Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e fundador do projeto esQrever. Atualmente a estudar Publicidade e Marketing na ESCS.

Do Monkeypox ao VIH: A doença como arma para estigmatizar minorias sexuais

Numa democracia saudável, a nossa própria saúde não pode estar à mercê do preconceito e repeti-lo seria cometer os erros que ceifaram milhões de vidas em todo o mundo. A vergonha tem sido imposta à população LGBTI+, população historicamente perseguida, criminalizada e violentada. Basta.

Ensaio
13 Outubro 2022

Pode ser o início de mais uma epidemia entre os homossexuais ou alastrada a toda a população". Foi esta a manchete escolhida pela CNN Portugal para relatar a confirmação dos primeiros casos de infeção por Monkeypox em Portugal. Nela era espelhada - e reforçada ao ser-lhe dado destaque no título da peça - a opinião de Vítor Duque, presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia.

De repente, e em pleno 2022, bastou uma manchete para parecer que tínhamos regressado às décadas de 1980 e de 1990. Os comentários nas redes sociais e nas caixas dos órgãos de comunicação social encheram-se de palavras acusatórias aos gays. Felizmente, houve jornalistas que cumpriram o seu papel de informar devidamente as populações e tentaram corrigir o que fora dito com a pouca informação que ainda havia disponível. Fizeram-no sem desinformar, sem clickbait e muito menos sem estigmatizar grupos inteiros de pessoas, tal como aconteceu no passado recente. Fizeram, portanto, o mínimo que lhes é exigido.

Esta não é a primeira vez que uma doença é associada à comunidade LGBTI+. Talvez não por acaso, na véspera destas declarações foi celebrado o Dia Mundial de Luta Contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia (a 17 de maio) e aquele discurso de Vítor Duque foi prontamente questionado.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Tem havido ao longo dos anos surtos de Monkeypox que afetam, por exemplo, mulheres e crianças, mas, quando não há uma especial sensibilidade e cuidado para falar sobre a saúde de minorias historicamente perseguidas, as palavras ganham outro peso. Por isso, surgiram críticas e discussões sobre a forma como Vítor Duque se expressou, se era factual e clinicamente legítima, mas nem é esse o ponto fundamental da questão. Porque, além dos factos, especialistas têm a obrigação de saber lê-los e transmiti-los à população da melhor forma possível. É uma postura essencial não só para uma melhor saúde pública, mas também para minimizar o risco de estigma contra um grupo de pessoas.

No último século, podemos recordar como muitos presos gay dos campos nazis voltaram a ser encarcerados após a sua libertação, porque a maioria dos países ainda criminalizava a homossexualidade na década de 1940.

Aliás, pouco depois destas declarações, o Secretário de Estado Adjunto da Saúde Lacerda Sales afirmou que o vírus é “uma doença de comportamentos de risco” e não de “grupos de risco”, à qual todas as pessoas estão sujeitas. Estas são ideias que têm sido promovidas e ensinadas nas escolas portuguesas há várias décadas, mas a ideia dos ‘grupos de risco’ continua a persistir na sociedade, apesar de refutada cientificamente desde pelo menos a década de 1990. Esta perpetuação levou inclusive várias entidades portuguesas na luta pelos direitos das pessoas LGBTI+ a denunciar que a “irresponsabilidade na comunicação alastra discriminação”.

Esta foi uma posição que também a UNAIDS, o Programa Conjunto da ONU sobre o VIH/SIDA, tomou afirmando que alguns dos retratos noticiados de pessoas de origem africana e LGBTI+ “reforçam estereótipos homofóbicos e racistas e exacerbam o estigma“. Também por isto, a Direção-Geral da Saúde (DGS) explica que o termo “varíola dos macacos” não se refere à infeção humana, mas antes à infeção nos animais. Com a quantidade de ‘piadas’ feitas sobre  a infeção e as pessoas que a contraem, a DGS escolheu o termo Monkeypox para se referir à mesma.

Além do preconceito encontrado nalgumas peças e espaços de opinião, “o estigma e a culpa minam a confiança e a capacidade de responder de forma eficaz durante surtos como este“, explicou o vice-diretor executivo da UNAIDS, Matthew Kavanagh. E tal acontece uma vez que “a experiência mostra que a retórica estigmatizante pode desativar rapidamente a resposta baseada em evidências, alimentar ciclos de medo, afastar as pessoas dos serviços de saúde, impedir os esforços para identificar casos e incentivar medidas ineficazes e punitivas”.

