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Os três caminhos para a Saúde

Quanto mais o SNS estiver dependente do privado, maior o poder negocial dos grupos privados de saúde e maiores os preços que este poderão exigir. O falhanço do SNS passaria a ser o lucro dos grupos privados, que passariam a ter um fluxo de clientes subsidiados pelo Estado.

Crónica 74
10 Dezembro 2021

Uma das discussões mais centrais na política atual é à volta da saúde. Certamente por estarmos ainda numa pandemia sem fim certo, que esticou um SNS sub-investido ao ponto de rotura. Mas também pela introdução de forças políticas que defendem abertamente a privatização da saúde ou a introdução de lógicas de mercado na mesma.

Estas lógicas já tinham sido introduzidas previamente com PPPs na gestão de hospitais e outsourcing de profissionais de saúde (mal pagos e precários, claro). A Iniciativa Liberal tornou-se a grande defensora dos grupos de saúde privados e das lógicas de concorrência na saúde, mas partidos como o CDS já tinham sugerido que o Estado devia pagar idas ao privado para combater as listas de espera.

Ideias como esta podem até partir de uma lógica moral. Se o SNS não tem capacidade mas tem o dever de garantir o direito à saúde e essa capacidade existe no privado, então o moral não é subcontratar o privado para suprir essas necessidades?

O problema é o incentivo financeiro que agora está criado para que o SNS falhe. Afinal, o falhanço do SNS passaria a ser o lucro dos grupos privados, que passariam a ter um fluxo de clientes subsidiados pelo Estado. Uma renda garantida. E quanto mais o SNS estiver dependente do privado, maior o poder negocial dos grupos privados de saúde e maiores os preços que este poderão exigir. Não é difícil de antever uma espiral de custos cada vez maiores para o orçamento da saúde a ser canalizados para o privado enquanto que investimentos necessários tardam para o sector público. Isto seria insustentável.

Mas esta preocupação com as listas de espera é genuína e partilhada por muitos. Faço então, o mapa dos três caminhos para a Saúde em Portugal.

O primeiro é este caminho liberal, em que o privado supre as lacunas do público. Obviamente isto resulta num aumento dos custos, tanto a curto como a longo prazo, à medida que milhares (milhões?) de consultas adicionais passam a ser cobradas do orçamento do SNS. Num contexto de outras políticas liberais de cortes nos impostos e outras fontes de rendimento para a saúde pública este bolo cada vez mais finito impede o investimento no sector público. Ao mesmo tempo em que os rendimentos do privado aumentam, estes podem modernizar e o público terá dificuldades em competir em termos salariais com o mesmo.

O segundo caminho seria o de investimento a sério a longo prazo no SNS, no sector público. As questões que dividiram a esquerda na negociação do Orçamento de Estado de 2022, da exclusividade, das carreiras, da autonomia de contratação, do reforço dos incentivos salariais aos profissionais de saúde teriam de ser postas na mesa. Mas também o investimento em modernização dos equipamentos e até compra de equipamentos.

Hospitais como o de Beja ou o Centro Hospitalar de Setúbal gastam o equivalente num ano ou dois a contratar ressonâncias magnéticas ao privado o mesmo que custaria comprar uma máquina de ressonância magnética e operá-la. Quantos profissionais de saúde se poderiam contratar com o gasto em horas extraordinárias excessivas impostas aos trabalhadores de saúde do SNS? São este tipo de investimentos a longo prazo que não só reduziriam custos como listas de espera. O problema, claro, é que muitos destes investimentos demoram a sentir-se e teríamos listas de espera a curto prazo.

O terceiro caminho seria fazer os dois ao mesmo tempo, ou até condicionalmente. Aceita-se recorrer ao privado na condição de ser temporário e de se estar a fazer o investimento necessário para colmatar essa necessidade no público no futuro. Ou seja, ao mesmo tempo em que se investe no público, garantir que ninguém é prejudicado por listas de espera. Estranhamente, nunca vi um liberal aceitar este caminho. Tem um problema óbvio: combina o custo das opções anteriores no curto-prazo, mesmo resolvendo o problema do custo a longo-prazo ao contrário da opção um, que promete custos cada vez maiores. Os mecanismos para esta estratégia teriam de passar por aumentos de impostos, aumento de dívida ou redistribuição de outros sectores.

No fim, não há uma solução mágica que reduza custos a longo prazo e listas de espera a curto-prazo. Todas elas implicam um investimento maior na saúde, seja em investimento estrutural no SNS ou despesa conjuntural em outsourcing das funções do SNS. A terceira resolve as listas de espera a curto-prazo e a despesa crescente a longo prazo, mas necessita de um aumento espetacular no Orçamento de Estado e, mais importante, que este aumento orçamentado seja de facto… executado e não fique só no papel.

Resumindo,

  1. Outsourcing ao privado para suprir as necessidades do público sem investir no público reduz listas de espera, mas trata o sintoma e não a causa, criando uma dependência permanente e um custo cada vez maior.
  2. Investimento no público não resolve as listas de espera a curto prazo mas reduz no futuro, além de levar a uma gestão mais racional dos recursos que permite, entre outras coisas, recompensar melhor os profissionais de saúde.
  3. Investimento simultâneo no público enquanto se faz outsourcing temporário ao privado, trata tanto o sintoma quanto a causa, mas a um custo maior que as opções anteriores.

Parece-me que da esquerda à direita a opção preferida devia ser a 3ª, mas à falta de acordo sobre como financiar esse aumento enorme, a 2ª é a única racional. De nada nos serve tratar o sintoma e não a causa.

 

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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