Violência doméstica: um produto capitalizável, como outro qualquer
Houve muito dinheiro gerado ontem à conta da normalização de comportamentos abusivos numa relação, e vai continuar a haver. Mas se calhar convém pôr as coisas em perspectiva. Será que há limites para o que é capitalizável? Será que é minimamente decente capitalizar a violência doméstica? À partida, não. Portanto, perguntamos. Vale tudo pelo lucro?
Não é disparatado começar esta crónica dizendo que já correu, corre e correrá, muita tinta sobre o belo espectáculo que a TVI tem proporcionado ao país. Isto, pese embora a expressão que evoca o uso da tinta na escrita estar em desuso, por inevitável substituição tecnológica, ao contrário do machismo. É que este, não sendo propriamente recomendável, está bem vivo e parece difícil que saia de moda.
Não que tanta gente – sendo quase toda esta gente mulher, importante constatar o óbvio neste caso – não lute todos os dias para o destruir. Mas se o machismo e a violência de género, ainda rendem bastante a vários bolsos, será que faz sentido lutar contra ele de forma séria, ou pode só fingir-se que sim enquanto se lucra com ele? Se respondeu a opção B), acertou.
Muitos somos os que acompanhámos o que se passou por estes dias no Big Brother Famosos, quer vejamos, ou não, o programa. Sobre o sucedido em si, as relações abusivas ou a violência doméstica, já milhentas pessoas muito mais qualificadas do que eu falaram. Gostava só de mandar os meus 5 cêntimos para a fonte das opiniões sem fundo, a propósito do capitalizar do tema por parte da Cristina Ferreira e da TVI.
Após revolta social, denúncias feitas por psicólogas ou até a queixa da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género no Ministério Público, boa parte da sociedade, toda garimpeira, achou que o concorrente em causa fosse imediatamente expulso, por ser o mínimo ético e moral que a estação deveria fazer. Bem, se calhar até o podia ter feito antes de chegar a este ponto, mas o peixinho estava a render tão bem que valia a pena deixá-lo na brasa ao máximo enquanto se passava pano nas relações abusivas em horário nobre.
Ora, esta tal parte da sociedade estava errada. É que – na verdade já se estava a ver esta a vir de longe – o que a Rainha Tininha e a TVI decidiram fazer foi aproveitar ainda mais as audiências e – ainda melhor – as chamadas de valor acrescentado. Belas horas de entretenimento – como a própria diz “a televisão serve para entreter, não para educar e instruir” – onde fez sentido um dos patrocinadores ser o Fairy, visto que se andou para ali a lavar violência doméstica como quem a lava a loiça do jantar.
Nisto, suponho que milhares de chamadas de valor acrescentado tenham servido para expulsar o Bruno de Carvalho da casa. Querem que faça um desenho sobre o sentido ético de embolsar mais uma boa maquia com isto, ou estão bem assim?
Agora, poderíamos também ser picuinhas e dizer que é ligeiramente grave que, no meio de todo este adorável e trágico circo, a Cristina Ferreira ainda conseguisse dizer que o seu dever era ser imparcial, ou que “há coisas que só o amor resolve”. Não é como se houvesse dezenas de milhares de vítimas de violência doméstica em Portugal todos os anos, certo?
Houve muito dinheiro gerado ontem à conta da normalização de comportamentos abusivos numa relação, e vai continuar a haver.
Mas se calhar convém pôr as coisas em perspectiva. Será que há limites para o que é capitalizável? Será que é minimamente decente capitalizar a violência doméstica? À partida, não. Portanto, perguntamos. Vale tudo pelo lucro? Para a TVI, Cristina Ferreira e Goucha, sim.
Reparem, afinal de contas, é a estação de televisão que teve anos a Suzana Garcia a dizer alarvidades racistas, o Quintino Aires a atacar a comunidade cigana ou a dizer que "75% das pessoas que consomem cannabis envolvem-se sexualmente com pessoas do mesmo sexo", que sempre adorou levar lá a Facharrita deste que esta abraçou o fascismo, que adora passar pano no outro que fica tão fofinho de coelha na mão, ou até que entrevista alegremente um neonazi condenado.
Por isso tudo e muito mais, revoltados é normal que fiquemos, mas surpreendidos não podemos estar.