Socióloga e investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Doutorada em Estudos Feministas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Assédio: uma introdução impopular

O assédio é uma categoria que tem vindo a ganhar espaço no debate normativo contemporâneo, figurando nas agendas político-governamentais, no repertório do activismo social e na produção académico-científica. Partindo do estatuto da sexualidade, há que sinalizar alguns dos termos e das presunções que têm servido a sua enunciação social, política e jurídica.

Ensaio
12 Janeiro 2023

Estava o Parlamento em tédio morno
Do Processo Penal a lei moendo
Quando carnal a deputada porno
Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo!

Leda à tribuna dos solenes sobe
A lasciva onorevole Cicciolina
E seus pares saudando ali descobre
O botão rosado da tettina.

Para que dos pais da Pátria o pudor vença,
Do castro bracarense o verbo chispa:
«Cesse a sessão em nome da decência
Antes que a Messalina mais se dispa.»

Mas - ó partidas que prega a estatuária! -
Que fazer no hemiciclo avesso ao nu
Daquela estátua que a nudez plenária
Ali ostenta sem pudor nenhum?

Eis que o demo-cristão então concebe
As vergonhas velar da escultura.
Honesta inspiração do céu recebe
E moção apresenta de censura:

«Poupado seja à nudez viciosa
O olhar parlamentar votado ao bem.
Da estátua tapem -se as partes vergonhosas.
Ponham-lhe cuequinhas e soutiens.»

— Natália Correia, Cantigas de Risadilha

 

Na tarde de 19 de Novembro de 1987, Cicciolina, nome pelo qual era amplamente conhecida Elena Anna Staller, deputada italiana do Partido Radical, em visita a Portugal, desloca-se à Assembleia da República, onde, da tribuna reservada às visitas diplomáticas, desce o decote do seu vestido e mostra as mamas ao hemiciclo.

O Parlamento, escandalizado, interrompe os trabalhos e, dessa história, fica registado o facto de apenas Natália Correia, então deputada independente (eleita nas listas do Partido Renovador Democrático – PRD), a ir receber. É a partir desse evento que Natália Correia escreve o poema que introduz este texto. São, até à data (e ao que se sabe), as únicas mamas exibidas na casa da democracia portuguesa, uma vez que até o busto da República, da autoria de Artur dos Anjos Teixeira, nunca se atrevera à ousadia explícita do original francês. 

Cicciolina, produto de uma ficção teatralizada da sexualidade ou tomando emprestado de Paul B. Preciado, símbolo do pornokitsch, transgredia a topologia política dos corpos na constitutiva disposição com os espaços; transgredia um dos espaços primeiros de definição do muro regulador do público e do privado, do privado como suspensão do público, pelo seu desvalor político; e fazia-o no imo do olho moral do Estado.

Se do outro lado do Atlântico Catharine MacKinnon publicava Feminism Unmodified e as campanhas norte-americanas anti-pornografia incendiavam e polarizavam os cenários político, académico e ativista, em Portugal, “a coisa sexual”, como provocatoriamente formulado por Júlio Machado Vaz na introdução a um Curso Internacional de Verão de Cascais, não se inscrevia no debate público e político, se não como obscenidade ou pornocracia, ou neutralizada pela esfera da saúde-reprodução (nomeadamente, em torno da contracepção e do aborto). 

Tratava-se de um assunto-espaço privado, doméstico, não-político, relativamente ao qual as organizações feministas ou de mulheres, por pudor, repúdio ou estratégia, se mantinham distanciadas (não fosse comprometer a sua seriedade e/ou a da agenda-causa feminista/das mulheres).

Cerca de vinte anos mais tarde, o grupo activista Femen adopta o topless como imagem de protesto político, recorrendo não a Cicciolina (símbolo da indústria pornográfica e da captura do sexo pelo mercado), mas à imagética de Eugène Delacroix na pintura La Liberté guidant le peuple. 

