Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

Como o Deus Mercado ressuscitou o autor

As alterações editoriais à revelia da vontade do autor, vivo ou morto, são prática corrente. Mark Twain, Emily Dickinson, William Shakespeare ou Cesário Verde chegaram às nossas mãos corrigidos e editados postumamente. Esta polémica é apenas mais uma salva na guerra cultural.

Ensaio
4 Maio 2023

A Puffin Books, uma das editoras infantis mais queridas dos jovens da anglofonia (e chancela da Penguin Random House, o maior grupo editorial do mundo), cometeu um pecado capital. Alterou um livro. Vários, na verdade. A polémica tem-se vindo a prolongar ao longo dos últimos meses, com praticamente toda a imprensa global a comentar algo que raramente comenta: uma decisão editorial.

As obras de Roald Dahl, autor britânico, seriam reeditadas com algumas alterações para agradar às sensibilidades contemporâneas. Onde uma personagem era “gorda”, passaria a ser “enorme”, onde era “feia” deixaria de o ser. Perante um autêntico furor de revolta, a Puffin encontrou uma solução de compromisso: vai lançar duas edições de cada texto, a nova e a “clássica”.

O argumento usado pela Puffin pareceu-me curioso. É importante, dizem na nota de imprensa, manter os textos clássicos de Dahl “in print”, o que significa, para todos os efeitos, disponíveis em loja (visto que a possibilidade de retirar ou emendar os milhões de exemplares anteriores a 2023 nunca esteve em causa).

Ora, se perante o declínio de vendas de Dahl, comum a muitos outros autores clássicos, a editora simplesmente o descontinuasse… Continuaria a ser assim tão importante? Seria sequer polémico? Apenas meia dúzia das dezenas de livros de Dahl está in print em Portugal, mas no entanto o bruá revoltoso perante a decisão da Puffin também se fez sentir por cá.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

A (des)fixação do texto obedece a uma só coisa: o mercado

Comecemos com uma interrogação: qual será a diferença entre O Livro de Cesário Verde, cujas várias edições foram sendo lidas pelo público português ao longo das décadas, e esta edição da Relógio d’Água, chamada Cânticos do Realismo?

Porque têm títulos diferentes, se todas pretendem compilar a obra completa de Cesário Verde? Mais importante: porque é que tantos dos poemas vêm alterados, nos seus títulos, na sua organização interna, na sua pontuação?

A resposta é simples: porque Silva Pinto, amigo de Cesário Verde e responsável pela primeira edição d’O Livro, numa pequena tiragem de apenas 200 exemplares, assim entendeu. Fez uma série de alterações nos poemas, certamente entendidas como melhoramentos, e assim se publicou o livro durante décadas. Quando Teresa Sobral Cunha (entre outros académicos) propôs uma versão alternativa, mais próxima dos originais de Cesário, incluindo uma série de poemas que Silva Pinto tinha eliminado por completo, sugeriu também um título diferente, proposto pelo próprio poeta.

Final feliz. O mercado adotou os poemas e a maioria dos novos livros publicados hoje já não tem as versões de Silva Pinto. Mas e o título? O título, esse, era demasiado conhecido. Demasiado vendável. A vontade autoral, como tudo, tem limites.

O mercado adapta obras clássicas desde que existe mercado

O mercado português, pequenino, teve o seu Silva Pinto, arrogante prevaricador, mas então e na anglosfera? Certamente seria impossível que algum editor tivesse a coragem de alterar textos de grandes poetas como Emily Dickinson ou William Shakespeare por entender que poderiam ser melhor adequados aos gostos contemporâneos dos seus públicos.

Foi exatamente isso que aconteceu. Alexander Pope editou e alterou as obras clássicas shakespearianas do First Folio precisamente com esse intuito. Pope cortou mais de 1560 linhas de texto por achá-lo menos apelativo, para ele e para o público de teatro do século XVIII. É evidente que as versões de Pope não são hoje as mais habituais, mas não só ainda se encontram em circulação como o prefácio da sua autoria continua amplamente disponível.

