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Luddismo Artificial

Não devemos ter medo da tecnologia, mas do capitalismo. Mais importante que as tecnologias em si é quem determina o seu uso e efeitos na sociedade. O trabalho poupado pela automatização pode resultar em mais tempo livre para trabalhadores ou no seu despedimento. O que interessa é quem tem o poder de decidir.

Crónica 74
25 Maio 2023

Este texto foi escrito por Inteligência Artificial. Na verdade, todos os meus artigos até agora foram escritos por Inteligência Artificial. Quem gostou não tem de se sentir mal, simplesmente pedi à IA para ir buscar a outros pensadores que admiro as ideias. Portanto,estão só a apreciar ideias de grandes pensadores em segunda mão. A quem não gostou, haha, não acredito que se deixaram chatear por uma IA.

Como vêem, não há mal nenhum no recurso da Inteligência Artificial. Consumiram os artigos na mesma, tiveram as reações emocionais que teriam normalmente (e as partilhas nas redes sociais por revolta ou apreço) se tivesse sido um ser humano a escrever os artigos. Tiveram Conteúdo™, gratuito - obrigado a quem apoia e subscreve o Setenta e Quatro - que vos entreteve ou fez pensar e, no fundo, é o que se pede.

Do ponto de vista do Setenta e Quatro, poupou o trabalho de encontrar mais um cronista para tapar um buraco na agenda e do ponto de vista dos gestores da marca Guilherme Trindade™ encontrou-se mais uma maneira low cost de gerar Conteúdo™ e chegar a novas demografias chave.

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada seria indistinguível de magia”. É uma frase totalmente original gerada pela Inteligência Artificial. Uma das vantagens da “Inteligência Artificial” é, como nas bolhas tecnológicas anteriores (a Realidade Aumentada, blockchain, os NFTs e o Metaverso), ser uma caixa negra para a maioria das pessoas. A maior parte da tecnologia é uma caixa negra no sentido em que mesmo que saibamos trabalhar com ela, não sabemos por que é que funciona ou como é que funciona. Mas ao contrário de blockchain e NFTs, cuja aura de burla suada afastou a maioria das pessoas normais, o que andamos a chamar de IA parece ter um apelo mainstream maior e com mais potencial de ser duradouro.

O nome é enganador. Inteligência Artificial é um termo de marketing, não é uma descrição do que é realmente um Large Language Model. O termo é suposto evocar ficção científica e, principalmente, convencer investidores e clientes de que é um serviço capaz de fazer dinheiro e poupar trabalho a quem o usa.

Mas o objectivo deste artigo não é explicar a tecnologia nem criticar as suas insuficiências. Por enquanto, podemos sentir-nos bem quando identificamos os dedos a mais nas imagens geradas por IA ou a apanhamos a mentir.  Afinal, quer dizer que a tecnologia ainda não está pronta para nos substituir completamente. Mas as insuficiências vão sendo ultrapassadas. O Santos-Dumont não inventou o avião à primeira.

Quando a Internet surgiu, quando a Wikipédia apareceu, quando os motores de busca ganharam força não faltaram artigos a catastrofizar que ia arruinar o nosso pensamento crítico. Os humanos não precisam de ajuda nesse campo. Mas devo lembrar que o próprio Platão catastrofizava a invenção da escrita como destruidora da nossa capacidade de memorizar.

A verdade é que, mais ou menos relutantemente, fomos adotando as inovações porque nos são úteis. Talvez daqui a uns anos seja tão comum recorrer a um chatbot quanto nos é útil usar um motor de busca.

Existe uma tentação de Luddismo na política. Quando pensamos no que aconteceria aos milhões de empregos de condutores se os carros se conduzissem a si próprios, o primeiro instinto político de muitos é pôr um travão na tecnologia em si. Recentemente, o comentador conservador norte-americano Tucker Carlson sugeriu que a solução era restringir a tecnologia para os camionistas manterem os empregos em vez de se pensar como é que este aumento de produtividade podia resultar em mais tempo livre ou melhores salários para os condutores.

Olhe-se para os horários particularmente exigentes dos camionistas nos Estados Unidos: podem conduzir legalmente até 11 horas por dia. Porque é que haveríamos de querer preservar a sua exploração?

Que interessa que a direita não vá realmente bloquear avanços tecnológicos que convêm aos patrões? São capitalistas, afinal. Interessa que mesmo quando estão a ser populistas não conseguem imaginar um mundo em que o avanço da tecnologia melhore a vida de quem trabalha, que resulte em mais tempo livre ou melhores salários para os condutores.

