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Importa-se de não repetir?

Temos de ouvir os outros, e talvez mais importante, temos de saber ouvir, sofisticar a qualidade da audição e agir de acordo. O presidente  Emmanuel Macron, António Costa e Carlos Moedas são três casos de surdez: recusam-se a ouvir o povo.

Crónica 74
6 Abril 2023

Qualquer ator é confrontado logo no início da sua formação com uma noção básica: a escuta é tudo. Um ator fechado sobre si mesmo não existe. Mesmo sozinho em palco, num monólogo, o ator deve estar em diálogo constante consigo, com o texto, com o palco, com quem está nos bastidores e com quem está à sua frente. Tem de se ouvir, tem de ouvir os outros, e talvez mais importante, tem de saber ouvir, sofisticar a qualidade da sua audição e agir de acordo.

Num plano mais alargado, esta interação com o outro é o que nos faz progredir como pessoas e como sociedade – devemos ouvir a parte e o todo para nos sentirmos parte do todo. Infelizmente, esta condição básica da vida em comunidade já viu melhores dias, como acontecimentos recentes têm tão tristemente confirmado.

Um caso de surdez crónica é o Presidente Macron e uma teimosia relativamente à revisão da lei das reformas deu início a um braço de ferro com, praticamente, toda a França. Manifestação atrás de manifestação, greve atrás de greve, recurso atrás de recurso, a sociedade francesa tem deixado bem claro e em todas as frentes que é contra o aumento da idade de reforma de 62 para 64 anos. Mas Macron, na sua bolha insonorizada, aprovou a revisão da lei das aposentações sem votação parlamentar, invocando o Artigo 49.3 da Constituição.

Os protestos subiram de tom e Macron continuou a falar sem ouvir. Não remodelará o governo, não convocará eleições, não realizará um referendo, não, não, NON! Macron está a entupir ostensivamente os seus ouvidos perante aquilo que é um país inteiro a gritar e é fácil adivinhar a consternação geral: será que Macron não ouviu ninguém, dos partidos da oposição aos sindicatos e, de forma bastante ruidosa (e muitas vezes violenta) uma população que tem saído à rua sem descanso durante todo este lamentável processo? Também é fácil adivinhar a resposta: não, não ouviu.

Viajemos agora até Portugal. António Costa também não ouviu os portugueses quando convidou para ministro das Finanças uma persona que é grata para si mas que é non grata para os portugueses. Lembro o percurso: Fernando Medina era vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa em 2015, ano em que Costa decidiu abandonar a autarquia para se candidatar a primeiro-ministro. Desta forma, o relativamente desconhecido vice passa a presidente até ao fim do mandato e apresenta-se como candidato sem coligações em 2017. Ganha a autarquia mas os lisboetas deram-lhe uma vitória cautelosa, retirando-lhe a maioria que tinha sido conquistada por Costa em 2015.

Seguiram-se uns anos de acertos e erros, sendo que, na minha opinião, os mais graves foram cometidos no setor da habitação, com a permissão da instalação definitiva dos grandes grupos mundiais de especulação imobiliária na capital e o descontrolo com o alojamento local, erros esses cujas consequências estão hoje à vista.

Convém não esquecer a figura do então vereador do Urbanismo Manuel Salgado, que era tão omnipresente como preocupante, até que desapareceu estrategicamente de cena antes da realização de novas eleições, envolto em suspeitas de crimes de corrupção e abuso de poder. Já sem Salgado, mas manchado por este, Medina apresenta-se novamente como candidato em 2021 e o tímido benefício da dúvida dado em 2017 transformou-se num rotundo grito de não confiança, perdendo Lisboa (mesmo coligado com o Livre), o que já não acontecia aos socialistas desde 2007.

Medina assume a derrota pessoal (perdeu mais de 10% dos votos relativamente a 2017, muitos deles de eleitores socialistas, que não apoiaram o candidato do partido) e cede a Câmara a um surpreendido Carlos Moedas, que sabia que o cargo era agora seu não porque o tinha ganho mas porque o outro candidato o tinha perdido. Parecia o fim de Medina, ditado por vontade popular. Mas não.