No sentido que lhe reclamam, o desnudar das mamas é uma afirmação política de soberania de si, do próprio corpo, de liberdade para dispor dele-objecto, de si-sujeito. Esta forma de activismo tem, ainda assim, encontrado resistência junto de outras correntes e activismos feministas, recuperando argumentos e debates em torno da sexualidade como libertação e da sexualidade como opressão, e reanimado as guerras do sexo, travadas pelos feminismos norte-americanos, a partir da década de 1980 — inicialmente em torno da pornografia e, posteriormente, do assédio sexual.

Em 2015, a Playboy anunciou que deixaria de publicar fotografias com nu integral. O volume de vendas aumentou 28,4% durante o semestre seguinte.

A sexualidade compreendida como o campo da opressão, volta (ou continua ou passa) a ser o campo, por excelência, das batalhas feministas. Enquanto libertação ou opressão, o regime capitalista tem-se mostrado o regime mais exímio (ou, pelo menos, o mais massificado) a compreender, a acomodar e a promover ambas as grelhas de leitura da sexualidade, como o exemplo da mítica revista Playboy evidencia. Em 2015, depois de 40 anos na mira do feminismo radical de Catharine MacKinnon, a Playboy anuncia que deixará de publicar fotografias com nu integral. 

Esta decisão, em nada relacionada com a crítica feminista à objectificação da mulher, resultava simplesmente do balanço contabilístico da marca Playboy: “as fotografias explícitas que a revista sempre publicou já não fazem sentido”, são um modelo “passé”, já não são economicamente rentáveis uma vez que “estamos à distância de um clique de todos os actos sexuais imagináveis, de graça”. Se a visualização do nu se tornou fácil e grátis, a Playboy, vanguardista do império do homem solteiro, passa a tapar as suas modelos. 

Seis meses depois, é anunciado um aumento de 28,4% do volume das vendas nas bancas dos Estados Unidos — e o lançamento de aplicações para telemóvel para corresponder à crescente procura. A Playboy compreendera que (já) não era o nu que era procurado na sua marca e através das suas páginas; o que singularizaria a Playboy no panorama da oferta gratuita e diversificada no domínio dos consumos sexuais era uma nova proposta existencial da sexualidade: a sexualidade-estilo-de-vida, a sexualidade-identidade-produto, a sexualidade-relacionalidade-consumo. Uma sexualidade que longe de se esgotar no nu ou na genitália é tão mais complexa quanto fluida, quanto (in)fluente, quanto valorizada.

Ora, é a partir desta matriz da sexualidade — libertação, opressão, pecado, missão, identidade, relacionalidade — que procuro abordar a expressão sociojurídica do universo de condutas que ficaram conhecidas como assédio sexual. Catharine MacKinnon é a grande impulsionadora do conceito, dando o salto entre uma percepção isolada do assédio sexual, da esfera das ofensas sexuais interpessoais, para uma perspectiva integrada do assédio sexual, sintoma do regime mais amplo de subordinação das mulheres em relação aos homens. O assédio sexual passa então a ser entendido como uma manifestação da mesma matriz da sexualidade-violência explicativa da violação, do incesto, da pornografia ou da prostituição. 

Em Portugal, o assédio sexual assume um novo relevo político depois da Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica, vulgarmente designada Convenção de Istambul (assinada em 2011), passando a figurar junto de outros temas que vêm animando os feminismos portugueses: o aborto, a prostituição, o tráfico sexual, a violência doméstica. 

Se as bases institucionais portuguesas comungam da raiz conceptual-analítica mackinnoniana, uma das particularidades da Convenção de Istambul foi facultar aos discursos públicos, políticos e activistas uma unidade estrutural no modo de conceber a violência, a partir dos seus alvos e agentes. A violência e, enquanto tal, o assédio sexual — se e quando contra mulheres — assumem-se, nesta Convenção, como manifestação da sexualidade-dominação, como aparato de docilização-subordinação patriarcal.