Dois belos exemplos, mas ambos corrigidos a tempo.

As edições contemporâneas de Shakespeare e Cesário Verde respeitam, dentro dos limites do razoável, os textos como propostos pelos seus autores. Dickinson? Nem tanto.

As alterações feitas por Mabel Loomis Todd e Thomas Wentworth Higginson interferem com a escolha de vocabulário, pontuação e capitalização de Dickinson, mas vão mais longe: incluem títulos originais para poemas que não os tinham.

Existem edições contemporâneas que revertem todas estas alterações? Claro que sim. Mas os poemas alterados continuam a ser muito habituais e nalguns casos são as versões mais lidas e conhecidas dos poemas, com os originalistas a perderem-se nas várias versões manuscritas de Dickinson, incapazes de fixar um texto definitivo sem cometer o mesmo tipo de “pecado” que Todd e Higginson.

Há versões adaptadas em todas as livrarias do país

Há uma diferença importante entre as alterações das obras de Dickinson, ou de Cesário, que referi anteriormente (se bem que não nas de Shakespeare) e as de Roald Dahl: o público leitor não foi informado.

O processo editorial iniciado pela Puffin no sentido de suavizar alguma linguagem ofensiva das obras de Dahl, ao contrário das edições de Silva Pinto ou Mabel Todd, foi feito de forma aberta e assumida, com os leitores a serem informados de estarem a ler uma versão adaptada por uma nota inicial em cada exemplar.

Ainda assim, a decisão da Puffin gerou as mais iradas (e já habituais) reações. Até o primeiro-ministro britânico se insurgiu.

A questão que se impunha colocar a Rishi Sunak, e também a todos os que escreveram inúmeras e variadas versões da mesma reclamação, com argumentários mais ou menos dignos do ChatGPT, é se terão noção do quão habituais são versões editadas, suavizadas, resumidas, reescritas e adaptadas de obras clássicas para todos os gostos e apetites.

Quantos de nós em Portugal não crescemos, por exemplo, com os Clássicos Juvenis Verbo? Ivanhoe, na edição da Wordsworth que tenho aqui ao meu lado, tem 464 páginas. Na edição que li em adolescente? 208. Escusado será dizer o que acontece nestas edições à violência, sexo, etc. habitual neste tipo de clássicos. Desaparece, como que por magia.

Que tal, para os mais novos, uma versão de Os Lusíadas que encontra “um perfeito equilíbrio entre a reescrita modernizadora e a fidelidade à estrutura e aos significados” da obra original? E que tal Os Lusíadas desprovidos de todas as complexidades de um português arcaico? Ou Os Lusíadas em prosa?

Mas há mais edições adaptadas, para outros e diversos públicos! A segunda edição que encontramos na livraria online Wook de O Memorial do Convento é uma edição resumida e anotada para estudantes. A edição mais fácil de encontrar d’O Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels é uma edição extensamente comentada e ferozmente crítica do texto. E, já que falamos de Marx, porque não dizer que é quase impossível encontrar em Portugal uma edição completa de O Capital em livraria? A versão que existe está, adivinharam, editada e abreviada.

Tratam-se apenas de alguns exemplos. Uma pesquisa minimamente atenta das nossas livrarias físicas ou online desencantará muitos outros. Os clássicos da literatura, de ficção ou não-ficção, são editados e alterados ininterruptamente para responder à voragem do mercado. Para crianças, para estudantes, para académicos, para leitores preguiçosos e cansados… Ou só para variar.

Em tradução vale tudo

A 8 de janeiro de 2021, a Netflix lançou uma das suas séries europeias de maior sucesso: Lupin. Para o editorial, foi um grande dia. Trouxe de novo para a ribalta (e para as vendas) um texto muito vantajoso de editar: está no domínio público.

