Investigador doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Professor de Filosofia do Direito e de Direitos Humanos em Portugal e na América Latina. Membro do Grupo Crítica Jurídica Latino-americana.

A cruzada anticomunista contra López Obrador

Os partidos da direita tradicional mexicana têm usado narrativas anticomunistas e racistas contra o presidente Andrés Manuel López Obrador. A extrema-direita mexicana espera que esses discursos a permitam furar na política e o líder do espanhol Vox já foi à Cidade do México aprofundar relações internacionais.

Ensaio
20 Setembro 2021

A história do México é a de um relato em contramão. O único país latino-americano na América do Norte está sozinho em muitos dos momentos definidores da História. Criador da sua própria mitologia, o México macho acredita bastar-se a si mesmo, construir-se e ainda ter para construir outros. Isto é, claro está, uma mentira, mas uma mentira que permite encerrarmo-nos no nosso próprio labirinto.

Um labirinto múltiplo e diverso, cambiante e contraditório. Festivo e violento, amoroso e destrutivo, ao mesmo tempo mortal e cheio de vida. É o México do terror e da alegria, do mais mundano e do terrivelmente sério. Onde, como diz a canção, a vida não vale nada, mas onde aprendemos que nada vale a nossa vida.

O México é um país onde parece que ser um país não tem significado nenhum. Somos trânsito e destino. Durante décadas de ditaduras latino-americanas e das grandes guerras na Europa fomos refúgio de centenas de milhares de pessoas, enquanto expulsávamos das nossas terras outros milhares.

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A conhecida história do cônsul mexicano que, refugiando-se num castelo francês, continuou a fazer passaportes e salvo-condutos para quem escapava do horror nazi e do franquismo, desenvolveu-se ao mesmo tempo que diversos movimentos de ideais fascistas conseguiam formar o Partido Acción Nacional (PAN) em 1939.

Se ambos os processos são narrados em histórias lineares, antes de problematizadas, isso acontece apenas na tentativa de apresentar uma história sem contradições. Tal como apraz sempres àqueles que estão no poder. Temos sido presentados, dentro do nosso próprio imaginário coletivo, como o inimigo passivo do fascismo, enquanto estes movimentos fermentam no interior do nosso país.

O México recebeu por estes dias a notícia de que a associação conservadora El Yunque, tão antiga como a democracia no México, apoiou logística e financeiramente o surgimento do partido de extrema-direita espanhol Vox. Daí que não tenha sido por acaso que Santiago Abascal, líder do Vox, tenha aterrado no início de setembro na Cidade do México para vender a Carta de Madrid - Eduardo Bolsonaro, André Ventura e Abascal vão encontrar-se em Lisboa a 24 de setembro para assinarem a Carta de Madrid, noticiou o Observador.

O documento tem como objetivo a "defesa da liberdade e da democracia" na Península Ibérica e na América Latina contra os "regimes totalitários de inspiração comunista". Ou seja, não é nada mais nada menos que o reforço da guerra cultural, de uma cruzada latino-americana, contra o espectro de uma alegada ameaça comunista. E o rosto dessa ameaça é López Obrador. 

O presidente do Vox reuniu-se com senadores do PAN, historicamente ligado à El Yunque, e com alguns políticos do Partido Revolucionário Institucional (PRI), resultando num vendaval na política mexicana. A pressão mediática foi tanta que o PAN, que tem uma importante fação de extrema-direita, se viu obrigado a afastar o organizador do encontro e o PRI a desvincular-se completamente de qualquer acordo com o Vox.

Não obstante este percalço, a extrema-direita mexicana está simplesmente à espera da oportunidade para levar avante a sua cruzada contra López Obrador ou qualquer outro político, movimento ou luta que considerem de esquerda. Há muito que a normalização do discurso anticomunista é a sua aposta, e agora, pela mão dos partidos de direita, esse objetivo parece ir além das fronteiras mexicanas.  

Mas qual é a história da extrema-direita mexicana? Como nasceu? Como se reorganizou? E, sobretudo, como tem sobrevivido num país que presenta publicamente uma imagem abertamente antifascista?  

