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Não é teatro político. É wrestling

Acreditei até ao fim que seria possível um acordo, seja no salário mínimo, no fim da caducidade da contratação colectiva ou na exclusividade e autonomia no SNS. Porque achei que era mutuamente benéfico para o PS e para o BE e CDU conseguirem um acordo, e que todas as alternativas os prejudicavam.

Crónica 74
5 Novembro 2021

Há poucas artes performativas tão desdenhadas como a luta livre norte-americana ou “pro wrestling”. Chamo-lhe arte e não desporto porque os participantes, apesar dos seus dotes atléticos invejáveis, têm mais em comum com um actor ou um duplo que com um desportista. Ou com um poeta, já que até fingem a dor que deveras sentem.

Mas esta visão como “arte menor”, que não tenho dúvidas vem da realidade histórica do público-alvo ser de classe trabalhadora e não a classe alta, impede muitos analistas de aproveitar o prisma do wrestling para analisar a realidade política.

Um claro exemplo disso foi a eleição presidencial dos Estados Unidos de 2016 com a vitória de Donald Trump (ele próprio com um longo historial de ligação ao wrestling, incluindo lutar na Wrestlemania). Dos prismas que melhor explicou o sucesso de Trump é perceber o wrestling e especialmente o que é o Kayfabe.

Kayfabe (uma espécie de palavra de código circense para fake, ou seja, falso) é o nome que os wrestlers dão ao mundo ficcionado do wrestling. As pessoas sempre souberam que o wrestling era ficcionado, da mesma forma que sabemos que uma peça de teatro é ficcionada. As peças de teatro não precisam de dizer à entrada “atenção, isto é falso!”, já o sabemos e aceitamos. Aceitamos a inverdade da ficção para podermos entrar noutros mundos, vivermos outras vidas, descobrir outras verdades.

Quando Trump concorreu, criou o seu Kayfabe e, como os wrestlers do antigamente, nunca saiu de personagem. A realidade era fake news, ele tinha factos alternativos. Neste mundo de ficção o eleitorado religioso e puritano dos republicanos aceitou um homem adúltero, abertamente lascivo, a caricatura de elite costeira nova iorquina com que a Fox News barafustava. Porque aceitar o Kayfabe é poder substituir a realidade material por uma fictícia em que Trump é um campeão moral anti-corrupção que restauraria os EUA do declínio a que tinham sido votados por Barack Obama.

Em Portugal acreditamos que há duas realidades. Há a performance televisiva, em campanha ou parlamentar, portanto, o Kayfabe, e há… seja o que for que realmente motiva as decisões dos vários políticos e partidos.

E isto é transversal ao espectro político: mesmo que acreditemos na sinceridade dos argumentos dos partidos que apoiamos (e justifiquemos mesmo quando os argumentos não encaixam na realidade observável), não temos a mesma generosidade quando se trata dos nossos adversários políticos.

Isto foi claro nas negociações do Orçamento de Estado entre os partidos de esquerda. Houve acusações mútuas de intransigência e de má-fé nas negociações. Dentro das bases de cada partido reinou o Kayfabe. Do lado do PS era o “Orçamento mais à esquerda de sempre” e o Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português estavam a sabotar, apesar de terem feito exigências bastante claras a que o PS não respondeu.

Do lado do BE e PCP, o PS estava a chantageá-los com o papão da extrema-direita para aceitar um orçamento que não respondia à ruptura do SNS e à precariedade e baixos rendimentos que assolam o país. Ou então a sabotar as mesmas para provocar eleições antecipadas num momento favorável de fraqueza dos partidos à sua esquerda.

Eu acreditei até ao fim que seria possível um acordo, seja no salário mínimo, no fim da caducidade da contratação colectiva ou na exclusividade e autonomia no SNS. Porque achei que era mutuamente benéfico para o PS e para o BE e CDU conseguirem um acordo, e que todas as alternativas os prejudicavam. Ceder sem conseguir concessões palpáveis do PS ia fazer o BE e CDU desaparecerem (para quê votar nestes partidos se estão apenas a validar orçamentos do PS?). Não chegar a acordo ia fazer a esquerda parecer irresponsável e incapaz de governar. E como estas exigências dos partidos de esquerda foram em tempos reivindicações do PS (e parte do seu programa eleitoral), não seria contra-natura incorporá-las no Orçamento.

Nem o drama das negociações me convenceu do contrário: é normal quando entras numa negociação não dizeres “eu quero isto mas estou disposto a ceder em tudo, porque não tenho alternativa”. É normal dizeres que estás disposto a sair de mãos a abanar, mesmo que precises muito de um acordo. É normal o BE e o PCP exigirem medidas específicas que possam apresentar ao seu eleitorado como conquistas suas e não do PS.

E é normal o PS defender o orçamento que apresentou como sendo espetacular e esticado ao limite para no fim dizer: pronto, afinal havia um espaço para esta concessão ou aquela. Então como se explica com wrestling que todo este combate ficcionado afinal era a sério?

Vou apresentar mais dois termos de wrestling. O primeiro é o work, ou seja, quando alguém está working, está a representar, está na ficção. Quando o sofrimento do wrestler é um work, ele está a fingir. O segundo, por contraste, é shoot, ou seja, quando é a sério. Um shoot wrestler é alguém que é um bom lutador na vida real. Quando uma lesão é um shoot, é porque foi real ou acidental.

E aqui há duas opções. A primeira é que tens um worked shoot: para convencer um público que acha que é mentira, quebras a 4a parede para dizer “rebenta a bolha, eles chatearam-se a sério, isto não estava no guião”. Isto tem o efeito de convencer muitas vezes mesmo os mais cépticos que olharam por detrás da cortina e assim ficam mais investidos na narrativa.

Nesta versão, o chatear dos partidos foi planeado porque os três viram uma oportunidade de se afirmar em eleições. Considerando o caos em que a direita se encontra, com o eleitorado disperso não só entre os novos partidos de direita, como a Iniciativa Liberal e Chega, mas internamente com disputas contenciosas no PSD e CDS, é uma hipótese possível. Em 2023 é possível que a direita estivesse reconfigurada e mais forte do que em inícios de 2022.

A segunda hipótese é o working yourself into a shoot, ou, por outras palavras, quando o próprio performer começa a acreditar na ficção que criou. Vimos isso com o Trump, que a conclusão lógica do mundo fictício que a sua campanha criou foram as teorias da conspiração Pizzagate e QAnon, cada vez mais distantes da realidade e com a eleição de políticos crentes nelas. Nesta hipótese, os partidos acharam todos que estavam a fazer o seu papel na luta coreografada e o outro começou a bater a sério. O tom começou a subir, as acusações a ser trocadas e, subitamente, ninguém pode dar parte fraca e começam a retaliar a sério.

Se for esta a versão, então, como alguém que acreditou e acredita no potencial da Geringonça como realidade política que pode entregar soluções de esquerda para o país, sai ferida. Mas quem se lembra das campanhas de 2015 e 2019 sabe que a retórica quente não impediu os partidos de chegar a acordo.

Uma coisa é o Kayfabe, outra coisa é realidade.

O autor escreve com o antigo Acordo Ortográfico. 

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