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O eterno resgate

Com a proposta da Comissão Europeia para as novas regras orçamentais, Comissão e Conselho Europeu vão ter um poder permanente colonial sobre as políticas, investimentos e reformas em cada país. Será uma troika sem o FMI. Merece a oposição de todas as forças políticas que defendem a democracia e o direito dos países a decidir o seu destino.

Crónica 74
11 Maio 2023

As regras que condicionaram a governação económica na União Europeia durante 25 anos estão em processo de revisão. Um processo que chega tarde para regras que nunca deviam ter existido. Durante um quarto de século, o pacto a que Romano Prodi chamou “estúpido” produziu consequências desastrosas na União como um conjunto e nas economias periféricas em particular.

O Conselho Orçamental Europeu foi uma das muitas instituições que criticou as regras, nomeadamente por prejudicarem o investimento e as políticas contracíclicas (políticas económicas de relançamento da economia em contexto de crise). O consenso não parou de crescer e juntou-se ao facto de cada vez mais países se encontrarem em incumprimento. As regras tinham de mudar porque tinham perdido toda a credibilidade.

Agora que foi apresentada a proposta da Comissão, a tentação é dizer que a montanha pariu um rato. Os critérios base ficam iguais, quase nada muda na proteção do investimento e o que muda é para pior e as regras que caem (até ver) são as que já não eram cumpridas. O caráter procíclico e de anti-investimento mantém-se, mesmo num contexto em que se pede aos países mais investimento na transição climática e digital.

No entanto, na realidade, estas regras são mais do que uma forma de mudar tudo para deixar tudo na mesma. Há mudanças muito substanciais na elaboração das políticas económicas nacionais. De acordo com a propaganda da Comissão, as alterações visam aumentar a flexibilidade e a “apropriação nacional” (“ownership”), que é jargão europês para o respeito pela soberania dos governos democraticamente eleitos e respetivos programas. De acordo com a realidade, o que se passa é rigorosamente o contrário.

A apresentação dos planos por parte dos governos passa a ser precedida de uma “trajetória técnica” para a despesa líquida (de gastos com juros e benefícios cíclicos ao desemprego) elaborada pela Comissão e à qual os governos têm de se conformar nos seus planos. Depois, segue-se a elaboração dos planos, formalmente pelos governos, na realidade em negociação com a Comissão, que, para lá de estabelecer uma série de reuniões “técnicas” de apoio para condiconar, terá o poder de aprovar o plano no fim, ou seja, o poder de impor o que bem entender. Depois disso, o Conselho também analisará o plano, podendo apresentar alterações e propostas de reformas e tendo também o poder de o aprovar.

Em resumo, Comissão e Conselho passam a deter, de forma permanente, um poder de tipo colonial sobre as políticas, investimentos e reformas que são implementados em cada país. E claro que a França vai continuar a ser a França e Portugal vai continuar a ser Portugal.

Durante a implementação dos planos, teremos novamente visitas dos técnicos da Comissão que poderão trazer também os colegas do Banco Central Europeu. Ou seja, passaremos a ter uma troika sem o Fundo Monetário Internacional e sem prazo de validade. As únicas instituições que, na proposta da Comissão, não têm de se pronunciar sobre os planos nacionais são os parlamentos nacionais, facto que é bem eloquente sobre o espírito democrático que percorre toda a proposta. Teremos um atentado permanente à soberania, à legitimidade democrática e, claro, à economia e Estado social.

O mais extraordinário na proposta é o nível de discricionariedade com que poderá operar a Comissão e o Conselho. Passamos de um modelo com regras rígidas, estúpidas e interpretadas com flexibilidade variável para um regime em que a Comissão passa a poder meter-se em todas as esferas das políticas públicas (incluindo as de competência nacional), podendo inclusive recompensar os bem-comportados com flexibilidade na trajetória de ajustamento e punir os resistentes com sanções que, adivinharam, ficaram mais fáceis de aplicar.

O que esta proposta merece é uma oposição frontal de todas as forças políticas que defendam, pelo menos, o respeito pelas democracias nacionais e pelo direito dos países a decidir o seu destino. Infelizmente, os sinais em Portugal não são promissores. O ministro das Finanças, Fernando Medina, temendo porventura que alguém ainda tivesse dúvidas, já esclareceu que, entretanto, vai continuar a aplicar as regras anteriores (é o único em toda a União) e que aceitará e aplicará quaisquer regras que venham das instituições. A Alemanha já veio dizer que quer regras mais apertadas. Já sabe que do governo português não virá oposição. É a submissão absoluta.

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