A recusa em reconhecer o racismo

Se qualquer pessoa pergunta a um mexicano sobre racismo no nosso país, receberá na maioria das vezes a mesma resposta construída, cheia de lugares comuns. O mexicano não se pensa inicialmente como racista. O mito do mestiço, construído como imaginário coletivo do que significa ser mexicano, homologa-nos a todos e todas dentro das fronteiras da nossa terra.

Dos cholos (pessoas com características indígenas que decidiram "ocidentalizar-se") da fronteira norte até ao mais ladino dos coletos (o habitante de língua espanhola que não pertencia à elite criolla branca) de San Cristobal de las Casas, o mexicano diz assumir uma mistura que lhe dá a sua especificidade própria: a de pertencer a uma raça cósmica, narrativa baseada o célebre ensaio de 1926 A Raça Cósmica de José Vasconcelos.

No entanto, o ideário racial está claramente presente neste imaginário. Se o mexicano é uma mistura, então aqueles que se assumem como não misturados são só formalmente mexicanos (no melhor dos casos). Indígenas e afrodescendentes que se autoidentificam como tais, que construíram politicamente a sua identidade através da recusa desta visão homogeneizadora, são vistos com suspeita por aqueles que se sentem mexicanos antes de qualquer coisa.

O racismo oculto tornou-se a pedra angular da construção de uma sociedade que finge não ver diferenças, mas que dá um tratamento desigual a quem não se adapta à normalidade mestiça.

Da mesma forma, as classes altas do país, através de processos que limitam os cruzamentos imaginários das suas linhagens a grupos europeus ou semíticos, constroem uma barreira contra a “do mexicano” e o seu mito. “Eu nasci no México, mas a minha avó vinha de Espanha e a família do meu avô é do Líbano”, costumam dizer como apresentação corrente. Os primeiros são exterminados de forma literal ou figurada; aos segundos presta-se veneração.

À semelhança de outras partes do continente, o México teve, depois de ser independente em 1821, as suas próprias guerras abertas de extermínio contra as comunidades nativas. Algumas foram lentas e progressivas, encaminhadas à destruição das formas de vida, da cosmovisão e da base material destas comunidades. Outras foram abertas e declaradas, procurando a aniquilação física das comunidades e dos seus membros. Ambas estão relacionadas e foram sem dúvida alguma igualmente violentas.

A estas guerras de extermínio chamaram-lhes a guerra das castas, uma série de conflitos armados que sucederam desde meados do século XIX até à Revolução Mexicana. Aconteceram principalmente no sul e no oriente da Península de Iucatão (o espaço que agora se encontra como o segundo ponto turístico do mundo, o Riviera Maia) e terminaram com povos inteiros através de práticas genocidas, da sistematização do trabalho forçado e da deslocação obrigatória com fins de exploração sexual e laboral escravo.

Da mesma forma, as sempre admiradas Leis de Reforma (1855-1863), que implantaram o liberalismo nacional através da desamortização de bens eclesiásticos e da nacionalização de terras “em mãos mortas”, geraram a destruição de formas comunitárias de propriedade. Mas não só, acabaram também com figuras jurídicas de proteção das comunidades e o seu reconhecimento como sujeitos de direito.

Ambos os processos se desenrolaram de forma conjunta: retroalimentaram-se e geraram lentamente as bases sobre as quais se veio a construir o mito mestiço da nossa terra.

E a situação não melhorou ao longo do século XX. O surgimento do indigenismo como posição oficial levou à redução simbólica dos indígenas a uma figura semi-mítica do passado, a uma “raça extinta” que não tinha mais lugar no México moderno. A conhecida duplicidade do sentimento mexicano de idolatrar “o indígena” mas, ao mesmo tempo, de desprezar os indígenas. Foi nesse terreno que se construiu o nacionalismo mexicano, vangloriando-se de abrir os braços ao migrante, desde que ele se encaixasse nos seus desejos.

Documentada está, por exemplo, a posição oficial do Estado mexicano contra certo tipo de imigração, e qualquer mexicano do norte já ouviu falar dos "massacres de chineses". Somos, sim, uma porta que parece aberta para os deslocados do mundo, mas temos leitos de Procusto para eles.

