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Benditas somos nós, entre as mulheres

Hoje revejo os discursos que me habituei não só a ouvir, como a reproduzir. Tinha zero consciência das opressões contidas em cada uma dessas verbalizações, porque estava bem programada na construção de género dominante. Mas também percebi que, a exemplo do que acontece nos múltiplos exemplos de dominação que nos sufocam, o oprimido acaba por internalizar o discurso do opressor.

Crónica 74
9 Março 2023

Maldisposta? “Isso é falta de sexo”. Animada? “Vê-se logo que aquela teve festa!”. Minissaia? “Depois queixa-se do assédio!”. Roupas de treino? “Está mesmo desleixada”. Olheiras expressivas? “Credo, podia tentar disfarçar!”. Maquilhagem completa? “Quem é que ela quer impressionar?”.

Umas vezes do lado de fora das aspas, noutras dentro delas, hoje revejo os discursos que, enquanto ia crescendo, me habituei não só a ouvir, como a reproduzir. Tinha zero consciência das opressões contidas em cada uma dessas verbalizações, porque estava bem programada na construção de género dominante: “As mulheres são umas cabras entre si”.

Acreditei que sim – qual fatalidade – até ver (e viver) que não. Percebi que, a exemplo do que acontece nos múltiplos exemplos de dominação que nos sufocam, o oprimido acaba por internalizar o discurso do opressor.

Por isso, importa-me desconstruir esse processo continuamente, e não apenas no Dia Internacional das Mulheres, embora também seja urgente reflectir sobre esta data.

Eu, por exemplo, passei a pluralizá-la, por entender que o Dia Internacional da Mulher assenta numa definição universal do género feminino, repressora das nossas especificidades e diversidades.

 

Não sou eu uma mulher?

A problemática foi certeira e assertivamente expressa por Sojourner Truth, no histórico discurso “Ain’t I a Woman?” [“E não sou eu uma mulher?”].

Nessa intervenção, que marcou o segundo dia da Convenção dos Direitos das Mulheres de 1851, no estado americano do Ohio, Sojourner Truth contestou a agenda feminista que silenciava mulheres negras como ela – desprezando esforços abolicionistas – mas consentia a presença de vozes masculinas.

Ela que tinha nascido em cativeiro e vivido quase 30 anos na condição de escravizada, interveio quando um intruso subiu ao palco para pregar a “superioridade” física e intelectual masculina.

“Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir para uma carruagem, que é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal, e que elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Mas nunca ninguém me ajuda a subir para a carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou eu uma mulher? Olhem para mim! Olhem para os meus braços! Eu lavrei, plantei, colhi e nenhum homem me passava à frente. E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto (sempre que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu uma mulher?”.

A reflexão sobre as exclusões de uma abordagem universalista da condição feminina permanece actual mais de 170 anos depois, ajudando a perceber a importância do feminismo negro. Volto a ele enquanto celebro o Dia Internacional das Mulheres, acompanhada de sete oradoras que representam múltiplas identidades.

Por exemplo, Janica Ndela apresenta-se como feminista africana, Júlia Pereira como activista transfeminista, e Lia Ferreira como uma mulher com mobilidade condicionada.

Desafiadas a reflectir sobre “A mulher e o corpo” – a partir de uma proposta da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) – todas partilham, sem romantizações, histórias de exclusão e percursos de afirmação.

A roda estende-se a Miriam Fernandes, que já trabalhou como modelo plus size, à coreógrafa e professora de dança Iolanda Rodrigues, à activista feminista Isabel Rebelo e à psicóloga Paula Pinto.

Junto à minha voz às suas, com as palavras da filósofa Djamila Ribeiro sempre presentes: “Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo”. Salvemo-nos!

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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