Índice

David é mulher

As mulheres estão, finalmente, a corrigir o que o patriarcado fez e o que os homens anti-patriarcado não conseguiram. Do ambiente aos direitos humanos, passando pela defesa da democracia, são elas que estão na linha da frente, são elas que arremessam com a sua funda certeira as pedras contra os Golias do nosso tempo. São elas.

Crónica 74
29 Setembro 2022

A Bíblia está cheia de metáforas (ou é, na realidade, uma longa metáfora) e uma das mais populares é a história de David e Golias, em que as probabilidades se invertem e um muito fraco vence um muito forte.

Neste nosso tempo de Golias, de tantos Golias tecnológicos e corporativos cuja força parece imbatível, num tempo em que as probabilidades parecem jogar todas a nosso desfavor, onde o jogo nos é apresentado como irremediavelmente viciado, há “Davides” que insistem em não desistir, restituindo valores e princípios que são tão cinicamente apresentados como ingénuos ou ultrapassados, como a esperança ou a fé na Humanidade.

Neste repassar pela acção de alguns “Davides” do século XXI há uma mudança de género que salta à vista. São “Davidas”, são heróis femininos, e identifiquei-os, identifiquei-as, não porque andasse intencionalmente à procura delas, mas porque é desconcertantemente evidente que as mulheres estão, finalmente, a corrigir o que o patriarcado fez e o que os homens anti-patriarcado não conseguiram. Do ambiente aos direitos humanos, passando pela defesa da democracia, são elas que estão na linha da frente, são elas que arremessam com a sua funda certeira as pedras contra os Golias do nosso tempo. São elas. É a italiana Letizia Roccasecca que fez frente a Steve Bannon, é a indiana Vandana Shiva que luta contra portentos como a multinacional Monsanto, são as mulheres russas que gritam contra Putin, são as mulheres iranianas que arriscam tudo frente aos aiatolas. São elas. Aqui fica a sua luta, que é de todos.

Letizia Roccasecca (Itália, 1955) - mal imaginava Steve Bannon, o estratega de Trump, que os seus planos para instalar num antigo convento italiano uma universidade-fábrica de fascistas iriam sair gorados pela intervenção de uma sexagenária avó de quatro. Roccasecca já tinha levantado a sua voz contra o depósito de lixo tóxico no rio Sacco, próximo da sua terra-natal Anagni, a pouco mais de 60 quilómetros de Roma – denunciou sem medos, juntamente com a sua comunidade de vizinhos, mortes e efeitos nefastos da contaminação industrial. Fez-se ouvir e foi ouvida. E não hesitou em alçar ainda mais alto a sua voz contra um perigo para ela mais tóxico, o do neo-fascismo, que ameaçava invadir o “seu” mosteiro de Trisulti.

Para ela, e para os seus vizinhos, este mosteiro era sinal de cultura, elevação e conhecimento, e como tal não poderia albergar quem representava justamente o contrário. Ergueu-se corajosamente contra tudo e todos, até contra o próprio governo italiano, cujo Ministério da Cultura já havia concedido por 19 anos (com uma renda anual de 100.000€), o direito de usufruto do mosteiro ao Dignitatis Humanae Institute, afecto à ideologia de Bannon. Pintou cartazes, organizou manifestações, uniu e reuniu forças e esforços, fez-se aliada de um (um só) político e de uma (uma só) jornalista e conseguiu com que Bannon não levasse a sua avante. Em nome de todos nós, muito obrigado.

Vandana Shiva (Índia, 1952) - conheci esta incansável activista, eco-feminista e eloquente humanista através do documentário que sobre ela realizou Graça Castanheira para a série “O Tempo e o Modo” da RTP2. Foi um amor à primeira vista. A ideia central do seu trabalho é a de sementes livres, ou a rejeição de patentes corporativas sobre as sementes. As suas lutas e vitórias contra gigantes da agricultura industrial, como a Monsanto, são a prova de que Golias não é invencível. Unindo-se aos agricultores locais e com uma formação tanto técnica como humana, Shiva tem enfrentado sem piedade os interesses multinacionais de grandes corporações que querem usurpar as populações agrícolas do seu legítimo património através de uma política definida como biopirataria, que visa patentear (e lucrar com isso) uma herança popular e legitimamente gratuita.