México, refúgio de antifascistas

Dominado por um sistema que na prática se desenrolava como de partido único, a imaginação mexicana foi lentamente obscurecendo os fantasmas do passado. A extrema-direita, derrotada ideologicamente pela importância obreira e camponesa da Revolução mexicana (1910-1917), teve escassos triunfos na elaboração da Constituição de 1917.

A defesa da religião, que custou ainda um conflito armado, a Guerra Cristera, foi talvez o último bastião, e a partir dela articularam-se os imaginários da sua própria constituição mítica. Não será senão até à articulação do Partido de Ação Nacional (PAN), em 1939, que a extrema-direita se afirmou como força política, nominal em princípio, mas progressivamente mais importante, ao colocar-se como a oposição única ao PRI e ao seu sistema.

O México foi o único país que se alinhou abertamente com a República Espanhola ao vender-lhe armas e munições e elevando a narrativa republicana nos palcos internacionais.

Estas condições, aliadas ao enorme peso político e económico dos Estados Unidos nas decisões e na história do nosso país, criaram dificuldades para o desenvolvimento de um projeto de sucesso abertamente fascista.

Ao contrário das várias ditaduras latino-americanas da época, que podem ser consideradas como tal por suas características, o poder centralizado e institucional do Partido Revolucionário Institucional desenvolveu controles sociais não personalistas, aliado a um processo de legitimação por meio de um estado de bem-estar mínimo, muito mais discursivo do que real.

Nominalmente, o PRI manteve um discurso de esquerda, tendo mesmo pertencido à Internacional Socialista e levado a cabo reformas sociais, especialmente após os processos de nacionalização do petróleo (1938) e da incorporação dos “princípios socialistas” na educação (1934). No entanto, essa política não impediu o crescimento de movimentos de extrema-direita, com estéticas e princípios fascistas, como as “camisas douradas” (cujo equivalente em Portugal são as “camisas azuis”), nem a adesão de importantes figuras políticas e intelectuais a esses movimentos. E muito menos a admiração aberta de membros das forças armadas em relação ao “milagre alemão” do III Reich.

Não obstante, nos anos 1930 e à exceção da União Soviética, o México foi o único país que se alinhou abertamente com a República Espanhola ao vender-lhe armas e munições e elevando a narrativa republicana nos palcos internacionais. Não foi por acaso que o México se tornou a terra de destino de dezenas de milhares de exilados republicanos: contaram com o apoio do consulado geral do México em França e depois com a Embaixada Mexicana em Portugal para conseguirem documentos. Receberam ainda a oferta de naturalização imediata.

Foi o México que levou a defesa jurídica dos republicanos destes países e acolheu a sede, até ao regresso da democracia, do governo em exílio. No país imperava um sentimento antifranquista, que se converteu rapidamente num sentimento antialemão com a entrada do México na II Guerra Mundial. O nacionalismo revolucionário exigia então o desaparecimento de grupos fascistas e das correspondentes desmarcações dos personagens públicas com elas alinhadas – deram-se de forma imediata na maioria dos casos. 

Se o fascismo clássico não conseguiu conquistar um pé na nossa terra, este relato deixa clara a naturalização de alguns princípios de extrema-direita que permearam a construção da nossa identidade nacional. O racismo oculto tornou-se a pedra angular quotidiana da construção de uma sociedade que finge não ver diferenças, mas que tem um tratamento nitidamente desigual em relação àqueles que não se adaptam à normalidade mestiça.

Nem a reforma agrária, nem a institucionalização da segurança social, nem as reformas educacionais e trabalhistas permearam as áreas de maior densidade indígena que mantinham, ainda no século XX, condições semifeudais quando não abertamente esclavagistas. Isso era especialmente claro no sudeste mexicano, que por sua vez era fonte de recursos naturais e de mão-de obra barata para o resto do país e até mesmo para os Estados Unidos.

A extrema-direita reorganiza-se

É neste cenário que as novas gerações observaram uma realidade cada vez mais desigual em processos que, mais tarde, foram denominados de colonialismo interno. Ao mesmo tempo, a crescente dependência económica em relação aos EUA suavizou o discurso e o real alcance das políticas de inclusão social a favor de uma maior inserção no mercado internacional.

