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A liberdade de Berlim

A cidade mais livre na qual já estive, à qual voltarei sempre que tiver oportunidade, e que passou a ficar na ponta da minha língua sempre que alguém me perguntar: se um dia não viveres em Lisboa, para onde é que vais morar? Berlim, a cidade mais livre do mundo.

Crónica 74
22 Junho 2022

Como estão? Têm passado bem? Eu estou óptimo, obrigado. Posso até assumir que estou particularmente bem-disposto. Talvez por isso esteja a começar a crónica de uma maneira mais próxima de quem a está a ler, creio, e com certeza por isso venha desta feita falar de algo realmente positivo e bonito, sem ironiazinhas ou sarcasmos que mascaram embirração com um qualquer assunto da actualidade.

Cheguei há pouco de Berlim, tendo sido a segunda vez que lá fui. A primeira foi há mais de 15 anos com os meus queridos avós e foi uma viagem estritamente histórica e cultural. Ou seja, monumentos e museus. E vale bem a pena esse lado da cidade, claro está, mas Berlim é muito mais do isso. Esse mesmo lado cultural é muito maior e mais abrangente do que os seus monumentos e museus.

Tenho tido o privilégio de viajar muito pelo mundo (e mesmo assim todo o dinheiro que gasto em viagens não chegava para a entrada de uma casa nos arredores de Lisboa), e posso dizer que nunca conheci uma cidade tão livre como Berlim. Nem Londres, nem Paris, nem Rio de Janeiro, nem Nova Iorque. São cidades relativamente progressistas, mas não respiram a mesma liberdade. Berlim tem, como qualquer cidade, vários problemas, e nem sequer é uma cidade particularmente bonita. Mas nunca conheci um sítio onde houvesse um tão grande sentido coletectivo da importância da expressão da individualidade.

O que ali se vive não é um individualismo cego e egóico, a la liberal (até porque só lhes interessa verdadeiramente a liberdade económica que tanto impede a liberdade de existência a muitos), mas um reconhecimento de todos do direito que cada um tem de ser exactamente o que bem lhe apetecer. Há uma enorme noção da importância das diferentes comunidades nas diversas lutas por direitos iguais na individualidade de cada um.

Vivem em harmonia pessoas de todos os géneros e orientações sexuais, tons de pele e nacionalidades, religiões e classes económicas. Na verdade, embora haja desigualdade (e um problema notório de pessoas sem-abrigo), nem sequer há zonas demarcadas de super-ricos e periferias ultra-pobres. Não há propriamente uma cultura de pubs só para engravatados que trabalham em bancos e consultoras, separados dos jardins onde o pessoal com menos dinheiro bebe cerveja de litro.

Em cinco dias, não vi uma única pessoa de fato e gravata, sequer. Mas vi centenas de estilos de vestir diferentes, todos misturados no mesmo sítio. Vi gays e lésbicas, pessoas trans e não-binárias, cabelos pintados de todas as cores, rapados, penteadinhos ou com rastas, todos os elementos identitários em que podemos pensar, reunidos em bares e clubes a dançar. Livres. Estive em clubes onde há sexo no meio da pista de dança, onde quase todas as pessoas estão nuas ou perto disso, e ainda assim há mais noção de consentimento e assédio do que eu vi em qualquer discoteca onde já estive na vida. Quando o calor aperta vai tudo para os lagos de Berlim, e metade das pessoas, de todas as idades e meios fazem nudismo. E é tudo natural. É tudo livre. Toda a gente é quem quer ser, respeitando o do lado que quer ser outra coisa qualquer.

Não é uma cidade propriamente bonita, como disse. Mas é a cidade mais livre na qual já estive, à qual voltarei sempre que tiver oportunidade, e que passou a ficar na ponta da minha língua sempre que alguém me perguntar: se um dia não viveres em Lisboa, para onde é que vais morar? Berlim, a cidade mais livre do mundo.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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