia social, é possível explicar o extremismo e a radicalização por via de uma identidade social alicerçada na adesão a princípios e valores que reforçam essa identidade. Através da clivagem entre grupos e valorizando a perceção dos outros como entidades ameaçadoras, os indivíduos tendem a “agarrar-se” ainda mais ao grupo social a que pertencem.

Assim, partindo da premissa de que uma parte do self individual deriva da sua pertença a determinado grupo social, a psicologia social mostra que as dinâmicas que enformam a identidade social são aprendidas através de interações e contactos sociais, nomeadamente com pares e família. Essas dinâmicas vão sendo transmitidas, consciente ou inconscientemente, através da vivência comum do quotidiano, como conversas, partilhas, notícias, contactos interpessoais. Por oposição, grupos sociais compostos por pessoas que partilham outras dinâmicas são considerados ameaçadores, particularmente quando são percebidos como ameaçadores da mundivisão ou realidade dos indivíduos. 

A desumanização é um processo psicológico que subtrai ao outro características e valores humanos, retira-lhe a humanidade, diminuindo-o ao ponto de desmerecer consideração moral.

Assim, o extremismo e a radicalização encontram terreno fértil quando os contactos entre grupos sociais distintos são reduzidos e as oportunidades de interação, que permitem o conhecimento, são diminutas, facilitando a clivagem e aumentando a perceção de ameaça – afinal, é a falta de mundo que está na base do ódio, da intolerância e da perceção de ameaça perante a diferença ou o diferente. É neste fosso, que cria divisão e não união, que se encontram as raízes da desumanização e da demonização do outro, visto como tendo características diferentes e, portanto, merecedor de menor consideração. São estes os processos que facilitam, depois, a discriminação, o discurso de ódio e a passagem à violência, que pode resultar em terrorismo. 

De uma forma simplista, a desumanização é um processo psicológico que subtrai ao outro características e valores humanos, retira-lhe a sua humanidade, diminuindo-o ao ponto de desmerecer consideração moral. Já com a demonização, a desconsideração e o desmerecimento moral ocorrem, não propriamente para diminuir as pessoas e reduzi-las a um nível animalesco, mas para lhes atribuir características demoníacas e maquiavélicas.

Desta forma, a prática de violência é assim psicologicamente facilitada e a culpa reduzida, quando os indivíduos, pertencendo a grupos sociais distintos, são vistos como inferiores, ou por não terem características humanas, ou por terem características associadas a maldade – não é esta a narrativa que ouvimos nas várias formas de extremismo?

E por falar em narrativa, há um outro processo psicológico que entra em jogo e que permite também explicar a passagem ao ato: o desligamento moral dos padrões internos éticos facilita que as pessoas cometam atos contrários aos seus padrões morais, evitando o desconforto psicológico.

Estes processos são, em larga medida, potenciados pela narrativa extremista. No entanto, é necessária uma ressalva: a maior parte das pessoas radicalizadas e sujeitas à narrativa extremista não comete, nunca, violência. Isto significa que é uma pequena fração que comete a violência e que acaba por atrair para si toda a atenção mediática.

O apelo da extrema-direita e os jovens

Como o relatório da Europol mostra, a extrema-direita tem sido fértil em radicalizar e recrutar pessoas cada vez mais jovens, utilizando variadas plataformas online e criando comunidades virtuais que se alimentam entre si e potenciam a disseminação de uma narrativa e ideologia extremistas.

Com a pandemia veio a incerteza individual e social, causando ansiedade e necessidade de procura de respostas, quer para a ansiedade, quer para a incerteza. A perda da vida diária normal e os confinamentos forçaram as pessoas para um espaço de mobilidade reduzido, sem possibilidade de retomar as atividades normais por longos períodos de tempo. Esta paragem forçada, por vezes aliada a um ócio forçado, reduziu a existência de muitos indivíduos à realidade online.

Neste contexto, os jovens foram, provavelmente, quem mais sofreram. Para estes, a perceção de incerteza, a ansiedade e o caos foram ainda mais sentidos e veio a sensação de perda de oportunidades e de experiências, tão próprias da idade, que parecem ser irrecuperáveis. Sem muitas alternativas, a vida voltou-se, então, para o mundo virtual e o caminho para o acesso a conteúdos extremistas online ficou mais curto. 

A radicalização acontece cada vez mais nas redes sociais. A literacia digital deve ser promovida a par de medidas de mitigação e combate ao discurso de ódio e narrativa extremista.