As condições materiais desiguais do país, assim como as crescentes tensões raciais e de classe, levaram nas décadas de 1960 e 1970 ao surgimento de vários movimentos armados de tipo guerrilheiro, bem como ao crescimento do descontentamento generalizado. Exércitos populares, comunidades armadas, movimentos sociais e até operários e camponeses não alinhados entraram em confronto com o poder do Estado e do PRI, que aos poucos foi perdendo a sua legitimidade de outrora.

As eleições presidenciais de 2000 significaram a rutura definitiva com o modelo de partido único que se tornou impossível de manter na democracia mexicana.

Em resposta, o exército levou a cabo um processo de guerra suja, ou seja, um conflito armado não declarado no interior, que custou inúmeras vidas, desaparecimentos e levou muitos dos envolvidos à prisão. Sem dúvida uma época de contrastes: centenas de milhares de exilados das ditaduras latino-americanas encontraram no México o refúgio que nosso país negava aos seus próprios descontentes.

Neste cenário, a mudança no modelo de produção internacional alinhou-se com um processo de grande instabilidade política no México. A desterritorialização da produção (graças aos avanços tecnológicos e de transporte), a flutuação do preço do nosso maior produto de exportação (petróleo) e o aumento da produção (tanto nos países centrais do capital como no Sudeste Asiático) levaram a uma série de depreciações e desvalorizações que aprofundaram ainda mais o processo de deslegitimação do PRI. E, aos poucos, começou-se a ver pequenos triunfos do Partido da Ação Nacional em vários espaços e momentos.

Os sucessos do PAN deveram-se à sua alegada conversão numa “opção democrática” contra o aparato estatal, reunindo em seu torno grande parte da oposição sem jamais renunciar à sua proximidade com o catolicismo e às suas visões de mundo (que incluem, como se sabe, uma forte hierarquia social). Ao mesmo tempo, o partido de extrema-direita ocultou as suas raízes, muitas das quais se alicerçavam profundamente no fascismo e na extrema-direita organizada.

As eleições presidenciais de 2000 significaram a rutura definitiva com o modelo de partido único que se tornou impossível de manter na democracia mexicana. O PAN conquistou a presidência da república pelas mãos de Vicente Fox Quezada, ex-governador do Estado mais conservador do país (Guanajuato) e ex-gerente regional da Coca-Cola na América Latina.

Fox Quezada desenvolveu um discurso inovador que se baseou na rejeição geral do PRI e no desejo de mudança, prometendo, entre outras coisas, acabar com o levantamento armado que o Exército Zapatista de Libertação Nacional iniciou em 1994 no sudeste mexicano. Os zapatistas exigiam a transformação das formas de exploração dos indígenas e o reconhecimento da personalidade jurídica das comunidades.

Foi precisamente neste período que se pôde ver uma importante reconfiguração das forças internas do Partido Ação Nacional: uma ala da "direita moderna" conquistou a centralidade discursiva sobre a direita religiosa, chegando em algumas ocasiões a estar na mesma sintonia que o PRI. Este grupo, que assumia a necessidade de aprofundar as reformas estruturais neoliberais iniciadas na década de 1980, também lutou por uma solução liberal para o problema indígena.

Defendia o reconhecimento exclusivamente formal de certos elementos da comunidade, como os sistemas normativos indígenas ou a possibilidade de eleição das suas próprias autoridades, mas sempre supeditadas ao arcabouço jurídico político do Estado. Esta solução não permitiu, como é lógico, uma resposta adequada às comunidades, mas possibilitou a conhecida estratégia de deslegitimar as suas exigências, uma vez que estas “já tinham sido satisfeitas”, inclusivamente com as reformas constitucionais.

O processo de esbatimento das divergências entre o PRI e o PAN, que começou com uma cisão em 1988 do primeiro, acelerou. Com o apoio dos partidos de esquerda (primeiramente criminalizados e depois tolerados, mas que ainda assim permaneciam marginais na política institucional mexicana), a chamada “ala democrática” do PRI moldou uma nova força política: o Partido da Revolução Democrática (PRD).

Aliado em vários momentos com a Ação Nacional contra o PRI durante os seus primeiros tempos, a chegada da nova direita ao controlo do PAN mudou as possibilidades de alianças entre as forças políticas.