É neste sentido que a ILGA Portugal considerou em comunicado que “associar um vírus a um grupo ou minoria é estar a colocar em risco não só as pessoas vítimas dessa discriminação, como toda a população”.

Como podemos então fazer chegar a mensagem às populações em maior risco sem as estigmatizar?

É esta precisamente umas das maiores preocupações do epidemiologista e ativista Gregg Gonsalves que participou num estudo de modelagem epidemiológica, pela London School of Hygiene & Tropical Medicine: “Ainda precisamos lidar com o risco de infecção na nossa comunidade”.

Já Ashleigh Tuite, epidemiologista de doenças infecciosas da Universidade de Toronto, disse no mesmo estudo que “entende a hesitação” no foco em homens que têm sexo com homens (HSH), dado o risco de estigma que, por um lado, pode piorar a discriminação, como também fazer com que aqueles que são mais afetados pela infeção neste surto atrasem a procura de cuidados médicos.

“Qualquer pessoa pode ser infetada, mas estamos a ver a atividade da doença principalmente entre HSH”, confirmou sobre o atual surto Demetre Daskalakis, especialista em prevenção do VIH nos Estados Unidos.

Passar da utilização do estigmatizante e perigoso conceito de “grupos de risco” para a atual noção de “comportamentos/práticas de risco” molda a perceção sobre a doença e sobre quem vive com ela.

Para quem estuda como os agentes patogénicos se espalham nas redes sociais e sexuais, o padrão encontrado neste surto não é uma surpresa. Nas décadas de 1970 e 1980, os dados de pesquisas a outras infeções sexualmente transmissíveis mostraram que o número médio de parceiros sexuais das pessoas era demasiado baixo para sustentar a transmissão encontrada. Mas as médias escondiam o facto de, embora muitas pessoas tenham poucos parceiros sexuais, algumas delas têm um número suficientemente elevado, indo ao encontro dos dados analisados. Esse número impulsiona a transmissão, porque, mesmo que quem tenha essas práticas seja um número reduzido, se infetadas, elas são mais propensas a infetar outras pessoas.

As redes sexuais entre HSH não são de natureza diferente das de outros grupos, enfatizou Lilith Whittles, epidemiologista do Imperial College of London, mas um grupo central de pessoas está muito mais densamente conectado que as pessoas fora da comunidade HSH. “Estas coisas ocorrem em todas as redes sexuais, é apenas uma questão de grau”, reforçou. Numa rede densamente ligada, é menos provável que o vírus atinja um beco sem saída e termine o ciclo de transmissão da infeção.

Assim, e como a Organização Mundial da Saúde defendeu, a melhor maneira de retardar a transmissão de Monkeypox passaria pela redução temporária do número de parceiros sexuais. Mas as autoridades de saúde tendem a fugir deste tipo de mensagens contundentes, dado que podem levar a um maior estigma – especialmente para uma comunidade que viveu, ou, melhor,sobreviveu - à epidemia do VIH/SIDA nas décadas de 1980 e 1990.

“Como comunidade, aprendemos imensas lições com o VIH/SIDA e com as mensagens que nos foram dadas”, disse Mateo Prochazka, epidemiologista de doenças infecciosas da Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido. “Sabemos que a abstinência, como uma declaração geral, não funciona – não é viável ou aceitável. Mas a verdade é que pequenas mudanças nas nossas práticas podem ajudar no controlo deste surto. Poderá passar por fazermos uma pausa se tivermos sintomas, apenas fazer sexo com pessoas que conhecemos, ou talvez minimizarmos ou diminuirmos o número de parceiros sexuais”.

O epidemiologista sugere também que as pessoas em relacionamentos abertos poderão querer fechá-los temporariamente, mas enfatiza que cada pessoa deve tomar as suas próprias decisões, de forma informada, sobre o que é certo para elas. “Não posso dizer às pessoas para mudar as suas práticas, mas a mensagem que quero transmitir é que as pessoas devem cuidar de si mesmas”. Os riscos devem, pois, ser-lhes explicados e entendidos para que possam tomar as suas decisões de forma consciente. Falamos de uma infeção que ”pode ser bastante dolorosa, pode levar a experiências desagradáveis e a muito estigma e vergonha também”, concluiu Mateo Prochazka.

A vacina é a chave

Quem está em maior risco de contrair Monkeypox – especificamente quem faz sexo com novos parceiros ou com várias pessoas – deve procurar a vacinação. As vacinas estão a ser usadas tanto na prevenção como no combate à propagação do vírus, apesar da sua quantidade ainda ser bastante limitada em todo o mundo.

