Somos nós, não são os outros! – conversas ao espelho
Pergunto-me como seria se, por um instante que fosse, abandonássemos as resistências que nos apatizam, e nos colocássemos no centro de todas as soluções. Os questionamentos são tão individuais quanto as respostas.
Aquelas palavras desassossegaram-me os pensamentos durante mais tempo do que gostaria. Recordo-as assim: “Começa por aceitar que és responsável por tudo o que vives”.
Lembro-me de contestar e resistir. “Como assim? Magoam-me, definho de dor, incho de tanto chorar, e…a culpa é minha?”.
Estava nos primórdios das minhas multidisciplinares sessões de terapia e os sentimentos de culpa sobressaíam entre tormentas emocionais nunca enfrentadas. Não tinha tempo para parar, quanto mais para processar estados de alma.
Eu era assim em 2015, deixei de o ser no início de 2016, e algures entre esse “antes” e “depois”, libertei-me de culpas e passei a assumir responsabilidades.
Deixei de ter más e boas experiências, e comecei a aceitar tudo como aprendizagens. Rigorosamente tudo, por mais que as “dores de crescimento” sejam por vezes excruciantes.
Quando coloquei o foco em mim, comecei verdadeiramente a viver a minha história, a controlar a minha narrativa.
Não posso evitar que aconteça aquilo que não desejo, mas tenho sempre o poder de escolher como viver essa experiência. Ao mesmo tempo, aceito que nem sempre faço as melhores escolhas, mas sei que decido da melhor forma que consigo a cada momento. Isso dá-me paz e, acima de tudo, devolve-me humanidade, demasiadas vezes robotizada entre compromissos que supostamente não podem esperar, e expectativas de desempenho excepcional.
Escrevo sobre esta necessidade de responsabilização individual porque acredito que sem ela jamais conseguiremos exercer a nossa força colectiva. Também o faço consciente de que é mais cómodo apontarmos os dedos aos outros e, a cada má notícia, afirmarmos que “a humanidade está perdida” e que “estamos cercados de ódio”, em vez de cada um de nós reconhecer que é indissociável dessa deriva.
Pergunto-me como seria se, por um instante que fosse, abandonássemos as resistências que nos apatizam, e nos colocássemos no centro de todas as soluções. O que faríamos para trazer mais humanidade e amor às nossas vidas? O que não poderíamos deixar de fazer? O que estaria exclusivamente dependente de nós?
Os questionamentos são tão individuais quanto as respostas.
Desaprender a “desvalorização do negro”
Eu comecei por me olhar ao espelho. Livre de distracções, revoltei-me com o peso da invisibilidade e do silenciamento. Percebi o meu encolhimento a partir de opressões internalizadas, dores não choradas, traumas por curar.
Sem me dar conta, o meu activismo começava aí: no reconhecimento da diminuição da minha inteireza, no confronto com a despertença racialmente inculcada.
Digo muitas vezes que as tomadas de consciência que fui fazendo nesse confronto com o espelho me fizeram sentir como imagino que uma pessoa se sinta ao descobrir que a família que sempre conheceu – e da qual sempre se sentiu excluída – afinal não partilha consigo qualquer ADN.
Ao ver reflectidos, com a minha imagem, factos da História que me foram sonegados, nomeadamente sobre a Resistência à Escravatura, os Reinos Africanos, as Lutas de Libertação, os Heróis e Heroínas da Independência (e tanto mais), senti-me de tal forma enganada e manipulada que quis perceber as raízes de tamanha mentira.
Comecei a pesquisar, a ler, a ouvir, e, neste processo, conheci outras pessoas igualmente órfãs de explicações. Percebi que não estou sozinha, e de reconhecimento em reflexo, fui encontrando respostas que me têm permitido resgatar o poder pessoal que o racismo me retirou.
A obra As minhas estrelas negras, de Lilian Thuram, foi fundamental para essa viragem, tal como o foram as lições que encontrei no livro “Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola”, de Eugénia da Luz Silva Foster. Fico-me por esta: “A discriminação racial ocorre também pela invisibilidade, pelos silêncios e pelas ausências, quer nos textos literários, quer nas imagens, nas ilustrações, que ‘ensinam’ a desvalorização do negro”.
Hoje sei que foi isso que aprendi. Aliás, foi isso que aprendemos. Estou longe de ser a única a sabê-lo, mas sei também que ainda estamos muito longe do necessário reconhecimento colectivo.
Precisamos dele e, mais do que isso, temos de agir para desaprender – e desmantelar – esse “ensino da desvalorização do negro”. Encontrar a “humanidade perdida” passa por aí: reconhecer o poder que cada um de nós tem para a encontrar e curar. Porque a humanidade somos nós, não são os outros. Tenhamos coragem para confrontar o espelho!
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.