O alvo da direita mexicana: López Obrador

Neste cenário, as eleições presidenciais de 2006 foram um teste decisivo para a jovem democracia mexicana. O grande favorito em todas as sondagens era o chefe do governo do Distrito Federal (capital do país), o esquerdista e dirigente do Partido Democrático da Revolução, Andrés Manuel López Obrador. Não gozava apenas de uma ampla aceitação nos setores populares do país, senão que também em espaços privilegiados, mas também nas universidades.

A lenta ascensão da oposição ao poder político permitiu cimentarem-se uma série de instituições independentes (como o Instituto Eleitoral Federal ou os Tribunais Eleitorais) que proporcionaram travões à intenção, manifestamente aberta e presente desde o primeiro momento, de gerar uma eleição de Estado por parte da Ação Nacional.

As múltiplas declarações do presidente mexicano de então, Vicente Fox, deixaram-no claro: prometeu tudo o que fosse necessário para que "El Peje", como chamou a López Obrador, não conquistasse a presidência. Chegou inclusive a dar o apoio do governo ao candidato do PAN, que até então estava num distante terceiro lugar nas intenções de voto. inicialmente estava num remoto terceiro lugar.

Além disso, López Obrador foi nesta altura acusado de desacato por um tribunal federal, por não interromper a construção de uma estrada como foi ordenado. Como naquela época as autoridades eleitas gozavam de imunidade constitucional, ele devia passar por um processo de retirada de imunidade pelo poder legislativo (“desafuero”) antes de iniciar um processo contra ele.

Em 2000, o México foi em poucas semanas inundado com a ideia de que só pessoas ignorantes, preguiçosas ou inocentes votam à esquerda.

López Obrador decidiu não fazer uma defesa jurídica ou institucional, mas apenas política: apelou às pessoas para que saíssem à rua e assim impedissem a tentativa de impedir a sua candidatura. Essa estratégia resultou numa das maiores manifestações até então na história do país, e conquistou a simpatia de grande parte da população, o que motivou pressões políticas e sociais de tal magnitude que o processo foi desfeito.

Nesse cenário, as eleições pareciam um simples pro forma para o triunfo avassalador do candidato de esquerda. Felipe Calderón, o candidato do PAN, sabia desde o início que a sua distância do presidente Fox e dos tradicionais grupos de Ação Nacional pressagiava pouco apoio por parte do seu partido. É que a transição de 2000 aconteceu de forma relativamente pacífica, sem afetar os múltiplos privilégios das classes governantes e mantendo as políticas de sempre, agora comuns a ambos os partidos, algo que a candidatura e virtual triunfo de AMLO ameaçavam.

Portanto, se não conseguisse reverter o sentimento de derrota antecipada, o mais provável era que os dois partidos promovessem um único candidato, que provavelmente seria o do PRI, Roberto Madrazo. Ao contrário de Calderón, Madrazo era um conhecido personagem nacional e já havia derrotado AMLO numa eleição anterior, como governador de Tabasco, estado de origem dos dois.

Por isso, Calderón desenvolveu uma estratégia que, em vez de focar-se na própria figura, iria dirigir-se contra AMLO. Em sintonia com os grupos mais conservadores de ambos os partidos (PRI e PAN), assim como com empresários que não viam com bons olhos a chegada de alguém “de esquerda”, iniciaram um discurso “anticomunista” que o comparava A lideranças esquerdistas do mundo e que asseguraram que “Andrés Manuel é um perigo para o México”.

O país foi em poucas semanas inundado com a ideia de que só pessoas ignorantes, preguiçosas ou inocentes votam à esquerda, e que estávamos às portas de um regime ditatorial comunista. O impacto desta publicidade, desenvolvida pelo “guru da direita”, o publicitário espanhol Antonio Solá, foi abismal, pois o que parecia ser uma vitória certa para a esquerda estava agora totalmente atolada. A divisão (e polarização) foi tal que famílias começaram não raras vezes a discutir abertamente o apoio de alguns dos seus elementos a AMLO, e hoje não é incomum encontrar mexicanos que perderam amigos, relacionamentos e até empregos por causa disso.

