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XuxAnon

O jogo político não incentiva humildade e mea culpa. Não interessa a um governo reconhecer um erro e dar armas à oposição. Em vez disso, é preferível redirecionar, distrair, contra-atacar, reformular uma narrativa, culpar o governo anterior. 

Crónica 74
16 Março 2023

Lembro-me que a primeira vez que me apercebi que as pessoas viviam em realidades diferentes foi durante o governo PSD/CDS de Passos Coelho. À minha volta via amigos a emigrar, via família a perder rendimentos com os cortes do 13º e 14º mês, via empresas a atrasar-se em pagamentos e a despedir, via pessoas a pedir comida porta à porta, vi as maiores manifestações contra a austeridade de que me lembro.

Ao mesmo tempo o governo e os seus porta-vozes vinham assegurar-nos que os sacrifícios eram para todos (não eram, o número de milionários aumentou, por exemplo), anunciando várias vezes o fim da austeridade e talvez a mais infame das citações, do atual líder da oposição Luís Montenegro, que "A vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor".

Todos os dias via as notícias do spin do governo. Esconder as más estatísticas, falar das boas estatísticas. Não falar do mal que o governo fez, falar do que vai fazer mesmo que não o faça.Lembro-me do sentimento de desespero: como seria possível sequer concordarmos numa solução se uma parte do país, quase dois milhões de pessoas, nem sequer conseguia concordar na realidade observável?

Claro que “spin” não é um exclusivo do PSD ou do CDS (RIP!). Temos visto o PS gabar-se do PIB, da redução da dívida, das exportações. Isto enquanto há uma crise na habitação, do custo de vida, no SNS, nos transportes e na educação.

O jogo político não incentiva humildade e mea culpa. Não interessa a um governo reconhecer um erro e dar armas à oposição. Em vez disso, é preferível redirecionar, distrair, contra-atacar, reformular uma narrativa, culpar o governo anterior. E com OCS disponíveis para fazer o frete e bolhas cada vez mais alienadas nas redes sociais é possível.

É possível um eleitor da direita viver num mundo mediático completamente diferente de um eleitor de esquerda. Com escândalos diferentes, com triunfos diferentes, os mesmos factos objetivos com interpretações completamente diferentes. Mas à medida que uma pessoa vai mais fundo no rabbithole da realidade paralela (Toca do Coelho, apropriado), menos permeável à realidade real se torna. Quando lhe mostram o fact-check que contradiz aquilo em que acredita, o fanático ataca o mensageiro. O fanático torna-se cada vez mais inflexível e como não consegue encaixar a realidade com as suas crenças, então a realidade é que está errada. No limite, a teoria da conspiração acaba por se tornar a única maneira de sustentar a incoerência entre o que se acredita e a realidade material.

Temos a distância suficiente dos EUA para conseguirmos perceber o nível de alucinação a que uma certa direita pós-Trump chegou. Desde coisas graves como mentir sobre as eleições terem sido roubadas (a não ser que Republicanos ganhem) a coisas inócuas mas absurdas como o número de pessoas na inauguração de Donald Trump, que aliás, deu origem à expressão “factos alternativos”. As incoerências inevitáveis entre as fabulações da administração Trump, as suas promessas de construir o muro, drenar o pântano e prender a Hillary Clinton e da realidade, em que estas promessas ficaram por cumprir, levaram a uma inevitável bifurcação mental para o eleitor republicano: ou o Trump mentiu ou na verdade a Hillary Clinton já foi presa, substituída por uma sósia

Esta, de certa maneira, é a origem do QAnon, uma comunidade de teóricos da conspiração amantes de Trump, que procuram explicações cada vez mais rebuscadas para justificar como o Trump, na verdade, foi um excelente presidente e todos os democratas são pedófilos e estão presos. Mas embora os “factos alternativos” do mundo Trump sejam tratados com o escárnio que merecem nos órgãos de comunicação social (OCS) tradicionais há teorias da conspiração que têm tempo de antena garantido nos OCS em Portugal.

A origem pode ser traçada aos blogues políticos e e-mails corrente do início do século XXI, em que, às vezes sob anonimato se propagou um discurso político grosseiro e rasteiro, de insinuações - sobre a vida sexual de políticos por exemplo, mas claro sobre casos de corrupção, reais ou inventados. Para mim sempre vou associar ao termo “Xuxalismo” (um trocadilho entre socialista e “xuxa”, alusão ao PS e aos seus eleitores “mamarem” dos contribuintes). Um termo que nunca tinha ouvido sem ser em blogues reacionários e posts de Facebook com memes boomers. Aqui se davam os primeiros passos na realidade alternativa moderna, o QAnon português, o XuxAnon.

Os membros do XuxAnon estão espalhados pelos vários partidos de direita. Claro que o Chega fica com a fama, sendo os seus membros frequentes difusores de Fake News e teorias da conspiração. Mas a primeira vez que ouvi “Xuxalista” na televisão veio pela boca do candidato presidencial da Iniciativa Liberal, Tiago Mayan, no debate com o candidato da CDU João Ferreira. Com toda a confiança afirmou que Passos Coelho e Assunção Cristas eram também eles “Xuxalistas”.

Ora, além de denunciar a sua herança cultural desta blogosfera de direita (de onde vêm vários membros da Iniciativa Liberal, como o deputado Carlos Guimarães Pinto), esta “piada” encaixa na visão maniqueísta purista de muitos na IL: há os liberais e do outro lado há os “estatistas”, os socialistas, ou por outras palavras, os Xuxalistas. Todos aqueles que não querem privatizar e voucherizar o Estado Social são “Xuxalistas”. 