Se é também pela capacidade criadora das categorias que, em larga medida, se explica o modo como a história do assédio sexual se converteu num marco do sucesso feminista, importa compreender, no contexto nacional, como se têm vindo a estabilizar os termos e as balizas que têm servido a sua enunciação social, política e jurídica. Para tal, procuro aqui e de uma forma muito breve enquadrar os contextos disciplinares (ou institucionais) da produção de conhecimento nesta área

Um esquisso de assédio

Analisado pelas lentes da ciência jurídica — que sempre gozou de elevado prestígio académico e institucional —, o assédio passa a despertar o interesse, ainda tímido, da dogmática jurídico-laboral a partir da sua introdução, como tipo legal, no Código do Trabalho português, em 2003; mas é sobretudo a revisão do Código do Trabalho de 2009 que atrai a atenção para os contornos jurídicos do assédio, na sua vertente moral (o tal mobbing), nos locais de trabalho. 

As preocupações doutrinárias dos autores e das autoras fazem eco de orientações internacionais mais amplas e de tópicos identificados na jurisprudência. Apontam tanto para as diferentes lacunas legislativas ou para as dificuldades probatórias, como para a geometria das condutas (reiteração, intencionalidade), para a definição e operacionalização dos bens jurídicos em causa, ou ainda para o enquadramento do fenómeno no campo da infortunística ou das contingências profissionais. 

Neste fórum, o assédio é discutido a partir da formulação de normas e preceitos enraizados na tradição da jurisdição laboral, disputando as premissas da intencionalidade, da duração e frequência, dos efeitos, da gravidade, dos contornos discriminatórios ou não discriminatórios, ou a sua contaminação com outras figuras legais, como o obstar injustificado à prestação laboral, ou a sua ligação à área dos riscos psicossociais, doenças profissionais ou acidentes de trabalho. Não só a atenção dedicada ao assédio sexual era, e é, residual e periférica, como o assédio é entendido como uma perturbação da integridade produtiva dos sujeitos, numa relação de subordinação laboral.

Num outro prisma, quer enquanto recurso, quer enquanto discurso, o próprio direito tem sido tanto um expediente caracterizado pela vigilância e suspeição epistemológica, quanto um campo privilegiado, sobretudo pelas teorias feministas do direito, para compreender (e corrigir) a construção da matriz patriarcal no governo dos sujeitos. 

A produção teórica e empírica em torno das contendas entre feminismo e direito, extensa e antiga no panorama internacional, é, todavia, mais recente em Portugal — razão frequentemente atribuída ao atraso da academização de áreas como a Sociologia ou os Estudos Feministas, que não pode ser dissociado das particularidades sociais e políticas que caracterizaram o Estado Novo —, e goza de um mais circunscrito campo de influência.

O assédio passa a despertar o interesse, ainda tímido, da dogmática jurídico-laboral a partir da sua introdução no Código do Trabalho português, em 2003.

A nova vitalidade governamental et pour cause teórico-académica (bem como associativa), inspirada pela Convenção de Istambul, catapultou o assédio sexual para a área dos estudos feministas e/ou críticos do direito que vinham já problematizando a esfera jurídica a partir 

i) de diferentes objectos de análise (como a igualdade e os direitos das mulheres; a violência doméstica; a violação; a prostituição; o tráfico de seres humanos; ou o aborto);

ii) de diferentes processos de mobilização (movimentos sociais de mulheres, de grupos LGBT, de pessoas com deficiência);

iii) de diferentes paradigmas (como o criminológico; o vitimológico; ou o psiquiátrico-forense); 

ou iv) do campo e da praxis judiciários (da feminização da justiça aos métodos jurídicos feministas). 

Acolhendo as premissas e a gramática da violência contra as mulheres, o assédio sexual não só foi amplamente acomodado em torno de reivindicações teórico-activistas da sua criminalização, como recupera aquela que é uma marca da produção científica nestas matérias: a vocação governamental. 

Com efeito, os estudos realizados sobre o assédio — que remontam à década de 1980 — surgem muito comprometidos em responder a directivas governamentais e internacionais, reflectindo, como argumentam Maria do Mar Pereira e Ana Cristina Santos, “uma padronização frequentemente coincidente com as prioridades das agências de financiamento nacional e internacional à investigação e às organizações não-governamentais”. 