Tendo em conta estas limitações logísticas, em Portugal, a DGS deu inicialmente indicação para a vacinação apenas em modo pós-exposição, mas entretanto definiu os grupos prioritários para uma vacinação preventiva contra a Monkeypox. Assim, a partir da semana de 26 de setembro de 2022, já é possível agendar a vacinação preventiva.

Os grupos definidos pela DGS referem-se a HSH, mulheres e pessoas trans, em profilaxia pré-exposição para o vírus da imunodeficiência humana (PrEP para VIH) e tenham diagnóstico de, pelo menos, uma infeção sexualmente transmissível (IST) nos últimos 12 meses; HSH que vivam com VIH e tenham diagnóstico de pelo menos uma IST nos últimos 12 meses; HSH e pessoas trans envolvidas em sexo comercial; HSH com imunossupressão grave; e ainda profissionais de saúde, com elevado risco de exposição, onde haja o seu envolvimento na colheita e processamento de produtos biológicos de casos de infeção.

O grupo será alargado à medida que a disponibilidade das vacinas também aumentar (o que acontecerá, provavelmente, apenas no primeiro trimestre de 2023).

Na listagem acima torna-se óbvio como, quando mal explicadas ou, pior, sensacionalizadas, as pontes entre as várias infeções, práticas e grupos podem fomentar o discurso de ódio contra grupos minoritários. E isso tem um preço, a começar pelas próprias minorias, mas globalmente todas as pessoas sofrem quando ideias pré-concebidas persistem no tempo. Basta pensar no impacto que teve a ideia de que o VIH/SIDA era uma “peste gay” e nas pessoas que foram infetadas julgando-se livres de perigo por não pertencerem à comunidade.

O caminho de afirmação e orgulho é fulcral para combater o estigma

A vergonha tem sido largamente imposto cultural e socialmente na população LGBTI+, uma população historicamente perseguida, criminalizada e violentada. No último século, podemos recordar como muitos presos gay dos campos nazis voltaram a ser encarcerados após a sua libertação, porque a maioria dos países ainda criminalizava a homossexualidade na década de 1940. Aliás, quando nasci, em Portugal, a homossexualidade ainda era crime, sete anos após o 25 de Abril de 1974. [A quem interessar, a luta pelos direitos LGBTI+, desde os tempos do Estado Novo até à atualidade, está documentada na Exposição ‘Adeus, Pátria e Família’, no Museu do Aljube, em Lisboa, até dia 28 de janeiro de 2023.]

Com a entrada na década de 1980, começaram a ser conhecidos casos de pessoas famosas, geralmente artistas, que faleceram por motivos pouco claros. Havia a suspeita que seriam gay e, como tal, havia também a suspeita de que tinham morrido com a referida ‘peste gay’, um nome promovido pelos campos mais conservadores e religiosos da sociedade. Falamos de uma altura em que um artista assumir-se LGBTI+, além de raro, significava o boicote à sua carreira e o seu achincalhamento público. Sim, foram precisas décadas para artistas populares como Elton John ou George Michael assumirem a sua orientação sexual. O estigma associado ao VIH/SIDA terá atrasado ainda mais esses processos de saída de armário e orgulho. Deles e das restantes pessoas anónimas e LGBTI+.

Nomes como Freddie Mercury ou António Variações nunca tiveram a oportunidade de assumir por completo as suas identidades. Mercury assumiu publicamente que vivia com VIH apenas na véspera da sua morte, a 24 de novembro de 1991, por complicações derivadas da SIDA que acabou por desenvolver. A família de Variações ainda nega a sua identidade.

No Brasil, o também cantor Cazuza perdeu a vida para o VIH/SIDA em 1990 e tornou-se uma das primeiras caras no Brasil a assumi-lo. No documentário ‘Carta para Além dos Muros’ (André Canto, 2019), disponível na Netflix, viajamos pelo Brasil da década de 1980 até à atualidade e o impacto que o VIH teve na sociedade. As assimetrias sociais, raciais e de género que alimentaram - e alimentam - estigmas contra quem contraiu o VIH no Brasil são ali apresentadas e facilmente percebemos as pontes daquilo que passámos. 

Não é por acaso que o conceito de ‘família escolhida’ é tão forte na comunidade LGBTI+. Foram elas que acudiram, cuidaram, amaram e enterraram muitos homens gay, bissexuais e que tinham sexo com outros homens. A família escolhida, ao contrário da biológica, não deixa ninguém para trás.

