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Bastidores

A ideia de um concurso público prende-se não apenas pela transparência das decisões, mas sobretudo pelo peso que daria ao projecto.

Crónica 74
25 Agosto 2021

Se, por um lado, parece que Agosto é o mês em que nada acontece, por outro, é durante este mês que estão a dar-se alguns dos acontecimentos mais importantes para os próximos anos nas artes em Portugal.

Abriu, há poucos dias, o Programa de Apoio a Projectos pela Direção Geral das Artes (DGArtes). Este é um concurso anual, previsto em Orçamento do Estado, que nada tem a ver com a resposta de emergência à situação de pandemia que atravessamos, mas que é fundamental para a criação, programação e circulação de centenas de projectos artísticos.

É também por estes dias que estarão a ser preparadas as candidaturas de teatros à Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP). Esta é uma nova linha de financiamento que pretende impulsionar a programação cultural em espaços municipais por todo o país. Terminou recentemente o processo de credenciação dos espaços e abrirá em breve o concurso.

Por último, mas não menos importante, foi nomeado na semana passada o novo director artístico do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), Pedro Penim. Ao novo director artístico, desejo anos de inspiração e felicidade. A notícia da nomeação era aguardada desde que se soube de outra feliz notícia: a ida de Tiago Rodrigues, actual director do TNDMII, para a direcção do Festival de Avignon, em França.

Os teatro nacionais são instituições importantíssimas para o país. Antes de mais, pelo financiamento directo que têm, o que lhes permite desenvolver um trabalho sustentado, de grande escala, cumprindo aquilo que é a missão de um serviço público nas artes e na cultura. Depois, pelo que representam enquanto casa de promoção de pensamento, de sentido crítico, de revoluções estéticas e teatrais, de manutenção de repertório, de incentivo à nova dramaturgia, etc. E, claro, no diálogo que desenvolvem com outras estruturas e artistas de todo o país. Por tudo isso, saber quem está ao leme destes projectos é essencial para o tecido artístico e cultural.

Não é, então, estranho que este seja tema de muitas conversas entre colegas, que se profetizem nomes, que se tente reconstruir o que irá na cabeça da Ministra da Cultura, que se pergunte quem terão consultado para tomar a decisão, imaginando o que diria Tirésias ou o Oráculo de Delfos, se estivéssemos dentro de uma tragédia grega.

De tão normalizado está este processo de nomeação, foi com surpresa que ouvi um colega de outro país perguntar a um colectivo de artistas porque é que não apresentavam um projecto ao concurso para a direcção artística. Surpresa maior teve ele quando lhe disseram que os cargos de direcção dos teatros nacionais em Portugal não eram concursos públicos mas sim nomeações directas do governo.

As conversas que este tema proporciona são deveras interessantes. Por um lado podemos ser levados a pensar que, com a nomeação, o cargo de direcção artística tem sempre em última análise um superior hierárquico, que são as figuras do governo. Claro que, se fosse através de concurso público esta questão manter-se-ia do ponto de vista burocrático, mas será que a independência do cargo não ficaria mais clara? Quero acreditar, e tenho quase a certeza que assim é, que a independência artística das várias direcções dos vários teatros nacionais nunca foi colocada em causa, até porque a lei assim o prevê. Digo-o também por confiança na idoneidade dos vários directores que por lá passaram que sei que não o iriam aceitar se assim não fosse como pelos vários governos que fomos tendo. Ainda assim, será que é este o modelo ideal para o país? Afinal, o que acontecerá no dia em que se pretender usar os maiores palcos do país como propaganda do governo (seja ele qual for)?

Se formos ler o comunicado do governo sobre a nomeação do novo director artístico, podemos ler duas linhas sobre a sua nota biográfica e zero linhas sobre o que motivou a sua nomeação. Não se sabe o que levou o governo a escolhê-lo a ele e não a outro ou outra. Não é clara a ideia do governo para aquela instituição. Pergunto-me, havendo lugar a um concurso público para a direcção artística de um teatro nacional, se haveria mais hipóteses de termos mulheres a ocupar estes cargos, ou artistas que contrariassem a hegemonia branca, ou artistas que desenvolvem o seu trabalho fora dos grandes centros urbanos de Lisboa ou Porto, ou artistas estrangeiros/as, ou até se poderíamos experimentar outros modelos de direcção, como por exemplo, através de colectivos, ou modelos colegiais (como acontece em alguns espaços na Alemanha, em que duas ou três pessoas partilham a direcção artística).

Em última análise, através de um concurso público, em que cada candidatura apresenta um programa, uma ideia, uma agenda, e que é seleccionada por um júri externo (como acontece com os Programas de Apoio da DGArtes, que falei acima), em que é avaliado não apenas o histórico do/a(s) candidato/a(s) mas também o seu projecto, o cargo de direcção seria muito mais facilmente alvo de escrutínio pelos seus pares ou pelos públicos. Paralelamente, a ideia de um concurso público prende-se não apenas pela transparência das decisões, mas sobretudo pelo peso que daria ao projecto.

A vantagem de um concurso é precisamente afastar a discussão de egos e pessoalismos e recentrá-la naquilo que seria o projecto artístico. Abrir um concurso público para a direcção de espaços como os teatros nacionais (ou outras instituições equivalentes), é também saudável para promover o pensamento colectivo e artístico sobre o futuro desses mesmos espaços.    

Não coloco aqui em causa as opções do governo, e muito menos questiono o mérito e a capacidade do novo director - que as tem, e das quais iremos todos/as beneficiar brevemente como público. As linhas que escrevo têm apenas o objectivo de trazer para a esfera pública um pensamento sobre o que queremos, enquanto sociedade e enquanto país, para as nossas instituições, a nossa democracia, as artes e cultura nacionais.

As eleições autárquicas estão aí à porta. Em Setembro abre o concurso para a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses, que irá atribuir financiamento a teatros municipais para a prossecução da difusão e promoção do serviço público de cultura. O financiamento da programação destes espaços será feito pelo governo central e pelos municípios. Até agora, nos documentos publicados, nada obriga à criação de um concurso público para directores/as artísticos destes equipamentos que estarão sobre tutela directa das câmaras municipais.

No mês passado escrevi aqui uma crónica que perguntava “Para que precisamos de artistas?”. Sabemos bem como a arte pode ser instrumentalizada, e quais os riscos que corremos quando isso acontece. Pergunto agora: quando (e se) tudo isto virar do avesso, que portas deixámos abertas para nos tomarem de assalto?

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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