Na produtiva convergência entre as agendas académica, estatal e associativa, esta é, por um lado, a razão para o primeiro manual em Portugal sobre assédio sexual no local de trabalho, de 1989, de Maria Alice Botão, ter sido reeditado pela Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (actual CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género), na colecção Informar as Mulheres; e a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) encomendar aqueles que seriam os grandes estudos sobre o assédio sexual no local de trabalho: o primeiro realizado entre 1988 e 1989, publicado em 1994 (coordenado por Lígia Amâncio e Luísa Lima); e o segundo, compreendendo as vertentes sexual e moral do assédio, realizado entre 2014 e 2015, publicado em 2016 (coordenado por Anália Torres). 

Por outro lado, a padronização no modo como estes estudos concebem o assédio reforça o seu lugar nas prioridades das agências de financiamento nacional e internacional (à investigação e às organizações não-governamentais) pelo impacto numérico dos seus resultados: 16,5% da população activa portuguesa, ao longo da sua vida profissional, já viveu alguma vez uma situação de assédio moral; 12,6% da população activa portuguesa, ao longo da sua vida profissional, já viveu alguma situação de assédio sexual; nas duas formas de assédio, as mulheres apresentaram taxas de incidência mais elevadas (segundo dados do inquérito de 2016).

Na triangulação entre a realidade produzida pelos estudos de prevalência, a realidade produzida pela literatura governamental (manuais e guias) e a realidade produzida pelas decisões administrativas, nomeadamente da CITE, afigura-se uma descoincidência imensa, cujo elevado potencial analítico é exponenciado pelo uso estratégico que assumem.

O direito tem sido um campo privilegiado, sobretudo pelas teorias feministas do direito, para compreender (e corrigir) a construção da matriz patriarcal no governo dos sujeitos.

Desta forma, e desde logo, a autoridade que se procura com a invocação de percentagens de vitimação de assédio — que tão impressionantes manchetes sustentaram e que serviram de argumento na redacção de diferentes propostas legislativas —, exorbitantes à luz do número residual de denúncias (em instâncias judiciais e não judiciais), é perspectivada e problematizada sobretudo a partir de uma persistente suspeição. Uma suspeição que, no encalço da suspeição feminista em torno das disposições masculinas ou masculinistas das normas e dos métodos jurídicos, se distende à postura científica de aproximação ao conhecimento da realidade, isto é, à sua produção como conhecimento e como realidade, e que procura evidenciar, parafraseando João Arriscado Nunes, as diferenças que o conhecimento produz no mundo. 

Neste sentido, e por um lado, as formas de produção de conhecimento sobre o assédio, nas ciências jurídicas, nas teorias feministas ou nos estudos epidemiológico-governamentais — que continuam, no cenário português, balizadas pelos seus quadros e premissas disciplinares e pelos propósitos de legitimação e de autoridade sobre a definição das condutas e a prescrição de respostas — tornam-se um objecto privilegiado pela legitimidade que lhes é reconhecida na produção de verdades sobre o que é (o) assédio sexual e assédio moral. 

Ou seja, enquanto expressões normativas do assédio, é na amplitude e generosidade de concepções de assédio, nomeadamente as previstas no inquérito coordenado por Anália Torres, e na estreiteza dos quadros-conceitos descritos e prescritos na legislação, na doutrina e nas decisões judiciais, mas também na literatura governamental e nas decisões das instâncias formais não judiciais com competências nesta matéria (como a CITE, a Provedoria de Justiça ou a Autoridade para as Condições do Trabalho – ACT), que procuro entender a matriz do assédio e a construção da sua (i)licitude.

Por outro lado, se a prática científica é uma acção eminentemente política e epistemológica, a exposição, como formulado por Tiago Ribeiro, de qualquer projecto epistemológico às retóricas, às tácticas e aos activismos sociais, potenciando a visibilidade do campo, poderão simultaneamente esvaziar a sua complexidade teórico-analítica. 

O caso do assédio sexual é, neste âmbito, notório: os nexos, os enunciados e as dicotomias que prevalecem no campo político-intelectual com o qual procuro dialogar têm sido absorvidos e capturados num repertório ético-moral entre o bem (feminismo) e o mal (patriarcado). Na reivindicação de um espaço para as condutas de assédio sexual no mapa penal, o recurso político ao esquematismo normativo mackinnoniano visa compensar uma cultura jurídica de interpretação da realidade social historicamente enfermada por um vício ou uma falácia patriarcal estruturalmente rotinizada e enraizada; fá-lo, contudo, procurando demonstrar e provar o patriarcado como a verdade do ser e, inadvertidamente, do dever ser.