É nas redes e plataformas virtuais que se formam autênticas comunidades, constituídas por pessoas que se vão aproximando por terem interesses ou características semelhantes e, como é próprio das redes ou das plataformas sociais, as bolhas de opiniões vão-se formando. É nestas bolhas que a pertença a certos grupos sociais se vai tornando cada vez mais evidente, e a necessidade de mostrar que se pertence a determinado grupo faz com que seja apenas aceitável a narrativa dominante, não deixando espaço para o resto.

É nesta trincheira que se encontram as condições ideais para a radicalização, que conduzem as pessoas para becos cada vez mais escuros e sem saída, reforçando a sua radicalização e não havendo contraditório da narrativa extremista, que circula livre e sem controlo. 

A narrativa e o caminho para a violência

Mas, atenção, há que fazer um outro alerta: o discurso, em determinadas circunstâncias, tem potencial performativo e, como tal, consequências para a prática. 

Um largo corpo de conhecimento científico, resultante de estudos, mostra que a narrativa extremista e o discurso de ódio, particularmente o de líderes políticos, podem tornar a execução de violência mais provável. Essas narrativas, quando proferidas por um líder ou alguém carismático, têm influência, são diretivas, entendidas como verdadeiras e podem prejudicar a atuação das forças e serviços de segurança.

E quando é assim, este tipo de retórica adquire impacto mediático, através das redes sociais, resultando em centenas ou milhares de partilhas, incluindo a sua partilha na comunicação social, de forma mais intensa. Isto pode resultar numa banalização, validação e normalização deste tipo de discurso - antes censurado ou indesejado – que vai entrando pelos olhos ou ouvidos das pessoas com amplificação desmedida.

As ideias extremistas não são crime e nunca irão acabar. Mas se formos capazes, enquanto sociedade, de evitar a sua degeneração em violência, já estaremos todos a percorrer o caminho certo.

A narrativa extremista e o discurso de ódio, que andam de mãos dadas, levam ao desenvolvimento de sentimentos e emoções negativos e pejorativos contra determinadas pessoas, por possuírem determinadas características, o que pode ter reflexo nas atitudes e comportamentos. 

A boa notícia é que este impacto pode ser reduzido. E neste aspeto temos todos, sem exceção, um papel a desempenhar. É nossa responsabilidade evitar a amplificação e o alcance da narrativa ou do discurso de ódio, evitando a partilha e o palco que lhes é dado. Não raras vezes a simples partilha inflama uma situação, que de outra forma podia ter sido evitada, e provoca medo nas comunidades visadas por essa retórica, que são já de si vulneráveis. 

A este respeito importa referir que estudos já mostraram que sentimentos ou atitudes contra determinados alvos aumentam a violência perpetrada contra esses alvos durante o período de mediatização. Findo esse período, a violência diminui. Por esta razão, e embora exista o ímpeto para partilhar ou falar sobre determinada situação, como que em jeito de condenação social ou alerta, o melhor mesmo é isto não ser feito. 

E o que mais pode ser feito?

A medida acima mencionada ajuda, mas o seu impacto é de curto alcance. A usual receita, que é a prevenção, parece ser a aposta mais eficaz e com possibilidade de produzir resultados sustentáveis a longo prazo. A educação tem um papel determinante para o estímulo e desenvolvimento de pensamento crítico, a abertura à diferença, o desenvolvimento de tolerância, a capacidade de diálogo e de discussão de ideias, e ainda a empatia são ingredientes essenciais.

No entanto, dado que o problema se aloja cada vez mais nas redes sociais, a literacia digital deve ser promovida a par de medidas de mitigação e combate ao discurso de ódio e narrativa extremista, bem como com o desmantelamento de redes extremistas, juntamente com as plataformas virtuais. 

Por outro lado, quando a prevenção não funciona, deve haver aposta na desradicalização e no afastamento da violência. Programas desenhados, tendo em conta as especificidades de cada caso, e o envolvimento de conhecimento baseado na evidência e de profissionais multidisciplinares são fundamentais para reverter este processo e retirar as pessoas de redes violentas e devolvê-las a uma sociedade que se quer mais saudável, empática e multicultural.

Se isto é fácil? Não. Mas é possível, e os casos de sucesso comprovam. E estes devem ser usados, quando possível, para ajudar nestes esforços de desradicalização e também de prevenção, agindo como pontes de credibilidade e confiança entre os indivíduos radicalizados e os profissionais dos programas. 

As ideias extremistas não são crime e nunca irão acabar, mas se formos capazes, enquanto sociedade, de evitar a sua degeneração em violência, já estaremos todos a percorrer o caminho certo, que é o caminho da democracia e da convivência de ideologias diferentes, mas com respeito e tolerância.