Não acho que a esquerda ganhe muito em ser Luddita, até porque o problema não é a tecnologia. As inovações tecnológicas podem mudar as condições materiais, mas são sempre um sintoma das condições materiais. O trabalho poupado pela automatização de trabalho chato pode resultar em mais tempo livre para trabalhadores ou no seu despedimento. O que interessa é quem tem o poder de decidir.

Se os trabalhadores tiverem o poder, naturalmente vão decidir trabalhar menos, afinal, a produtividade manteve-se ou aumentou. Do ponto de vista dos donos da empresa, o incentivo da maximização de lucro dita que o aumento de produtividade significa que podem pagar o mesmo por mais produção ou, então, despedir o “excesso”, o que tem a vantagem de baixar salários, se toda a gente temer pelo seu emprego.

A Pandemia™ deu aos trabalhadores um poder inesperado, especialmente depois de 30 anos de declínio de sindicalização. A “escassez” de trabalhadores, a realidade do trabalho em casa, deu uma alavancagem negocial que permitiu a muitos trabalhadores exigir e ver os seus salários aumentar. Ou porque mudaram de emprego ou porque ameaçaram fazê-lo.

Quem detém o poder económico não o permite no atual sistema. A inflação foi a desculpa perfeita para esmagar trabalhadores e salários. Não precisam de acreditar em mim: o Banco Central Europeu (BCE) diz que as subidas de juro vão subir até os salários pararem de aumentar. Não é por causa de uma suposta espiral salário-inflação. O próprio BCE também admite que a maior causa da inflação é o aumento das margens de lucro

O que eles estão a dizer é que as chicotadas vão continuar até a moral melhorar.

Cada crise é mais uma transferência monumental de recursos do trabalho para o capital, ou por outras palavras, de quem trabalha para a classe possuidora. Se houver uma crise causada pelo avanço destas tecnologias, quem a vai pagar a factura vai ser decidido por quem é dono da sociedade. Se os trabalhadores ou os possuidores.

Mais importante que as tecnologias em si é quem determina o seu uso e os seus efeitos na sociedade. Quanto mais se privatiza a pesquisa e desenvolvimento da tecnologia, mais as novas tecnologias se vão moldar às necessidades de quem paga pelo seu desenvolvimento na esperança de retorno financeiro. E uma IA desenvolvida em mãos capitalistas servirá interesses capitalistas: aumentar margens de lucro e precarizar o trabalho.

Na indústria do entretenimento vemos os avanços tecnológicos a ameaçar - lenta e imperfeitamente - o trabalho de milhões de pessoas: escritores, editores a actores. Os actores correm o risco de ver a sua imagem e voz copiada sem remuneração e os escritores vêem-se ameaçados por produtoras e investidores tentados pela ideia de que o ChatGPT não se pode sindicalizar.

A tecnologia ainda está longe, não permite a substituição, apenas a subversão. Tal como se consegue fazer filmes de animação sem se preocuparem com as regras dos sindicatos dos animadores ao chamar-lhe “Live Action” como um Rei Leão, talvez alimentem a ideia de que se não lhes chamarem guionistas mas “editores de IA”, não têm de dar as mesmas condições às pessoas que submetem sugestões a um chatbot e depois reescrevem a algaraviada plagiada que dali sair.

Não é por acaso que os guionistas estão em greve em Hollywood e uma das suas exigências é que a IA nunca possa ser creditada pela escrita de um projecto. E que não possam treinar uma IA no seu trabalho sem devida remuneração. Não é por acaso que as produtoras e os estúdios recusaram estas exigências. Mesmo que esse futuro não seja amanhã, é importante usar a ameaça do futuro para ameaçar os trabalhadores hoje. Um trabalhador com medo de ser substituído é um trabalhador que se “porta bem”. No caso dos guionistas, os sindicatos ainda têm força suficiente para lutar.

Não podemos ceder à vitória totalizante do Conteúdo™. Não somos meros consumidores passivos de um produto feito em linha de montagem. Quem cria um filme ou série ainda interessa. São humanos a falar connosco, a comunicar a sua experiência, a dizer-nos o que aprenderam sobre a vida, a partilhar uma piada, a fazer-nos sonhar. A tecnologia pode permitir que se contem novas histórias. Mas sem pessoas apenas estaremos a comer o plágio mastigado por uma batedeira algorítmica glorificada.

É esta a parte em que levanto o véu do meu ardil preguiçoso. Ainda não foi uma Inteligência Artificial a escrever este artigo. Será que alguém acreditou nisso? No fundo acho que o maior risco da IA não é substituir as pessoas, mas deixarmo-nos convencer que consegue. Deixarmos que desvalorizem o nosso trabalho. 

Não devemos ter medo da tecnologia. Devemos ter medo do capitalismo.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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