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Os salários de Frei Tomás

O Governo rejeitou todas as propostas que tinham por objetivo promover o crescimento dos salários no setor privado ou a partilha do impacto da inflação com as grandes empresas. Vamos assistir em 2022 à maior transferência de rendimento do trabalho para o capital desde, pelo menos, o início do século.

Crónica 74
9 Junho 2022

A principal escolha política do Orçamento do Estado para 2022 foi a que se prende com a resposta à inflação e à erosão do poder de compra dos salários. A escolha consiste em saber que setores sociais, e em que medida, irão suportar o impacto de uma inflação essencialmente determinada pelos preços da energia.

A resposta do Governo neste orçamento não podia ser mais clara. Todo o choque será suportado pelos rendimentos do trabalho e das pensões. A política de rendimentos do governo, assentando simultaneamente numa previsão de crescimento médio dos salários nominais de 3,2% e num crescimento do PIB nominal por trabalhador de 7,5%, significa que os salários crescerão menos 4,3% (a diferença entre aqueles dois números) do que seria necessário para que a compensação de trabalho mantivesse o seu peso na riqueza total produzida pelo país. Representa um corte real, que será quase do tamanho da inflação. E acontecerá apesar de um aumento significativo da produtividade.

Ao mesmo tempo, o Governo rejeitou (e tem rejeitado sistematicamente) todas as propostas que tinham por objetivo promover uma dinâmica de crescimento dos salários no setor privado, bem como todas as propostas no sentido de que as grandes empresas partilhassem este impacto da inflação. Vamos, por isso, assistir em 2022 à maior transferência de rendimento do trabalho para o capital desde, pelo menos, o início do século. Maior do que em qualquer dos anos da Troika. Uma escolha que envia todos os sinais errados. E com consequências muito negativas para quem trabalha.

O argumentário para esta escolha é, no mínimo, insólito. Pouco interessam as análises feitas por instituições insuspeitas como o BCE. O Governo diz que a atualização dos salários teria efeitos inflacionistas. Na realidade, o aumento dos salários nominais que assegura um contributo neutro, do ponto vista macroeconómico, para a evolução dos preços é a sua atualização em função da variação conjugada da inflação e da produtividade. Ficaremos a léguas, ou seja, a 4,3%, dessa atualização. O que o Governo está a fazer é proteger os lucros das empresas e a usar os salários de quem trabalha para compensar o aumento dos preços da energia, operando dessa forma uma brutal transferência de rendimento.

O segundo argumento é do domínio do inacreditável. A inflação é provisória, logo o corte também é provisório. Aqui estamos no terreno da absoluta ignorância ou má fé. Os aumentos em 2023 serão feitos em cima dos valores de 2022. Assim sendo, a não ser que, em 2023, os preços recuem 4,3% ou o Governo compense em 2023 o corte salarial de 2022, aumentando os salários 4,3% muito acima da inflação e produtividade, o que não parece provável, o que está em causa é, ao contrário do que é dito, um corte para todo o sempre.

O terceiro argumento é o de que o Governo não fixa salários no privado. É uma meia verdade, que deveria fazer corar de vergonha quem ainda se queira reivindicar da tradição da social-democracia. Não, o Estado não decide os salários no setor privado. Mas define os salários no público que lhes servem de referência. Obviamente, aumentar os salários nominais da função pública em 0,9% não ajuda, para usar um eufemismo, a uma progressão no conjunto da economia do salário médio nominal no valor de 7,5% como seria necessário para manter em 2022 o peso da retribuição do trabalho no PIB no seu nível de 2021, um peso, já então, inferior ao observado na zona euro. E o Estado define sobretudo a legislação do trabalho no quadro da qual esses salários são definidos.

Foi escolha do PS manter a legislação laboral de Passos Coelho e da Troika, incluindo a caducidade das convenções coletivas de trabalho, que tem vindo a destruir a contratação coletiva em Portugal e, consequentemente, a limitar a capacidade reivindicativa dos trabalhadores.

É por isso que é absolutamente indecoroso o “apelo” de António Costa para que as empresas aumentem os salários dos seus trabalhadores em 20% durante os próximos 4 anos. Porque é injusto? Claro que não. Só peca por tardio. Mas é completamente inconsequente e contraditório com todas as escolhas políticas que o Primeiro-Ministro está a fazer neste preciso instante. António Costa pede às empresas que façam aquilo que o seu Governo se recusou a fazer e não toma nenhuma medida para que essa intenção tenha alguma tração.

O “apelo” é propaganda pura e dura com o objetivo de branquear as escolhas políticas feitas neste orçamento e antes dele, e as suas consequências em todos os salários, nos setores público e privado. O Primeiro-Ministro que prometeu em campanha fazer convergir a parte do trabalho no rendimento nacional com a média europeia, vai fazer rigorosamente o contrário. O resto são apelos. Bem prega frei Tomás, mas os patrões não farão o que ele também não faz.

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