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Nivelar Por Baixo

A caricatura que a direita faz da esquerda é a de que não consegue que os pobres sejam ricos, preferindo que os ricos sejam pobres. É acusada de querer "nivelar por baixo", mas é a esquerda que quer tirar de quem tem mais ou a direita que quer preservar os privilégios que nega aos outros?

Crónica 74
8 Setembro 2022

Um chavão que ouço muito da direita é que a esquerda quer “nivelar por baixo”. A caricatura é que “A ESQUERDA” (ler com tom muito assustador, de preferência juntando um RADICAL ou EXTREMA aleatório à palavra, para assustar mesmo) como não consegue que os pobres sejam ricos, prefere que os ricos sejam pobres.

Vamos analisar isto aos olhos das políticas defendidas.

Em relação aos funcionários públicos, por exemplo, há muito que a direita se queixa da “injustiça” da diferença de tratamento entre os trabalhadores do privado e do público. Nomeadamente de no público terem um salário mínimo mais alto e menos horas semanais que o privado. Nivelar por cima seria subir o salário mínimo nacional e estender as 35 horas (ou menos) ao privado. O que propõem? Subir o público para as 40 horas. Nivelar por baixo, portanto.

Em relação ao salário mínimo, vejo a direita queixar-se que o salário médio está mais próximo do mínimo. É natural quando o salário mínimo sobe. Estão a queixar-se do salário médio ter baixado? Não. Estão a queixar-se do salário mínimo ter aumentado e dos médios (que não passaram magicamente a ganhar menos) não se sentirem superiores e distantes o suficiente dos mínimos. Isso é nivelar por cima?

A esquerda quer aumentar as bolsas, residências estudantis e abolir as propinas no ensino superior. Isso é nivelar por cima: dar a todos, independentemente dos seus meios, acesso livre ao ensino superior, que obviamente beneficia a sociedade como um todo. A direita é contra abolir propinas e até meteu o dedo do pé na piscina para ver a temperatura em relação a implementar empréstimos estudantis. Isso é nivelar por cima ou por baixo? Querer dar a acesso a cultura (a ver e a fazer) a mais pessoas para mim é nivelar por cima. Deixar a cultura ao mercado, criar barreiras burocráticas e financeiras que tendem a excluir mais  apenas é nivelar por baixo.

Vamos imaginar que a esquerda queria nacionalizar todas as escolas privadas e todos os hospitais privados. Sei que nem o LIVRE, nem o PS, nem a CDU, nem o BE propõem nada que se pareça -  no entanto não li os programas do MAS, do PCTP-MRPP nem… o POUS ainda existe? - ao contrário das imaginações férteis (para algumas coisas) da direita, é isto que acham que a esquerda quer fazer, mas nunca o vi em nenhum programa eleitoral.

Subitamente teríamos toda a sociedade a usar os mesmos hospitais e escolas em vez de estarem segregados por classe. As pessoas com mais poder (ricos, políticos) na sociedade, que agora partilhariam estes espaços com o resto da sociedade, teriam todo o incentivo para que as escolas públicas e hospitais fossem da mais alta qualidade. Portanto o mais pobre português tinha acesso agora a um hospital digno de receber um Presidente ou CEO. Isso é nivelar por baixo ou por cima? 

Voltando à realidade dos programas da esquerda: querer subir salários de médicos e professores do público é nivelar por baixo? Querer investir mais no SNS é nivelar por baixo? Ou por cima?

Quando se propõe promover a democratização da economia e das empresas, seja pelo fomento de cooperativas, da cogestão ou do aumento de sindicalização é nivelar por baixo? Dar mais poder aos trabalhadores é nivelar por baixo? Dar uma fatia maior dos lucros aos trabalhadores é nivelar por baixo? Dar um VOTO (dito com tom muito assustador, talvez com um “extremo” ou “radical” aleatório adicionado para ser mesmo assustador) ao trabalhador no destino da empresa é nivelar por baixo? Ou por cima?

Esta obsessão com o “nivelar por baixo” é que a visão do mundo da direita é profundamente hierárquica. Se não entre “raças”, “géneros”, “religiões”, “culturas superiores”, então pelo menos entre carteiras (as direitas entre si diferem sobre em que hierarquias acreditam ser boas, justas ou inevitáveis, mas a da carteira é comum a todas as direitas). Deste ponto de vista, acham que dar mais poder, aumentar salários ou melhorar o estado social a trabalhadores é nivelar por baixo. 

Porque se os mais ricos não têm os seus colégios privados segregados onde meter os filhos, se não podem passar à frente na fila com o hospital privado, se não podem mandar nos seus trabalhadores à vontade, não podem mostrar que ganham muito mais… como podem mostrar que são melhores que eles? Pior, como é que a classe média pode mostrar que não é pobre, se os pobres têm escolas ricas, hospitais ricos, trabalhos que lhes permitam partilhar da riqueza que criam?

Um exemplo final para demonstrar o que quero dizer: quando a esquerda estava isolada a defender o direito à igualdade no casamento para pessoas LGBT+ (excelente serviço de streaming) parece-me um claro exemplo de nivelar por cima. Existia um direito a que um grupo marginalizado não tinha direito e agora passou a ter. Mas para a direita conservadora isto era nivelar por baixo: achavam que os seus casamentos valiam menos agora, por casais do mesmo género poderem casar também.

Portanto, quando ouvirem “nivelar por baixo”, já sabem: é a esquerda que quer tirar de quem tem mais ou a direita que quer preservar os privilégios que nega aos outros?

Para mim, quem quer nivelar por cima é quem quer dar a todos a mesma dignidade e direitos que as pessoas mais poderosas e ricas do país têm.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

 

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