Vandana Shiva luta contra o patenteamento da vida, um conceito injusto e mercantilista que vai contra séculos, milénios, de um património que resulta da relação natural entre a terra e quem nela trabalha. Pelas suas próprias palavras, “acima de tudo, precisamos de uma economia de cooperação entre as pessoas. Esta competição está a matar-nos, e ela provém de uma forma militarizada, masculinizada de pensar, que tem sido uma distorção do sentido que damos a ser-se humano. A violência não é um indicador de humanidade mas de desumanidade. A ganância e a acumulação de bens não são medida da nossa humanidade. A partilha e o cuidar é que são. E esses são os valores que as mulheres trazem para formar um mundo determinado pela convergência do patriarcado com o capitalismo.” Vandana Shiva, hoje com 70 anos, continua a ser um impertinente David, sem concessões nem hesitações e graças a ela, milhares de sementes continuam e continuarão a ser património de todos e não propriedade patenteada de corporações obcecadas com o lucro. Em nome de todos nós, muito obrigado.

Sofia (Rússia, 2022) - chamemos-lhe assim, Sofia, o nome mais popular na Rússia, a este movimento feminino nascido em 2022. Putin, esse pseudo-Czar pseudo-comunista, esse pseudo-homem, atirou a Rússia contra a Ucrânia e fez despoletar uma onda de solidariedade mundial, tanto justa como exacerbada, tanto altruísta como enviesada, quando comparada com outras invasões, passadas, presentes e futuras. Julgamentos à parte sobre o que fez mover esta onda, move-me sem reticências o movimento das mulheres, das mães, avós, irmãs e esposas que gritaram contra o alistamento forçado dos seus filhos, netos, irmãos e maridos. Quando Putin, realisticamente confrontado com o fracasso da sua torpe estratégia de guerra, lança uma operação de alistamento involuntário de 300.000 homens na reserva, não só aciona um êxodo desses mesmos homens, que fogem como podem da Rússia, como incitou, também involuntariamente, a ira de quem não quer sofrer a perda destes homens na sua pele. 1.300 baixas, dizem uns, 43.000 dizem outros, mas quem não quer perder nem mais um homem são as mulheres, que saíram à rua sem medo desde o anúncio de Putin. Em aldeias, vilas e cidades, as mulheres russas querem que o seu grito individual e colectivo acabe com esta guerra sem sentido e sem fim indolor à vista. Reclamam o direito a não ter de ver os seus homens partirem para uma morte certa. Reclamam o direito ao amor, à família, aos laços, ao futuro. Reclamam o fim da guerra de um homem que já matou milhares do seus. Estão fartas. E gritam. Justamente. Em nome de todos nós, muito obrigado.

Mahsa Amini (Irão, 2000) – a mártir que deu origem a todo um movimento e sublevação iraniana e mundial, ao ser detida por não estar a usar devidamente o seu véu islâmico, segundo os padrões de uma, masculina, Patrulha de Orientação da República Islâmica. Amini foi presa, espancada, internada e mais tarde pronunciada morta. Morta. Uma jovem mulher de 22 anos perdera a sua vida pelo simples facto de ter mal coberto a sua cabeça, de acordo com o julgamento arbitrário de um punhado de homens fundamentalistas. Não teria sido a primeira, mas as mulheres iranianas lutam para que seja a última. Não foi a última. Mais pereceram até ao dia de hoje, mulheres e homens, quase 50 (que se saiba) até à data. Mas algo está a mudar no Irão, a antiga Pérsia que nos foi dada a (re)conhecer por Marjane Satrapi, a corajosa realizadora dessa maravilha animada chamada “Persopolis”. Segundo ela, algo está a mudar nesta sociedade, onde a resistência feminina de “Davides” é activamente apoiada por homens, um “sinal de esperança” de acordo com a própria. As mulheres caem, mas os homens também. Todos caem, mas todos se erguem, noutras vidas, noutros dias, a anunciar novos tempos. Em nome de todos nós, muito obrigado.

Obrigado a todas as mulheres, as feministas, as sufragistas, as ecologistas, as legítimas guardiãs da humanidade. Obrigada. Alan Watts, o filósofo britânico-americano conhecido por interpretar e difundir a cultura oriental para uma mentalidade ocidental, costumava contar a história acerca de um astronauta que tinha regressado de uma missão espacial, a quem perguntaram se ele tinha visto Deus. “Sim”, respondeu o astronauta. E após uma breve pausa, acrescentou: “e ela é negra”. Deus. Uma mulher. Negra. Que assim seja. Amen.

 

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por:

“Run the world (girls)” por Beyoncé

“People have the power” por Patti Smith

“Respect” por Aretha Fraklin

“You don´t own me” por Lesley Gore

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt