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Receita italiana

Esta receita é especificamente italiana, mas conta com ingredientes externos, do espeto de euros forte para uma economia desfeita ao euro-liberalismo, com os seus sabores a austeridade, liberalização e privatização, que ademais lhe conferem uma dimensão cosmopolita irresistível.

Crónica 74
29 Setembro 2022

Tendo como pano de fundo as eleições italianas, partilho com os leitores do Setenta e Quatro uma versão detalhada de uma receita italiana que apresentei no Ladrões de Bicicletas, um blogue com um nome de um filme italiano sobre escolhas trágicas, como as que ainda enfrentam tantos trabalhadores.

Coloquem uma boa economia italiana num espeto de euros forte e deixem estagnar durante mais de duas décadas. Entretanto, pincelem com uma esquerda 100% euro-liberal e favorável à NATO.

Quando estiver no ponto, cortem e adicionem, alternadamente, doses de reformas neoliberais, realizadas por governos ditos tecnocráticos comandados pela UE, e governos da direita dura. Não se esqueçam de ir polvilhando com desesperança feita de fim da história e de populismo inconsequente.

No final, adicionem três pitadas de soberanismo de esquerda, dividido num cemitério de nomes, que às vezes confunde os que tentam a receita pela primeira vez: União Popular, Italexit e Itália Soberana e Popular. Assim, garante-se um sabor apurado: não se entra no parlamento, onde é necessário ter mais de 3% (somados estes três movimentos obtiveram 4,4% e poderiam ter tido mais, já que a convergência tende a ser mais do que a soma das partes).

Como previu Thomas Fazi, um economista político soberanista e que tem escrito sobre as melhores confeções da receita: “100% dos lugares no parlamento pertencerão à UE [“sistema imperial de que a Itália é um apêndice”] e ao sistema económico estagnado que primeiramente causa esta confusão”.

No fim, têm um prato neofascista ou pós-fascista, a designação depende das regiões.

Esta receita é especificamente italiana, mas conta, como se viu, com ingredientes externos, do espeto de euros forte para uma economia desfeita ao euro-liberalismo, com os seus sabores a austeridade, liberalização e privatização, que ademais lhe conferem uma dimensão cosmopolita irresistível.

Esta receita é uma evolução na continuidade de uma tradição italiana. Uma das referências gastronómicas comuns a Chega e Iniciativa Liberal, partidos de um país que esta a adaptar a receita, já elogiava de fora o prato fascista original. De facto, isto era o que o economista político Ludwig von Mises tinha a dizer no livro Liberalismo, publicado em 1927: “Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até ao momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história”.

É claro que a seguir Mises tenta colocar água no prato a ferver, dado o sabor demasiado forte para o palato austríaco dos anos vinte: “Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal.”

Sim, sabemos como tantos economistas políticos liberais, dentro e fora da Itália, gostaram e gostam de várias versões de uma receita que tem circulado internacionalmente, chegando ao fascismo, necessariamente capitalista, com toques latino-americanos, de Pinochet a Bolsonaro.

Como disse, logo em 1935, um dos mais consistentes críticos da receita fascista chamado Palmiro Togliatti, em Lições sobre o Fascismo, partindo da sua mais geral definição – “ditadura aberta, não camuflada, das camadas mais reacionárias, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro”: “Não devemos crer que o que é verdadeiro para a Itália deva ser verdadeiro, deva convir para todos os outros países. O fascismo pode ter formas diversas em diferentes países”.

A receita antifascista, essa, foi criada pelo que Togliatti haveria de designar por “democracia progressiva”, uma democracia, fundada numa Constituição, aprovada em 1947, centrada na soberania popular, e nos instrumentos de política económica que lhe dão densidade material, nos valores do trabalho com direitos, no pleno emprego, apostada em entrar nos espaços onde se cria tudo o que tem valor.

Sem espetos de euros, sem euro-liberalismo.

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