As eleições de 2006 foram profundamente postas em causa e deram a vitória a Felipe Calderón Hinojosa por 0,56%. López Obrador acusou-o de fraude e, desde então, vários atores políticos, incluindo o então candidato do PRI, Roberto Madrazo, reconheceram a realização de ações coordenadas para impedir o triunfo da AMLO.

O candidato de esquerda convocou, de novo, manifestações públicas e resistência civil pacífica, mas a campanha já tinha surtido um efeito enorme; embora houvesse um sentimento generalizado de fraude, a maioria da população não aprovava a atuação de AMLO e dos seus seguidores, que paralisaram por meses algumas das zonas mais emblemáticas da Cidade do México.

Direita governa pelo medo

Como Presidente da República, Felipe Calderón viu-se a braços com enorme problema. Por um lado, gozava de pouca legitimidade, mesmo entre aqueles que o apoiavam institucionalmente, enquanto os seus acordos e promessas eram, em alguns casos, incompatíveis. Os meios de comunicação e os empresários alentavam os sentimentos contra a esquerda, mesmo contra aquela que não apoiava AMLO, e rapidamente começou um processo de crítica contra aqueles que não se haviam aliado ao novo regime.

Sabendo que existiam divergências múltiplas, inclusivamente internas na sua administração em relação à sua própria pessoa, Felipe Calderón direcionou a sua atenção para as Forças Armadas, às quais entregou as tarefas de segurança pública. A chamada “Guerra contra o Narcotráfico” converteu-se na nova propaganda de Calderón, que passou a vestir-se de militar em eventos públicos, algo que não se fazia desde a época dos presidentes revolucionários.

A televisão e a imprensa transmitiram, de forma constante, imagens de confrontos ou de assassinatos, sempre com o intuito de apoiar o presidente, o governo e o exército.

Recorrendo a uma estratégia de medo, a publicidade oficial gerava o discurso de que só morreram nos confrontos aqueles que pertenciam ao crime organizado. Construía-se assim um imaginário de culpabilidade automática: bastava ser preso ou morto para ser considerado parte do narcotráfico.

Milhares de mortes foram injustamente criminalizados pelos meios de comunicação, enquanto que a taxa de letalidade em confrontos do exército se tornou uma das mais altas do mundo, o que de acordo com especialistas é um indicador definitivo de execuções extrajudiciais. Em dois anos, a taxa de homicídios e crimes violentos retrocedeu décadas na pacificação do país. A televisão e a imprensa transmitiram, de forma constante, imagens de confrontos ou de assassinatos, sempre com o intuito de apoiar o presidente, o governo e o exército.

Nesse ambiente, a crispação social começou a manifestar-se abertamente e, com ela, os insultos racistas ou de classe começaram a tornar-se comuns a cada dia mais, especialmente contra aqueles conhecidos por terem votado ou apoiado a esquerda. Nas conversas sociais, inclusivamente familiares, normalizou-se falar mal de quem apoiava AMLO e toda a tentativa, por mais tímida que fosse, de contradizer ou contra-argumentar, era recebida com indignação e imediatamente rotulada de "violenta", provocativa ou perturbadora.

O fortalecimento do conhecido discurso anticomunista; o uso dos meios de comunicação social para fins de propaganda, até mesmo da mentira aberta; a construção mítica da figura de um “presidente sem medo” que enfrentava narcotraficantes e rivais políticos, assim como a sua proximidade, como nunca antes se tinha dado em relação às forças armadas. Elementos perigosos que se combinavam com uma narrativa classista e racista até mesmo através dos canais oficiais.

O sucessor de Felipe Calderón, o priista Enrique Peña Nieto, aprofundou alguns destes processos, mas observou-se uma clara rutura discursiva. Peña Nieto, um político jovem, carismático e conhecido pela sua atratividade física, não teve problemas em vencer López Obrador na sua segunda tentativa em obter a presidência, talvez como resultado da naturalização de um discurso polarizador e anti-esquerda gerado no processo anterior.