Apenas um ano depois, e após ganhar a maioria absoluta para formar Governo, António Costa vai buscar Medina para ministro das Finanças. É fácil adivinhar a consternação geral: será que Costa não ouviu que os portugueses não queriam ser governados por Medina? Também é fácil adivinhar a resposta: não, não ouviu.

Voltemos à Câmara de Lisboa, agora nas mãos de Moedas, que tem em mãos nada mais nada menos que os erros de Medina e companhia no setor imobiliário. O tema é atual e quente e alvo de debates e teorias e, como é salutar em democracia, é também motivo de manifestações. Foquemo-nos em duas. Na de 30 de Março, segundo o Público, “o presidente da Câmara de Lisboa juntou-se a protestos contra medidas do Governo que restringe o arrendamento de curto prazo de habitações a turistas”.

Demonstrando ser um presidente preocupado com os problemas dos seus munícipes, Moedas desfilou com as centenas de proprietários e trabalhadores do alojamento local e uniu a sua voz a um setor que gera riqueza não só para os donos das casas como também para um número considerável de prestadores de serviços. Parece-me justo. O que já me parece mais difícil de justificar é a ausência de Moedas na manifestação que ocorreu dois dias depois, que levou à rua milhares de pessoas revoltadas com a grave crise imobiliária que estamos a atravessar na capital, e não só.

Recorro à muito clara crónica de Carmo Afonso sobre o assunto. “Moedas explica: não foi à manifestação de sábado porque não precisa de ir a uma manifestação para estar nas ruas e falar com os lisboetas. Para Moedas, os lisboetas sabem muito bem que ele anda a resolver os seus problemas e não precisam que ele compareça ao seu protesto. Já os empresários do alojamento local, porventura mais inseguros, precisam da sua presença para se sentirem amparados.”

Ironias à parte, o certo é que Moedas não foi. É fácil adivinhar a consternação geral: então Moedas é um presidente presente na defesa de uma minoria, constituída pelos proprietários do alojamento local, mas é um presidente ausente na defesa de uma imensa maioria afetada pela crise imobiliária? Será que Moedas ouviu os sussurros de centenas de proprietários mas não ouviu os gritos de milhares que não conseguem comprar nem alugar a preços realistas? Também é fácil adivinhar a resposta: não, não ouviu.

Que fazer? Teremos de elevar as nossas vozes para que cheguem a estes pouco apurados ouvidos. Teremos de ser mais como Claire Stewart-Hall, um elemento do público no programa Question Time, que interpelou Andrew Murrison (membro conservador do parlamento britânico), de forma desconcertantemente humana. Começou a sua intervenção com um “estou estupefacta com o fosso existente entre o público e os membros do painel” (políticos, jornalistas e até um representante de uma ONG) e foi por aí fora num desfiar de factos e argumentos tão justos quanto preocupantes, sobre serviços, sociais, emigração, ambiente, etc.  

Mas no video vê-se que Murrison. Mais do que ouvir um ser humano a colocar questões pertinentes e a fazer fundamentadas denúncias, parece estar a ouvir um ataque, pondo-se logo a escrever notas, como que a preparar a sua defesa - a forma enviesada como se ouve chega a ser tão grave como não ouvir de todo. Mas mesmo que ele não a tenha ouvido, ouvido de verdade, o vídeo tornou-se viral e em apenas 24 horas já tinha sido visto, e ouvido, por seis milhões de pessoas.

Talvez se fizermos parte destes seis milhões e não desistirmos de nos ouvir uns aos outros, os nossos governantes também se sintam obrigados a fazê-lo. Mas se nada fizermos, o diálogo de surdos continuará.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“I can’t hear you no more”, de Russ Ballard

“Do you want to know a secret”, de The Beatles

“Blowin’in the wind”, de Bob Dylan

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