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O que é que vai acontecer aos salários em 2023?

As famílias portuguesas vão continuar a perder rendimentos num país marcado por desigualdades vincadas. O governo escolheu imputar a maioria dos custos da crise aos trabalhadores e pensionistas ao mesmo tempo que dava uma série de benefícios fiscais às grandes empresas. António Costa fala de "contas certas", mas é difícil acreditar que a redução da dívida tenha impacto na forma como os mercados olham para a dívida pública. 

Crónica 74
12 Janeiro 2023

Depois de um ano de forte perda de poder de compra, há expectativa para saber como vão evoluir os salários em Portugal em 2023. Na mensagem de ano novo, António Costa reconheceu o problema da escalada dos preços e falou na importância de um “mercado de trabalho justo” alicerçado em “salários dignos”. Mas apesar do discurso do primeiro-ministro, nem o setor público nem o privado deverão ter aumentos que compensem a inflação do próximo ano, muito menos deste.

Para o setor público, compreende-se que o governo proponha aumentos mais expressivos para salários mais baixos. No entanto, a maioria dos funcionários públicos vai ser aumentada em 3,6%, abaixo da inflação esperada (as projeções variam consoante a instituição, mas são superiores a 5%). Ou seja, vão voltar a perder poder de compra em 2023, à semelhança do que aconteceu sistematicamente na última década: entre 2010 e 2021, os trabalhadores do Estado perderam quase 13% do seu poder de compra.

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Para o setor privado, o Acordo de Rendimentos assinado pelo governo e confederações patronais pressupunha aumentos salariais de 5,1% no próximo ano. Mas nem as grandes empresas da energia e do retalho, com lucros extraordinários à boleia da subida dos preços, se comprometem a fazê-lo. Mesmo assim, o governo aprovou uma série de benefícios fiscais que não dependem dos aumentos salariais, incluindo a possibilidade de dedução ad eternum dos prejuízos fiscais. Ou seja, primeiro beneficia-se as empresas... e depois logo se vê.

Embora o governo diga que o objetivo é aumentar o peso dos salários no PIB - o que implica que os salários cresçam acima da soma da inflação e da produtividade -, mesmo que os aumentos salariais atingissem os 5,1%, provavelmente não seria suficiente para o cumprir, visto que as principais estimativas apontam para que a soma da produtividade e da inflação no próximo ano seja superior.

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O que isto significa é que é bastante provável que o peso dos salários no PIB - isto é, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores - mantenha a tendência decrescente dos últimos vinte anos, apenas invertida ligeiramente durante o período da Geringonça. A redução do rendimento real da maioria das famílias ocorre num país que continua marcado por desigualdades vincadas, onde os CEOs das principais empresas recebem em média 32 vezes mais do que os trabalhadores que as integram. Os enormes salários da maioria dos gestores e administradores, sem qualquer relação convincente com o mérito ou a produtividade, cresceram acentuadamente na última década: o rácio médio entre estes vencimentos e o salário médio dos trabalhadores das empresas passou de 24:1 em 2010 para 32:1 em 2021.

Ao contrário do que nos diz a economia convencional, há evidência de que a desigualdade é um obstáculo ao desenvolvimento económico, como vem sendo reconhecido até por instituições internacionais como a OCDE. Além de ser socialmente injusta, a crescente desigualdade tem um efeito de compressão do consumo da maioria das pessoas ao mesmo tempo que promove a especulação financeira por parte dos mais ricos, com efeitos negativos para o conjunto da economia.

Em vez de combater estas desigualdades – promovendo aumentos dos salários e das pensões pelo menos em linha com a inflação, reforçando a progressividade fiscal, robustecendo a legislação laboral para dar mais poder negocial aos trabalhadores ou definindo leques salariais máximos para as empresas –, o governo escolheu imputar a maioria dos custos da crise aos trabalhadores e pensionistas. Houve essencialmente duas justificações que foram dadas para defender esta estratégia: o suposto risco de uma "espiral inflacionista" e a necessidade de manter contas certas. Mas nenhuma sobrevive ao confronto com os factos.

Por um lado, o risco de uma espiral salários-preços é manifestamente exagerado: além de a inflação ter origem na oferta e não na procura, o aumento dos salários pode ser acomodado por via da diminuição das margens de lucro e do crescimento da produtividade registado este ano. Um dos relatórios mais recentes do FMI reconhece que "os choques subjacentes [à inflação] estão a vir de fora do mercado de trabalho" e que a experiência histórica não nos dá motivos para pensar que uma espiral inflacionista está ao virar da esquina.

Por outro lado, o argumento das "contas certas" é pouco convincente: é difícil acreditar que uma redução do rácio da dívida de 130% do PIB para 120%/110% tenha um grande impacto na forma como os mercados avaliam a sustentabilidade da dívida portuguesa; na verdade, ao longo do ano, os juros da dívida já dispararam, fruto das decisões tomadas pelo BCE. A compressão dos salários reais é uma opção do governo e é assim que deve ser avaliada.

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