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Matar as lágrimas e renunciar ao amor, para não morrer

Sobre o filme "Mulher do Rei": das palavras projectadas no grande ecrã – que procuram retratar a realidade do século XIX das Amazonas de Daomé – para a vida das mulheres negras de hoje, há diferenças afectivas a destrinçar? Ou a identidade feminina negra continua refém do “modo guerreira”?

Crónica 74
6 Outubro 2022

Contrasto com os ânimos à minha volta. Escuto risos, percebo conversas aceleradas sobre os próximos compromissos do dia, e sinto, a cada expressão de vida, o peso das mortes negras que permanecem por chorar. Choro-as sozinha, na sala onde passei as últimas duas horas e 15 minutos a assistir ao filme “A Mulher Rei”.

Comigo estão cerca de 10 espectadores – todos jornalistas e, à excepção de um, todos brancos – e, no final, salta à vista que não temos a mesma história para contar.

Questiono-me sobre o vazio de comoção que me rodeia, enquanto desprego os olhos do grande ecrã, movimento o corpo desconfortavelmente contorcido, e busco descomprimir a alma ainda embrulhada numa explosão de emoções.

Foi assim com o “Hotel Ruanda”, “Amistad”, “Detroit”, e todos os filmes que vi inspirados em marcos trágicos da História Negra: as lágrimas conseguem ir expurgando a dor à medida que o argumento avança, mas não dissolvem o pesar que se vai instalando com a acção.

Preciso de tempo – e não apenas de choro – para processar tudo.

Enquanto o faço, revisitando uma série de cenas que me ficaram gravadas, penso que, por uma vez que fosse, gostaria de assistir, com a devida pompa cinematográfica, à História dos crimes cometidos contra os meus ancestrais pelo ângulo da responsabilização branca, e não apenas pelo ângulo da heroicidade e combatividade negra.

Penso no impacto que teria uma longa-metragem centrada no poder branco que por séculos escravizou milhões de pessoas negras.

Haveria risos e indiferença no final? Ou, finalmente, haveria comoção? Talvez até se produzisse o entendimento de que as heranças atrozes do passado só se poderão dirimir com políticas de reparação.

O homem branco como veículo de imoralidade

Tudo isto me ocorre a partir de uma das frases que guardo do filme “A Mulher Rei”: “O Homem branco trouxe a imoralidade”.

Ouço-a pela voz da protagonista Nanisca, personagem interpretada pela oscarizada actriz Viola Davis, que, na trama, veste a pele de líder das guerreiras Agojie, do extinto Reino Africano de Daomé – actual Benin.

O argumento é inspirado em factos verídicos que permanecem pouco conhecidos e, embora várias passagens do filme sejam criticáveis por falta de rigor histórico, entendo que vale a pena parar nas reflexões que convoca.

Por exemplo, se de um lado temos a afirmação de que “O Homem branco trouxe a imoralidade” – ao desumanizar e escravizar pessoas negras –, do outro lado temos a perspectiva de que essa imoralidade beneficiou da cumplicidade de lideranças africanas inescrupulosas.

Além do olhar para as dinâmicas escravocratas que foram dilacerando o Reino de Daomé, “A Mulher Rei” confronta-nos com outra dimensão importante de desumanização: a abdução emocional.

“Mata as lágrimas, se queres ser uma guerreira”, aconselha-se a determinada altura, recomendação reforçada, noutra cena, com apologias ao sacrifício: “Tu és poderosa. Não cedas o teu poder. O amor torna-te fraca”.

Das palavras projectadas no grande ecrã – que procuram retratar a realidade do século XIX das Amazonas de Daomé – para a vida das mulheres negras de hoje, há diferenças afectivas a destrinçar?

Ou a identidade feminina negra continua refém do “modo guerreira”?

Afinal, podemos não ser “guerreiras” quando os nossos filhos são agredidos, como foram as crianças de uma das equipas de futebol do clube Associação Desportiva da Amadora – ADAMD?

Podemos não ser “guerreiras” quando os profissionais de Saúde acreditam que os nossos corpos aguentam mais a dor, e, como tal, privam-nos de analgésicos e outros cuidados?

Podemos não ser “guerreiras” quando estamos cercadas por microagressões?

Creio que podemos, não sei se conseguimos, mas acredito que devemos tentar. Com lágrimas e amor, pela nossa humanidade, e porque merecemos viver. E não apenas “não morrer”.

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