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Os Viciados na Escravatura

Com Odemira fomos lembrados que a escravatura não acabou em Portugal. Os direitos que protegem os trabalhadores não chegam a quem trabalha na clandestinidade, sob ameaça de deportação, sem acesso a advogados ou a informação sobre as leis portuguesas e os seus direitos.

Crónica 74
5 Janeiro 2023

Portugal orgulha-se (mal) de ser o primeiro país a abolir a escravatura. É enganador no mínimo. Apesar do tráfico de escravos ter sido abolido em 1761, a escravatura em si só foi abolida mais de 100 anos depois. A última escrava em Portugal morreu nos anos 30 do século XX, já livre mas na pobreza. Na prática, os trabalhos forçados continuaram em Portugal nas colónias legalmente até 1962 e depois encapotados até ao 25 de Abril e a independência destes países e povos.

Com Odemira fomos lembrados que a escravatura não acabou em Portugal. Os direitos que protegem os trabalhadores - ainda que erodidos - não chegam a quem trabalha na clandestinidade, sob ameaça de deportação, sem acesso a advogados ou a informação sobre as leis portuguesas e os seus direitos. De lembrar que na altura foi denunciado que uns seis mil trabalhadores agrícolas, imigrantes, não teriam condições de habitação dignas. Seis mil.

Em certos sectores mediáticos a exploração de imigrantes sul-asiáticos, as condições miseráveis em que dormiam mereceu menos choque que o uso temporário do Eco Resort ZMAR para os alojar. Talvez porque seja mais alienígena e assustador às camadas superiores da sociedade portuguesa a aparência de violação do direito de propriedade que a violação dos direitos humanos de trabalhadores imigrantes. Teria feito diferença se fossem portugueses?

É inteiramente possível que os donos de algumas das explorações (passe a expressão) agrícolas não tivessem noção das condições em que os “aliciadores” intermediários tinham os trabalhadores que colhiam os seus frutos silvestres. Esta ignorância, conveniente, é apenas possível por causa do conluio da nossa lei laboral, raramente aplicada e com meios escassos para ser aplicada.

Se o patrão final - juntamente com os intermediários - fosse responsabilizado por esta escravatura moderna, teria aí um forte incentivo para ele próprio fiscalizar as condições em que os seus trabalhadores vivem ou quanto estão a receber realmente. A CAP apressou-se a culpar o Estado e os intermediários para que os donos das explorações agrícolas passassem incólumes.

Foi preciso este escândalo para finalmente se aprovar um reforço de meios à ACT e ao “combate ao tráfico humano”, algo que à esquerda se anda a pedir há pelo menos 6 anos.

Mas como perceber que um horror, universalmente reconhecido como um horror hoje, como a escravatura passa despercebido? 

Primeiro é preciso perceber que estes trabalhadores estavam isolados e sem poder recorrer à lei. Foram ensinados a não recorrer à lei pelos insultos, tortura e violência que a GNR exercia recorrentemente sobre eles.

Depois, perceber as camadas de distância que nos permitem ignorar o horror. 

O consumidor final não tem um autocolante na embalagem a dizer “estas amoras foram colhidas com trabalho escravo”. O hipermercado não pergunta aos fornecedores se houve trabalho escravo na recolha das amoras. Se acreditarmos nos patrões, eles não sabiam que era trabalho escravo, culparam os aliciadores. Ninguém se queixou à polícia. Foi preciso um surto de COVID-19 para se descobrir o caso e as condições péssimas em que viviam.

Eu acho estranho que o argumento liberal seja “se nós soubermos que há trabalho escravo, não compramos os produtos e o trabalho escravo desaparece” e não “não deve haver a opção de escolher produtos de trabalho escravo no supermercado”. Até porque muitas vezes não sabemos que estamos a consumir produtos de trabalho escravo.

A verdade é que somos, na Europa, na América do Norte, na Austrália, viciados em trabalho escravo. Os nossos telemóveis, essenciais ao nosso estilo de vida, contêm metais raros minados com trabalho escravo e infantil. As nossas roupas “baratas”, são baratas porque são feitas em condições horríveis em sweatshops no Brasil e Sudeste Asiático. O chocolate que comemos muitas vezes é colhido por crianças escravas, e depois a sua origem é mascarada em mercados de “commodities”.

Os governos sabem isto. Os jornais mostram isto. Eu e tu, caro leitor, sabemos isto. A nossa vida seria mais cara sem o trabalho não remunerado ou mal remunerado de escravos, alguns deles crianças. Mas o mais ridículo é quando vemos o quanto mais caro seria. Um estudo em 2019 mostrou que um pequeno aumento no custo do cacau poderia eliminar completamente o trabalho escravo infantil. Uma barra de chocolate em vez de custar $1.79 passaria a custar $1.84.

E aí temos de nos perguntar: estaríamos dispostos a pagar cinco cêntimos para eliminar o trabalho escravo e o trabalho escravo infantil do que consumimos? Cinquenta cêntimos? E se custasse o dobro? Que preço somos capazes de pôr na garantia de que eliminámos a escravatura?

Não chega a escolha individual. Não podemos ser todos responsáveis individualmente por fiscalizar cadeias de produção que atravessam meio mundo. Por incrível que pareça, podemos pegar nos nossos impostos e obrigar o governo a fazer esse trabalho por nós.

Podemos e devemos pedir mais reforços de meios humanos, materiais e poderes para a ACT. Podemos e devemos pedir mais exigência nas importações. Podemos responsabilizar financeiramente aqueles que em qualquer ponto da cadeia de produção e distribuição beneficiam do trabalho escravo.

E no limite, proibir a importação de produtos de países onde haja conhecidas violações de direitos laborais, trabalho escravo, trabalho infantil ou de países e empresas que não permitam a fiscalização das condições de trabalho dos produtos e matérias que pretendem exportar.

Ou, pronto, se os meios de produção forem dos próprios trabalhadores, não é como se eles se fossem explorar a si mesmos, não é?

No fim cabe a mim e a ti, caro leitor, decidir de que lado queremos estar no combate à escravatura. E perceber que, além de hábitos de consumo, a escravatura só se acaba como sempre se acabou: pela via política. E esperemos desta vez responsabilizando quem dela beneficia e não ressarcindo os esclavagistas pelos prejuízos sofridos. Mesmo que isso resulte em chocolates um pouco mais caros.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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