Chamar “socialista” (ou “comunista”) a um opositor não é propriamente uma grande inovação. Aproveitam-se dos preconceitos - criados pela própria classe dominante - sobre políticas de esquerda e o Red Scare para ter o termo como atalho. Não é preciso justificar porque um político ou proposta é má… basta dizer que é “socialista” ou pior “xuxalista”. A tradição é quase tão velha como o socialismo em si. O presidente dos EUA, Harry S. Truman - que não pode ser acusado de ser simpatizante soviético - denunciava que a oposição chamaria a tudo - desde a segurança social ao SNS que queria criar e não conseguiu - de socialismo.

Aqui concedo que o Partido Socialista não tem ajudado muito a impedir que “socialista” se tornasse um sinónimo de “mau”. Pessoalmente acho desastrosas as suas políticas de privatizações, PPPs e desregulação de mercado e laboral ao longos dos últimos 30-40 anos, mas aí o problema parece-me ser falta de socialismo e não excesso.

Este tipo de discurso extremado, em que um partido de centro-direita como o PSD e um de direita conservadora como o CDS são chamados de “Xuxalistas”, tem um propósito. Para o fanático, não pode haver maior crente que ele. Se há mais direita, não pode nunca ser mais à direita do fanático. Tal como ninguém é liberal o suficiente para a IL, um dos insultos preferidos do Chega para a IL é “Bloquista”. E claro, se houver alguém muito obviamente mais à direita, como um literal nazi ou o Putin, bem, na verdade como é mau tem de ser de esquerda.

A extrema-direita nazi passa a “socialista” porque é má. Vladimir Putin, aliado de Matteo Salvini, Marine Le Pen, de Trump, passa a “comunista”. E quando se pergunta para justificar a afirmação face a tanta prova contrária, mesmo pessoas com responsabilidades nos OCS preferem continuar a enterrar-se que admitir que estão erradas.

O problema da realidade paralela é que ela se espalha. Vejo pessoas a dizer que o PCP está a ser financiado pelo Putin. Pedem-se provas? Não há.

Pessoas aleatórias de esquerda têm de ser “avençadas” - ou seja pagas para tweetar (quem me dera), porque é mais fácil aceitar uma conspiração em que há DINHEIRO para pagar a twitteiros que acreditar que alguém pode discordar de nós. Eles acham mesmo que há pessoas a ser pagas pelo lobby da habitação pública ou do investimento na saúde e educações públicas a meter-se em discussões com liberais.

Viram-se várias comparações abusivas durante o pico da pandemia, comparar quarentenas, confinamentos, testes e vacinas a nazismo. O Elon Musk, considerado um génio por parte da direita liberal, chamou à COVID-19 uma conspiração fascista.

Quando foram anunciadas as medidas do PS da habitação, os liberais e os seus porta-vozes chamaram-lhe um PREC. Medidas ineficazes, tímidas, de mercado, que subsidiam proprietários foram tratadas como expropriação sem compensação.

Quando Luís Montenegro (olhem é o mesmo do país está muito melhor), líder do principal partido de direita, o suposto partido de direita democrática e moderada acusa o António Costa e o PS de ser comunista e ter uma Agenda Comunista é menos alarmante ou alucinado que o Trump dizer que os EUA se estão a transformar num país comunista

O objetivo é mexer a janela de Overton. Tornar inaceitável tudo que era normal há menos de 30 anos: empresas públicas, sindicatos fortes, investimento público. Tornar aceitável o que mais de abjeto tem a sociedade: partidos saudosistas do Estado Novo, xenofobia, sexismo, homofobia, transfobia, racismo, a privatização total da coisa pública e tirar todo o poder do eleitor para dar para grupos económicos não eleitos.

É chocante alguém poder chamar a António Costa ou a sua política da habitação ou o Putin “comunistas”. Não é sério. Mas esta histeria é apresentada acriticamente na televisão, nos jornais. O XuxAnon está a transbordar dos blogs e caixas de comentários para o discurso mainstream dos dirigentes da direita. 

Num escândalo que abalou a BBC - mas que estranhamente passou ao lado dos nossos guerreiros da liberdade de expressão, sempre preocupado com o mais ínfimo e irrelevante caso numa universidade aleatória - a BBC afastou o afamado futebolista e agora comentador Gary Lineker de um dos seus programas por causa de um tweet. O tweet desconstrói a narrativa dos Partido Conservador - não há emergência nenhuma, o Reino Unido recebe um nível historicamente baixo de refugiados - e compara a linguagem desumanizante dos refugiados, justamente, à mesma utilizada pela Alemanha nos anos 30.

Depois de uma semana de centenas de pessoas a apontar a hipocrisia do afastamento, das personalidades da BBC conservadoras a fazer tweets ofensivos sobre o Labour sem consequência, das ligações da atual gestão da BBC ao Partido Conservador, Gary Lineker vai poder voltar a comentar futebol.

Este caso aponta os riscos da realidade paralela que a direita quer criar. De mexer a janela de Overton de tal forma para a direita que a mais tímida política social-democrata é tratada como Estalinista e o mais descarado neofascismo mimado e protegido de qualquer crítica. Se cometermos o crime de dizer que o Rei vai nu leva-se “ai, agora chamam a tudo de nudez”.

Cabe-nos a nós lutar contra a maré de desinformação e manter os pés na realidade.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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