Em poucos meses, as primeiras aventuras do detetive criado por Maurice LeBlanc tiveram honras de prateleira por pelo menos quatro editoras diferentes. Pela Relógio d’Água, Arsène Lupin: Gentleman Ladrão. Pela Porto Editora, Arsène Lupin, Cavalheiro Ladrão. Pela Compasso dos Ventos, Arsène Lupin - Cavalheiro e Ladrão. Pela Cultura, Arsène Lupin: Cavalheiro Ladrão.

Quatro edições do mesmo livro, pelo mesmo autor, com quatro títulos diferentes (se bem que num caso apenas na pontuação) e em traduções diferentes, todas em livraria ao mesmo tempo. Quem é responsável pela vontade autoral aqui? Qual é o texto correto? Quem tomou as melhores decisões? Terão ocorrido alterações significativas? Será que isso interessa?

Como assistente editorial, trabalhei com dezenas de livros em tradução, especialmente de literatura comercial, mas também na divisão literária. O nosso critério editorial era, salvo em raras exceções contratualmente impostas, quase absoluto.

Fiz eu, e fizemos todos muitas vezes, alterações no texto pelos motivos mais diversos. Seria necessário “suavizar” um texto porque o público português gosta menos de palavrões que o americano? Suavizava-se. Seria necessário alterar o nome das personagens para que se percebesse um trocadilho? Alterava-se. Seria necessário cortar um adjetivo aqui ou ali para fazer a mancha do texto caber na página? Pois cortava-se. A tradução estava má e era necessário reescrever ou editar amplamente grande parte do texto? Reescrevia-se e editava-se.

Os nossos pruridos eram muito maiores com um autor literário que com um autor de eróticos autopublicado na Amazon, mas o critério era ainda assim nosso e, em casos de dúvida, as decisões eram quase sempre tomadas sem consultar o tradutor e muito menos o autor.

Esta polémica é apenas mais uma salva na guerra cultural

O argumento deste ensaio não é muito diferente do anterior que escrevi para o Setenta e Quatro. Não estou a argumentar que seja bom alterarmos o texto de autores que já não podem opinar sobre o assunto. Não estou sequer a celebrar a existência de milhentas edições infantis impúberes e banais. Não tenho qualquer interesse nem vejo qualquer vantagem na eliminação do mercado de obras seminais em favor de edições editadas e resumidas.

O argumento deste ensaio é que estas coisas acontecem porque o mercado as exige e sempre aconteceram porque o mercado sempre as exigiu.

Dahl mal é lido em Portugal e apenas meia dúzia das suas dezenas de livros está disponível em livraria. O motivo pelo qual as cosméticas alterações de alguns termos nas suas obras despertou tamanho celeuma em Portugal muito dificilmente poderá ser a redescoberta apaixonada da sacra vontade autoral. Essa argumentação não sobrevive sequer a uma análise superficial do mercado e da nossa pacata tolerância perante alterações muito mais profundas e significativas em obras muito mais lidas.

A revolta a que estamos a assistir deve-se ao mercado estar a privilegiar, ainda que poucochinho, ainda que passageiramente, interesses ligeiramente diferentes daqueles a que estamos habituados.

Isto, repito, não tem nada que ver com wokeismo, cultura do cancelamento, politicamente correto ou qualquer outra frase feita que entretanto surja para encher o limite de caracteres de um tweet. Isto tem a ver com vendas. Mas a direita mais autoritária e conservadora instiga pânicos morais na linha da sua narrativa de (falsa) defesa da liberdade de expressão - sem, atenção, criticar o mercado. 

A polémica em torno dos livros de Dahl voltou à baila há dias na sua terra natal, o Reino Unido, quando Jacob Rees-Mogg, deputado conservador, foi confrontado - situação rara - com contraditório digno. Estas guerrilhas culturais em torno de situações normais e correntes de mercado vão continuar a suceder-se enquanto forem úteis para alguns quadrantes políticos maquilharem a sua incapacidade para dar resposta às necessidades dos seus povos.

O meu apelo, cingindo-me ao mundo dos livros, continua a ser o mesmo: agora que todos estamos de acordo em relação aos vícios que o mercado introduz, será que estamos prontos para começar a discutir alternativas?