A este propósito, duas notas. Primeira: enquanto unidade descritiva de conteúdos, a natureza do assédio é, por definição, dissolver-se e esgueirar-se à normatividade. Deste modo, o assédio é assédio (e não outra coisa) precisamente porque, investido de contornos kafkianos, se move nos interstícios da incivilidade e da injúria, da sedução romântica e do ofensivo e, portanto, fora das balizas da (i)legalidade. 

Este entendimento do assédio faz da missão legislativa e aplicativa de qualquer norma anti-assédio uma contradição e, portanto, uma complicação radical. Por outras palavras, a densificação jurídica anti-assédio, precisamente porque funciona a partir de uma consciência (mais ou menos informada, mas deliberada) das balizas da legalidade convencional, só é eficaz se tutelar múltiplos espaços do domínio da acção-agência, da intimidade, da privacidade e da reserva relacional.

A missão legislativa de qualquer norma anti-assédio é uma complicação radical. A densificação jurídica anti-assédio só é eficaz se tutelar múltiplos espaços do domínio da acção-agência, da intimidade, da privacidade e da reserva relacional.

A segunda nota diz respeito à economia moral da sexualidade. O cartesianismo que continua a imperar na concepção do sujeito (sexualidade versus corporalidade) revela-se tanto na leitura como na reivindicação da sexualidade como dispositivo da cosmovisão e da lidimidade da personalidade física e moral individual que autoriza a sua especial protecção. 

Deste ponto de vista, se a liberdade individual obedece à disposição do corpo como território de subjectivação (sexual) inscrita no regime sexo, a partir do qual a gravidade de um comportamento ou a sua antecipação sexual são também amplificadas, o seu reconhecimento na disciplina legal simultaneamente testemunha e legitima esse mesmo regime, conferindo vantagem argumentativa a quem controlar a sua pressuposição. 

Posto isto, o sexo é aqui uma proposição contingente. Isto é, olho para o sexo, identidade-relacionalidade, partindo não da estabilização científica que determina, valida (e considera relevante) o facto científico de que há  sujeitos do sexo feminino e sujeitos do sexo masculino, mas da premissa de que, tal como no Admirável mundo novo de Aldous Huxley, uma ideia repetida várias vezes torna-se verdade. 

Neste sentido, enquanto facto social, os condicionalismos que se inscrevem na subjectivação não são estritamente os fordistas-huxleyianos (da programação e decantação dos embriões-proveta à hipnopedia), mas os textos jurídicos e as instituições que os sustentam são parte do conjunto (de entidades tanto linguísticas, como médicas ou domésticas) que Preciado caracteriza como uma “máquina de produção ontológica que funciona mediante a invocação performativa do sujeito como corpo sexuado”, desde a prescrição, aparentemente descritiva, do é uma menina ou é um menino, pronunciada perante a ecografia de um feto ou no momento do nascimento. 

A identidade sexual (o que quer que isso seja ou queira dizer) é um condicionalismo primário (social, científico, jurídico), que não é a expressão instintiva da verdade pré-discursiva da carne, mas um efeito da reinscrição das práticas e normas do regime sexo no corpo; um condicionalismo que permitirá a Adrienne Rich enunciar a ideia de uma linguagem comum e a Catharine MacKinnon a ideia de uma fatalidade comum. São, portanto, também as prerrogativas que sustêm esta comunalidade que procuro, na incursão sobre o assédio, confrontar. Ao fazê-lo, e ao renunciar ao apego a tal enunciado estratégico e antagónico, não há como a noção de assédio não sair beliscada. 


Este texto corresponde, grosso modo, à primeira parte da introdução do livro Assédio: aproximações sociojurídicas à sexualidade, publicado em 2022 pela Imprensa de História Contemporânea. Mantém, por vontade da autora, a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.