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Violência no cu dos outros é refresco

Os “relativizadores” de violência profissionais dizem ser absurdo comparar a violência policial francesa com a iraniana, a russa ou a chinesa. Como há países piores, não podemos achar minimamente vergonhoso que um país da União Europeia use a violência policial para calar quem luta pelos seus direitos.

Crónica 74
23 Março 2023

É possível que o título da crónica tenha ficado um pouco mais bruto do que é habitual, mas com certeza que os “relativizadores” de violência profissionais deixarão passar, que isto é gente de grande competência no que a ver os vários lados da mesma violência diz respeito.

Volta e meia penso nesta questão da percepção da violência, e foi caso disso agora ao ver a brutalidade policial em França. Polícias aos magotes, equipados com armaduras mais grossas que as paredes de muitas casas portuguesas, e com bastões que doem quase tanto como pagar a renda, andam pelas ruas a perseguir e espancar civis, incluindo jornalistas. Não que os jornalistas tenham mais direito que os outros a não levar açoites de força da polícia, mas – sei lá eu – achava que o jornalismo era uma instituição democrática relativamente importante, e que não era suposto a polícia bater em quem está a gritar (ler com sotaque francês): “Press! Press!”. Devo ser eu que percebo pouco da poda.

Ainda mal tinha tido tempo para pensar em como tais imagens dariam um grande alarido na comunicação social, e mesmo entre uma muito maior fatia da população do que o que está a acontecer, caso viessem do Irão, Rússia ou China, já estavam os relativizadores em acção. Ora, ficámos logo a saber que, para eles, é absurdo comparar a violência policial francesa com, por exemplo, um dos outros países referidos porque nesses há detidos que desaparecem para sempre. Ou seja, como há países piores, não podemos achar minimamente vergonhoso que um país da União Europeia use a violência policial para calar quem luta pelos seus direitos (sim, sei que é estranho para alguns, mas a reforma é um direito e não é para se iniciada com tal idade que já nem conseguimos dobrar os joelhos sem nos virem as lágrimas aos olhos).

Agora pensemos na manifestação Casa Para Viver, a acontecer em Portugal já neste próximo dia 1 de Abril. Prevê-se que uns poucos (quem sabe, muitos) milhares de pessoas estarão nas ruas a lutar pelo seu direito à habitação. Mas se calhar é melhor avisá-las de antemão, que caso a polícia lhe comece a tentar partir costelas ou rótulas, à base de cacetada, não têm por onde se queixar por ser pior noutros países. Aliás, enquanto levam porrada, em vez de gritarem para a polícia parar, mais vale darem só graças a Deus por não estarem no Irão. “Ai, senhor polícia, já me vazou um olho e partiu três costelas, mas realmente ainda bem que isto não é Teerão, por isso, pode continuar”.

Acho uma graça imensa aos relativizadores da violência. São quem acha que é chato passar fome por causa do capitalismo, mas não tão violento como partir a montra de um banco durante um protesto. São quem acha que é chato ser negro e morrer asfixiado debaixo de um joelho de um polícia, mas também não se pode agora começar a atirar pedras a carros blindados da polícia por isso ser incomparavelmente mais selvagem. São quem acha que ser forçado a trabalhar mais dois anos na vida é capaz de ser um pequeno incómodo, mas tal não é nada, comparado com a tragédia que é ver um caixote do lixo a arder. São quem nos faz ter a certeza, de que violência no cu dos outros é refresco.

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