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Da COP27 só recordaremos as ocupações

Enquanto os militantes pela justiça climática foram obrigados a ficar à porta, os principais protagonistas do capitalismo fóssil continuaram a marcar presença nas Conferências do Clima. Têm acesso privilegiado às delegações políticas e conseguiram que os reatores nucleares, o gás natural e centrais a carvão com tecnologias de captura e armazenamento de carbono fossem equiparadas às energias renováveis.

Crónica 74
1 Dezembro 2022

“Estamos numa autoestrada rumo ao inferno, com o pé no acelerador”. Quem proferiu estas palavras não foram militantes ecossocialistas, mas sim António Guterres (insuspeito de ser um revolucionário), na abertura da 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP27).

Os resultados da COP27 são frustrantes, mas não surpreendem. O historial de fracasso destas conferências é demasiado vasto para que se criem falsas expectativas: desde a COP1, em 1995, que as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) têm continuado numa trajetória ascendente (exceto por um breve período no pico da pandemia). Este ano, no Egito, após um processo negocial que se arrastou por mais de 13 dias, “o nosso planeta continua no serviço de urgência”, como concluiu o Secretário-Geral das Nações Unidas. Uma Conferência que, segundo a mensagem do seu Presidente, iria “passar das negociações e planeamento à implementação”, não fez mais do que espelhar e acentuar um marasmo de décadas. Outra coisa não seria de esperar de um evento realizado num resort de luxo e patrocinado pela Coca-Cola.

As negociações políticas ficaram marcadas pela desorganização e opacidade da presidência egípcia da COP, pelos esforços de obstrução e sabotagem (muitos deles bem-sucedidos) por parte dos países produtores de petróleo e gás natural, e pelas tentativas ostensivas de desestabilização e fragmentação do bloco dos países em desenvolvimento, reflexo das rivalidades geopolíticas sempre decisivas nestes fóruns internacionais.

O acordo supostamente “histórico” alcançado no último dia da Conferência, e que prevê a criação de um fundo específico para perdas e danos relacionados com os efeitos adversos das alterações climáticas nos países em desenvolvimento mais vulneráveis, dificilmente compensará a ausência de compromissos políticos robustos para reduzir drasticamente as emissões de GEE e conter a subida da temperatura média global, ou para cessar definitivamente a utilização de combustíveis fósseis.

A necessidade de um fundo desta natureza demonstra, aliás, o fracasso das medidas de mitigação e de adaptação em relação às alterações climáticas: já não é possível evitá-las, ou prevenir os seus impactos mais devastadores, resta pagar aos países que carregam o fardo de uma crise climática que não provocaram – um cenário de flagrante injustiça climática. Em teoria, este apoio financeiro destinar-se-ia à reconstrução na sequência de eventos climáticos extremos. Resta saber qual será a compensação possível para os territórios que ficarão totalmente devastados, ou que desaparecerão por completo devido à subida do nível médio das águas do mar.

Este fundo, um objetivo reivindicado há trinta anos (desde a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992) pelos países em desenvolvimento, contou com a oposição veemente dos Estados Unidos da América e da União Europeia (UE) quase até à última hora. E não está, como seria expectável, isento de contrapartidas: a UE insistiu no alargamento da lista de potenciais doadores (que seria composta pelos países desenvolvidos), de modo a incluir países classificados como “em desenvolvimento” pela Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas de 1992. 

Ora, como é fácil de depreender, a China era um dos países que a UE tinha em mente. Esta exigência foi entendida, por parte de alguns países em desenvolvimento, como uma tentativa de isolar a China através da instrumentalização e divisão dos G77 (uma coligação de países em desenvolvimento), que a rejeitaram prontamente. O acordo final estabelece, assim, que os países ainda considerados “em desenvolvimento” possam contribuir numa base voluntária.

Este fundo não resulta, portanto, da generosidade e solidariedade dos países desenvolvidos, mas sim do trabalho árduo da sociedade civil, de militantes pela justiça climática e comunidades na linha da frente, mas também da ação concertada de representantes políticos dos países em desenvolvimento, com particular destaque para os pequenos Estados insulares.

Até ao momento, desconhece-se a sua dotação orçamental e foram poucos os Estados que se comprometeram a financiá-lo. É provável que os detalhes em relação à sua estrutura, operacionalização, nomeadamente os doadores e os beneficiários, modalidades e condições de financiamento só sejam conhecidos e aprovados na COP28, que irá decorrer no próximo ano, nos Emirados Árabes Unidos – mais um país democrático, respeitador dos direitos humanos e promotor da transição energética.

Mais do que esta modesta conquista, legitimamente celebrada pelos países em desenvolvimento, sobressaem, como já vem sendo hábito, as ausências e os falhanços. Os planos nacionais apresentados para reduzir as emissões de GEE até 2030 não são suficientes para limitar o aumento da temperatura média global a 1,5 Cº, em relação aos níveis pré-industriais – o limiar de segurança estabelecido pela ciência climática que, todavia, já pressupõe transformações significativas no sistema climático terrestre. Não se verificou um aprofundamento, nem tampouco um consenso firme e inequívoco em torno deste objetivo, traduzido em metas vinculativas e quantificáveis, pelo que não há quaisquer progressos a assinalar desde a COP26, em Glasgow.

Contrariamente ao que seria desejável, o Plano de Implementação de Sharm el-Sheikh não situa o pico das emissões de GEE antes de 2025, nem estipula o abandono definitivo (ou sequer progressivo) de todos os combustíveis fósseis. É apenas repetido o apelo incipiente de Glasgow para “reduzir gradualmente” o uso do carvão. A cereja no topo do bolo: as chamadas “energias de baixas emissões”, que podem incluir, por exemplo, reatores nucleares, gás natural (um combustível fóssil, não esqueçamos) e centrais a carvão com tecnologias de captura e armazenamento de carbono, são equiparadas às energias renováveis.

Não é surpreendente quando a indústria fóssil se fez representar por mais de 600 lobistas (todos somados, seriam a segunda maior delegação na COP). Sim, os principais protagonistas do capitalismo fóssil, como a BP, a Chevron ou a Exxon Mobil, continuam a marcar presença nas Conferências do Clima, com acesso privilegiado às delegações políticas, enquanto os militantes pela justiça climática são obrigados a ficar à porta.

Como será possível evitar as perdas e danos que necessariamente decorrerão das alterações climáticas sem atacar a raiz do problema, isto é, sem cortar radicalmente as emissões de GEE e sem renunciar totalmente aos combustíveis fósseis? A resposta é simples: não é possível. Os jovens – perfeitamente alinhados com a ciência climática, note-se – que, durante as semanas da COP27, militantemente ocuparam escolas secundárias e universidades em Portugal, recorrendo legitimamente à desobediência civil e à resistência pacífica, sabem-no bem. 

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