Percebemos ao ver o filme como os brasileiros racializados continuaram - e, reforço, continuam - a sofrer com o vírus em maior proporção que homens brancos. E no que toca a tratamentos, também as mulheres ficaram inicialmente para trás na pesquisa clínica, tendo o primeiro estudo sobre o impacto do vírus numa mulher surgido 12 anos após o primeiro para homens. No documentário, tal como atualmente com o surto de Monkeypox, é abordado como foi determinante uma melhor educação. Porque passar da utilização do estigmatizante e perigoso conceito de “grupos de risco” para a atual noção de “comportamentos/práticas de risco” molda a perceção sobre a doença e sobre quem vive com ela.

Em Portugal, nomes como Amílcar Soares e Luís Mendão estão entre os pioneiros que primeiro deram a cara publicamente, tendo talhado o caminho futuro na desconstrução de preconceitos contra quem vive com o VIH. Um caminho tortuoso e lento, onde, por exemplo, só em 2022 dez pessoas que vivem com o VIH deram a cara numa campanha inédita promovida pelo CAD, um projeto conjunto de duas associações, GAT e Ser+. Contra as imagens, muitas vezes sensacionalistas das décadas passadas, agora que a doença passou a crónica em Portugal são dez sorrisos que importa que sejam vistos e celebrados.

Mais do que a doença, é o estigma que mata

A forma como se comunica sobre esta ou outra doença não pode ser leviana. Há que apostar na seriedade e na componente clínica dos seus desafios, sabendo que a identidade das pessoas infetadas não é fator determinante para a sua infeção. Existe uma responsabilidade social de profissionais de saúde, precisamente por partilharem interesses. É do superior interesse da saúde pública não difundir ou alimentar ideias preconceituosas que acentuem a incompreensão das pessoas e fragilizem assim a sua saúde. Como comprovado no passado, é um objetivo duplo em que um não prospera sem o outro.

Para tal, a resposta comunitária ganha especial relevo. Além de várias associações que informam e dão apoio às populações visadas, existem também serviços que ao longo destes anos têm desenvolvido trabalho quer no combate ao VIH/SIDA como à Monkeypox. O GAT/CheckpointLx, por exemplo, desde 2011 que dá apoio a HSH em Lisboa numa lógica de proximidade. Assim, são quebradas algumas das barreiras que os serviços de acesso geral ainda podem trazer associadas. Um acompanhamento entre pares, além de ajudar na comunicação entre as várias partes, evita situações de confrangimento e vergonha.

Além disso, importa que haja sensibilidade, ética e empatia para compreender que nestes contextos existe a agravante das pessoas mais afetadas fazerem parte de um grupo historicamente estigmatizado. A memória ainda está fresca e há, um pouco por todo o mundo, uma geração em falta dentro da comunidade LGBTI+.Muitos dos jovens e jovens adultos nas décadas de 1980 e 1990 pereceram à doença e, pior, foram deixados ao abandono tanto pelos agentes políticos, como pelos clínicos e até pelas próprias famílias.

Não é por acaso que o conceito de ‘família escolhida’ é tão forte dentro da comunidade LGBTI+. Não apenas pelas violências, bullying e expulsões das suas casas, mas também porque nesta altura foram as famílias escolhidas que acudiram, cuidaram, amaram e enterraram muitos daqueles homens gay, bissexuais e que tinham sexo com outros homens. A família escolhida, ao contrário da biológica, não deixa ninguém para trás.

Se é verdade que hoje estamos num ponto de muito maior segurança e aceitação, há ainda caminhos a percorrer em Portugal. Num estudo liderado pelo Centro de Psicologia da Universidade do Porto, divulgado em 2022 e onde participaram 1.500 jovens, cerca de metade do grupo que se identificou como LGBTQ+ (50,5%) afirmou que na sua família apenas algumas pessoas sabem da sua identidade, mas quase quatro em cada dez (38,1%) admitiram que ninguém na família sabe. O isolamento é real e tem consequências como o absentismo ou mesmo a desistência escolar.

É este um dos impactos reais e transversais que uma comunicação clínica dúbia, preconceituosa e estigmatizante pode ter na vida das pessoas e nas gerações futuras. Sabendo de todas estas encruzilhadas, urge que, além de práticas clínicas baseadas na evidência científica, a sua comunicação se alinhe a planos de combate a surtos e pandemias que protejam toda a população sem custos associados às minorias. Porque numa democracia saudável, a nossa própria saúde não pode estar à mercê do preconceito e repeti-lo seria cometer os mesmos erros que ceifaram milhões de vidas em todo o mundo. Esse, esperemos, é um risco que ninguém quererá hoje tomar.