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Não olhes para cima

“Não olhes para cima” não é só sobre um cometa metáfora. Um cometáfora. É sobre uma classe dominante escondida à vista de todos. Por trás de cada discurso malthusiano sobre haver “pessoas a mais”, há a realidade que os 10% mais ricos do mundo são responsáveis por 50% das emissões. 

Crónica 74
11 Fevereiro 2022

Quando o Don’t Look Up, o filme Netflix do veterano da comédia Adam McKay e Dave Sirota, antigo escritor de discursos de Bernie Sanders, saiu, as reações não podiam ter sido mais polarizadas. Havia quem achasse uma sátira demasiado precisa da incapacidade política de lidar com a emergência climática, dos incentivos perversos do capitalismo que impedem as sociedades modernas de lidar eficazmente com a emergência climática mas também de um ecosistema mediático de infotainment e celebridade que não só não informa como não prioriza o que devia ser a maior história de notícias do mundo: o fim do mundo como o conhecemos. 

Por outro lado foi criticado por ser tão subtil como um martelo pneumático (e ainda assim demasiado subtil para alguns), não “apresentar soluções”, ser cínico, pessimista e em geral deprimente para uma comédia.

O título é uma referência ao negacionismo voluntário. Tal como na emergência climática temos toda a informação necessária disponível para saber o problema, as suas causas antropogénicas, as suas consequências e como se pode combater. Temos um prazo, 2030, para reduzir brutalmente as nossas emissões (especialmente os países mais ricos) e no entanto estamos claramente a falhar. As pessoas têm mais com que se preocupar, problemas mais próximos e mundanos como contas para pagar e a verdade é que por muito que reduzamos o nosso contributo individual e reciclemos, estas decisões têm de ser tomadas ao nível do governo para serem eficazes.

Infelizmente temos partidos adeptos do negacionismo climático, embora reconheça a sofisticação de não negar abertamente as alterações climáticas, temos quem negue a urgência de fazer seja o que for para as combater. Como um paciente terminal que não nega a existência do cancro, só acha que o tratamento não é urgente. E este negacionismo reflete-se na reprodução da ideia de que não só há uma escolha entre ambiente e economia (como se houvesse economia num planeta inabitável), como a economia é mais importante e o resto se seguirá.

E aqui é que se percebe o verdadeiro motivo do negacionismo. É o medo que a ordem estabelecida, que garante uns vencedores e outros vencidos, seja posta em causa. Porque se é possível pôr em causa os lucros das petrolíferas e dos poluidores em nome de um futuro melhor para todos nós, que mais é possível? Pôr em causa os lucros das papeleiras para travar a expansão do eucaliptal? Pôr em causa os lucros das concessionárias da água privada para garantir o acesso a todos e um combate à seca mais eficaz? Se calhar pôr em causa os lucros da especulação imobiliária para garantir o direito constitucional da habitação para todos? 

Porque “não olhes para cima” não é só sobre um cometa metáfora. Um cometáfora. É sobre uma classe dominante escondida à vista de todos. Por trás de cada discurso malthusiano sobre haver “pessoas a mais”, há a realidade que os 10% mais ricos do mundo são responsáveis por 50% das emissões. Por trás de cada guilt trip sobre a tua “pegada individual” de carbono (um termo inventado pela petroleira BP) há a realidade que 100 empresas são responsáveis por 71% das emissões totais do mundo. 

Da mesma maneira, estes partidos até negacionistas da existência da classe dominante se tornam. “O que é um rico?”, perguntam eles sonsamente enquanto propõem cortes de impostos que vão desproporcionalmente para os mais ricos. “O que me interessa se os ricos ganham muito, desde que eu ganhe mais também?”, perguntam plenos de inocência. “O que me interessa a desigualdade desde que se reduza a pobreza?”

Há uma tradição da direita de tentar esconder ricos atrás da classe média e grandes empresas atrás de PMEs para defender baixas de impostos ou combater aumentos. Mas a nova estratégia é não só negar que existem ricos, mas simultaneamente, que é bom que possam ser muito ricos (com sorte a riqueza faz trickle down).

Tal como no clima, os factos não estão do lado da direita. A desigualdade mata. O novo estudo da Oxfam sobre desigualdade diz que enquanto que os 10 homens mais ricos do mundo duplicaram as suas fortunas, uma pessoa morria a cada 4 segundos devido à desigualdade. Seja pela fome, falta de cuidados médicos, violência ou consequências da emergência climática. A desigualdade está correlacionada com mais crime, mais corrupção, mais infelicidade e problemas de saúde. Mas se isso não derreter um coração liberal, também está relacionado com pior crescimento económico (e duas destas afirmações baseio em estudos do insuspeito FMI).

A nossa “responsabilidade individual” existe, mas é a de eleger partidos que levem a sério a emergência climática e a desigualdade e nas ruas pressionarmos os governos a fazer o que é preciso para termos um futuro. Temos de olhar para cima, para quem nos governa e quem mais lucra com o actual mundo. É lá que estão os problemas e as soluções.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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