Finalmente o triunfo de López Obrador

Os seis anos do mandato de Peña Nieto, repletos de problemas de repressão e da agudização dos problemas de segurança, abriram caminho, ainda assim, para uma terceira tentativa de AMLO para assumir a presidência. Sem o apoio do PRD, o político fundou o seu próprio movimento-partido, o Movimento pela Regeneração Nacional (MORENA), com o qual veio a obter 53.19% dos votos, o maior triunfo em números totais e percentuais, em comparação com qualquer outra eleição na história da democracia mexicana.

Nessas eleições, porém, o discurso de rutura agudizou-se totalmente. Não houve por largos meses outro tema que não fosse a votação, levando ao envolvimento de pessoas que até então haviam rejeitado abertamente a política partidária. As reformas permitiram que durante este processo participassem, pela primeira vez na época contemporânea, candidatos independentes, e muitos atores sociais se tentassem candidatar.

Isto incluiu, surpreendentemente, o Conselho Indígena de Governo, iniciativa vinculada ao Exército Zapatista de Libertação Nacional que, pela primeira vez, procurava o caminho institucional para enviar sua mensagem. Não obstante, as normas estavam claramente ancoradas numa visão liberal que problematizou enormemente os esforços de pessoas e grupos distantes dos partidos políticos.

Finalmente, os únicos candidatos foram o Jaime Rodríguez Calderón, governador de Nuevo León, estado do norte considerado o segundo mais importante, apenas atrás da capital do país, e Margarita Zavala, esposa do ex-presidente Felipe Calderón, quem tentou repetir a estratégia de 2006.

López Obrador começou o seu mandato de seis anos com um processo de austeridade nos gastos públicos. Tem-se dedicado a despedimentos e aumento da carga laboral dos trabalhadores de base.

Nestes estes dois anos de governo, após finalmente ter ganho eleições, AMLO tem mantido um apoio surpreendentemente elevado da população, ainda que os indicadores cuantitativos de resultados de governo, sejam menores que os esperados. Os números, ainda assim, sabemo-lo bem, enganam com facilidade, especialmente quando apresentados fora do contexto.

Diante não apenas de um sistema político que se opõe manifestamente a ele, AMLO iniciou o seu mandato de seis anos com um processo de austeridade nos gastos públicos. Tentou focar-se na redução dos privilégios da liderança burocrática, mas na verdade tem-se dedicado a despedimentos e aumento da carga laboral dos trabalhadores de base.

Da mesma forma, o surgimento de Donald Trump pôs ao México diversos problemas, pois o país e os seus habitantes se tornaram na fuga retórica perfeita para os fracassos do presidente norte-americano.

Finalmente, perante a maior pandemia que enfrentamos em gerações, a gestão das falhas de administrações anteriores convergiu, em muitas ocasiões, com novos problemas e erros. Não é, definitivamente, um começo fácil, como se viu nas constantes tentativas (infrutuosas) da extrema-direita em apoderar-se do centro discursivo da oposição.

Imitando os movimentos passados ​​de AMLO (como tentar fechar as ruas e ocupar praças com tendas de campismo), atores específicos como a “Frente Nacional Anti-AMLO” ou alguns empresários, repetem os discursos anticomunistas e abertamente racistas, em marchas sem alma que são recebidas com raiva ou risos pelo povo.

Muito mais perigoso, porém, é a distinção social, cultural e racial que se formou em torno dos programas sociais da nova administração. Bolsas de estudo para que jovens aprendam uma profissão ou permaneçam na escola e de apoio a mães solteiras e idosos são vistas como despesas supérfluas que não deviam ser feitas pela direita.

Fica assim claro que a atual administração atravessa um momento crucial que pode resultar na consolidação de um novo projeto nacional ou no fortalecimento da direita no México. Muitas pessoas dizem-se ou pensam-se desencantadas com um AMLO que prometeu, sem dúvida, muito mais do que podia cumprir, mas a maioria não apoiará o retorno dos partidos que governaram no passado.

Ninguém pode negar que há descontentamento em certos grupos, mas o apelo não é para um projeto de extrema-direita, como dão a entender os partidos da oposição, mas pelo ideal que o povo votou em 2018: um projeto inclusivo e contra a desigualdade social do país. Os nossos passos serão dados na incerteza, nessa corda débil a que chamamos esperança.