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Emergência climática, covid e fascismo. Estar vivo é uma canseira

Saiu esta segunda-feira o sexto relatório do IPCC sobre a emergência climática desde 1988. A grande novidade deste relatório é não trazer nenhuma novidade. Ou melhor, traz, se considerarmos que é uma novidade termos pouquíssimo tempo, provavelmente ainda menos do que pensávamos, para inverter a situação antes que o planeta se torne inabitável.

Crónica 74
11 Agosto 2021

Viver cansa. Eu juro-vos que isto de estar vivo é uma canseira. É que não dá para estar propriamente relaxado a tentar viver, quando parece que não podemos pregar olho, ou baixar a guarda, por um segundo que seja, se queremos sobreviver. Já nem me refiro às agruras pessoais da vida de cada um. As preocupações com o trabalho, pagar as contas, educar os filhos ou o constante questionamento da existência de programas como Quem Quer Namorar com o Agricultor? ou de pessoas como o Jeff Bezos. Tudo isto já tem o seu custo na nossa qualidade de vida, claro, mas depois temos de, nos dias que correm, adicionar pesadamente em cima as camadas de pandemia covid, do crescimento da extrema-direita cada vez mais acentuado em várias partes do mundo, e da emergência climática.

Saiu esta segunda-feira o sexto relatório do IPCC sobre a emergência climática, desde 1988. E a grande novidade deste relatório é não trazer nenhuma novidade. Ou melhor, traz, se considerarmos que é uma novidade que temos pouquíssimo tempo, provavelmente ainda menos do que pensávamos, para inverter a situação antes que o planeta se torne inabitável.

Agora, claro que podemos escolher não acreditar em nada disto. E isso, de certa forma, por mais estúpido que nos possa parecer, também pode ser de uma inteligência profunda, quando visto de outro ângulo. Ou seja, não acreditar nestas grandes tragédias do nosso tempo é não ter a mínima preocupação com elas, logo, é viver bem mais tranquilamente.

Há aqui uma ligeira falha (que até faz sentido, por outro lado) no que ao alarme com o crescimento da extrema-direita diz respeito. É que a própria extrema-direita, seja nas figuras de Trump e Bolsonaro, seja em grupos como o QAnon e todos os que acabam em “…pela verdade”, não só é globalmente negacionista da covid e da emergência climática, como é das grandes promotoras deste negacionismo. Daí que – e admitindo já que é uma extrapolação que não se aplica a todos os casos – boa parte dos negacionistas tendam a encostar-se à extrema-direita, não sendo por isso algo com que se preocupem.

Se eu às vezes acordo a pensar “quem me dera não acreditar na ciência para andar aí todo relaxadão e com muito menos preocupações?”, sim, óbvio. Pena não conseguir. Também me interrogo sobre os critérios que estas pessoas usam para decidir no que acreditar ou não. Por exemplo, as pessoas que não acreditam nos climatólogos e demais cientistas que, entre outras coisas, elaboram os relatórios do IPCC sobre a emergência climática, acreditam naqueles que todos os dias fazem a previsão do tempo? Ou não acreditam e em vez de verem no telemóvel se amanhã chove ou faz sol, metem sempre o bracinho de fora da janela?

E as pessoas que se recusam a acreditar na tecnologia das vacinas, mas acreditam na tecnologia da Internet que lhes permitiu ver vídeos no YouTube onde tiraram os doutoramentos em virologia com um homeopata brasileiro (que de vez em quando também faz vídeo de homenagem ao Bolsonaro)? Fico genuinamente curioso. Mas mais uma vez, acho que é de uma argúcia brilhante, escolher viver assim. Define-se um sistema de crenças próprio, um valor para a verdade, e escolhe-se a dedo aquilo em que se acredita ou não, consoante o que dá mais jeito e conforto.

Podemos achar que isto é patético, que é ignorante e egoísta, que é até um perigo para a vida em sociedade e que têm consequências mais ou menos chatas (como a morte) para milhares (milhões?) de pessoas, mas uma coisa temos de admitir: viver assim é muito menos cansativo. Quem me dera.

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