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O tapete que revela o maior crime de Portugal

A jornalista Catarina Demony investigou o passado da sua família e o resultado está no documentário Debaixo do Tapete. Leva-nos ao encontro dos Matoso de Andrade e Câmara, “dos maiores comerciantes de pessoas escravizadas em Angola entre o século XVIII e XIX”. A história da sua família está “longe de ser única” em Portugal”.

Crónica 74
13 Abril 2023

O que fazer perante um crime? Ignorar? Ocultar? Denunciar? Confrontar? Após anos de digestão, a jornalista Catarina Demony decidiu investigar o que descobriu aos 18 anos: um passado familiar perturbadoramente esclavagista.

O resultado está no documentário Debaixo do Tapete, que nos leva ao encontro dos Matoso de Andrade e Câmara, seus antepassados e “dos maiores comerciantes de pessoas escravizadas em Angola entre o século XVIII e XIX”.

A história estreou-se no grande ecrã do Cinema Ideal, em Lisboa, com casa cheia, e um reconhecimento que Portugal continua por fazer: a ligação directa entre o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, a violência, a segregação, e o racismo.

Sem consentir mais apagamentos, Catarina nota que a história da sua família está “longe de ser única” no país, sendo comum à de tantas outras que fizeram “dinheiro à custa de seres humanos”.

Mas, enquanto a jornalista admite que herdou os privilégios de que hoje usufrui, outros beneficiários do legado esclavagista português permanecem em silêncio.

Essa negação ou alienação em relação ao passado criminoso, expressa no documentário, surge muitas vezes acompanhada de um pensamento desresponsabilizante, que se pode resumir numa frase: “Não é culpa minha aquilo que os meus antepassados fizeram”.

Como se o tivesse de ser para existir reconhecimento! Como se ocorresse a alguém, por exemplo, rejeitar uma herança familiar de milhões de euros sob a alegação de que não trabalhou para a mesma. Ou será que a argumentação apenas se aplica para descartar responsabilidades e nunca para assumir privilégios?

Desempoeirar o passado, humanizar o currículo

Importa questionar e, mais do que isso, compreender como o passado continua a pesar sobre o presente, exercício que tem na Educação a principal ferramenta, conforme apontou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

“Podemos traçar uma linha recta desde a era da exploração colonial até às desigualdades sociais e económicas de hoje. As cicatrizes da Escravatura ainda são visíveis nas persistentes disparidades de riqueza, rendimentos, saúde, educação e oportunidades”, notou o responsável, no Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas, assinalado a 25 de Março.

Na mesma data, Guterres apelou aos Governos para introduzirem nos currículos escolares as causas, expressões e impactos actuais desse capítulo sangrento da História da Humanidade.

“O empreendimento maligno da Escravatura durou mais de 400 anos. Foi a maior migração forçada sancionada legalmente na história da Humanidade”, sublinhou o líder da ONU, lembrando que “milhões de crianças, mulheres e homens africanos foram sequestrados e traficados através do Atlântico, arrancados das suas famílias e terras natais”, com resultados catastróficos. “As suas comunidades foram dilaceradas, os seus corpos mercantilizados, a sua humanidade negada”, efeito que persiste até hoje, e que o documentário Debaixo do Tapete permite confrontar.

Ao dar nome a alguns dos protagonistas dessas atrocidades, e ao relacionar os seus crimes com a desumanização e racialização das relações no presente, a produção de Catarina Demony – com realização de Carlos Costa – traz alguma humanidade à discussão sobre a Escravatura.

E demonstra como, por vezes, basta sacudir o tapete para desempoeirar o passado.

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